LIVRARIA
CASTRO
E SILVA
LISBOA
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THE LIBRARY
OF
THE UNIVERSITY
OF CALIFÓRNIA
LOS ANGELES
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SOROR
MARIANNA
A FREIRA PORTUGUEZA
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LUCIANO CORDEIRO
SOROR
MARIANNA
A FREffii PORTUGUEZA
. . . « SÓ escrevo este livro como
historia humana. . .»
Fr. A. d'Almada, Desp. (^o
£«p.— 1694.
SEGUNDA EDIÇÃO
lUustrada, correcta e augmentada
sobre novos documentos
¥
LISBOA
LIVRARIA FERIN ôc G.»
70— R. Nova do Almada— 74
Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa
Ao coração e á sciencia
SOUSA MARTINS
fâ
ISII
Ha muitos annos que os registos da livraria portugueza
não dão noticia de um êxito egual ao que teve o livro do
sr. Luciano Cordeiro. Publicado no meado de 1888, a pri-
meira edição podia considerar-se esgotada ao cabo de dois
mezes, precisamente os conhecidos como peores do nosso
mercado bibliographico.
Não foi somente um êxito litterario^ no sentido restricto
do termo, foi um verdadeiro successo de curiosidade, de
sympathia, de applauso publico, que não esperou aquelle e
que o acompanhou e sanccionou inteiramente, fazendo di-
zer a Júlio César Machado, n^uma das suas formosas revis-
tas do ^epor/^r, que 1888 ficaria sendo: — o anno da Frára ,
— na bibliographia patria.J
Antes que apparecessem as primeiras apreciações e no-
ticias do livro, o movimento da sua procura adeantara-se
rapidamente. Nem se extinguiu ainda. Mas o êxito propria-
mente litterario foi também excepcional. Tendo podido ver
uma collecção de noticias, artigos e cartas inéditas, sobre a
Soror Marianna, sentimos naturalmente um grande desejo
de reunir aqui todos esses juizos críticos, uns firmados pe-
1 .sr^^5;f;d
8
los primeiros nomes da nossa vida intellectual, outros ex-
primindo as reservadas e vivas impressões de espíritos e co-
rações de eleição. Seria uma homenagem mais, — e d'esta
vez perfeitamente portugueza, — á doce e desolada figura da
nossa Heloisa, definitivamente restituida á litteratura pátria,
como a queria o Morgado de Matheus, e como ella é, — no
dizer do auctor: — o necessário «violino, vibrante, indisci-
plinado, que nos traz a lembrança consoladora e amiga do
que é espontâneo, do que é ingénuo e necessariamente ver-
dadeiro e eterno, no meio das pompas e dos refinamentos
artísticos, magistraes, da grande orchestra dos seiscentis-
tas.»
Mas, além dos escrúpulos de modéstia que nos recusavam
a satisfação d'este desejo, era impossível caberem nas for-
çadas dimensões da nossa publicação todas aquellas apre-
ciações. Independentemente de um grande numero de no-
ticias avulsas dos jornaes, mais de vinte seriam os artigos
a transcrever, de largo desenvolvimento critico, e em que
escriptores illustres como: — conde de Ficalho, Theophilo
Braga, Joaquim de Araújo, Moniz Barreto, Campos Júnior,
Borges de Avelar, Sousa Viterbo, José Sampaio, Victor Se-
queira, Gesar Machado, Maria Amália, Clementino de Sousa,
Rodrigues de Freitas, Mariano Pina, Armelim Júnior, G.
Torresão, Benalcanfor, Pinheiro Chagas, A. de Serpa, e ou-
tros, proferiram o veredicto espontâneo e eloquente da sua
auctoridade sobre o laborioso e encantador processo instau-
rado e encerrado pelo nosso auctor. Depois não ficaria satis-
feito o nosso desejo, nem completa a nossa homenagem, não
nos sendo permittido juntar-lhe, — e por muito favor nos foi
concedido ver, — as cartas, o repositório particular, inédito,
intimo quasi, ou, alguma vez, confidencial das impressões
immediatas, pessoaes : — em que, a par de nomes como os de
9
Barros Gomes, Ouguella, Hintze Ribeiro, Serpa Pimentel,
Lopo Vaz, Oliveira Martins, Eça de Queiroz, ete., reluzem
as jóias da mais fina intelligencia ou da mais encantadora
sensibilidade feminina. Seria um novo livro ... se nos fosse
permittido fazel-o. Duas phrases só, colhidas ao acaso, n'esse
bello álbum. São de Oliveira Martins: — «V. fez um mi-
lagre. O livro das Carias que V. fez é verdadeiramente
definitivo; não ha mais nada a dizer. V. esgotou a erudi-
ção e a critica: não ha que rebuscar nem que observar mais.
Está definido o caso pathologico (?) e determinado o con
curso de circumstancias em que se deu. »
É a synthese de todas as apreciações.
Desde 1888, pois, se tem feito sentir a necessidade de
uma nova edição. Afíluem os pedidos, sendo muitos do es-
trangeiro, e é raro obter-se, posto que por maior preço, um
exemplar. Por suas múltiplas occupações, e por querer au-
gmentar e rever a obra em vista de novas averiguações e
documentos, o sr. Luciano Cordeiro não pôde conceder-nos
mais cedo uma segunda edição do seu livro, mas auctor e
editores procurámos resgatar estademorae agradecer aquelle
êxito com os consideráveis melhoramentos de varia natureza
introduzidos na presente publicação. Se a parte histórica e
bibliographica foi em muito refeita, apresentando factos e
indicações até agora inteiramente inéditos, pela nossa parte
não nos poupámos a saerificios por oíferecer ao publico uma
edição correspondente ás exigências e progressos da arte
bibliographica nos mais adeantados mercados.
Lisboa, Livraria Ferin & C.', 1 de novembro de 1890.
Os EDITORES.
SOROR
MARIANNA
A FREIRA PORTUGUEZA
INTRODTJCÇlO
Nos primeiros dias de janeiro de 1669, Cláudio Barbin,
o celebre livreiro parisiense, — auPalais^surleseconãper-
ron de la Sainte Chapelle, — lançava nos salões e alcovas
que continuavam a camará azul da senhora de Rambouil-
let um pequeno livro anonymo, que n'aquelle meio galante,
artificioso e frívolo seria a mancha rude e sombria de um
monge de Zurbaran, cahindo inopinadamente n'uma pasto-
ral mimosa de Watteau ou Boucher.
Era a historia, em cinco cartas, — traduzidas n'um francez
regularmente escandaloso para os ouvidos delicados das^r^-
ciosas, — de uma paixão profunda, allucinada, doida, de po-
bre freira estrangeira, que bem se via que não fora educada
na escola do tendre gracioso e subtil d'aquellasya«smísía5
do amoi-j no dizer da Ninon, por largo tempo, apesar do
riso cruel, e não poucas vezes canalha, de Moliére, as dire-
ctoras espirituaes da litteratura e da sentimentalidade do
século xvn.
Barbin, — ce chien de Barbin, — como havia de chamar-
14
lhe a senhora de Sévigné, — obtivera privilegio e licença
para esta publicação em 28 de outubro de 1668, regista-
ra-a em 17 de novembro, acabara de imprimil-a em 4 de
janeiro de 1669, e explicava discretamente «:ao leitor» que
se dera a muitos trabalhos para obter uma copia correcta
d'essa traducção; — que julgava, imprimindo-a, dar muito
gosto ás pessoas entendidas em coisas de sentimento, que
tanto louvavam ou procuravam conhecer aquellas cinco car-
tas;— que ellas haviam sido escriptas a um «^gentil homem
de qualidade y> que servira em Portugal, mas que não sabia
o nome d'esse gentil homem, nem o do traductor, pareeen-
do-lhe eomtudo que não lhes seria desagradável, publican-
do-as.
Sem nos demorarmos agora em lembrar o intenso e ab-
sorvente predominio que attingira na sociedade pollida e
litterata do século xvn, — particularmente em França, mas
não só n'este paiz, como geralmente se pensa, — a moda e
a litteratura epistolar, observaremos, que era então, e foi
por muito tempo ainda, vulgar e corrente o costume de ex-
trahir e fazer circular nos círculos do convívio cortesão e
intellectual copias de correspondência intima ou de produc-
ções destinadas á publicidade.
Estabelecia-se por esta forma uma espécie de censura
prévia de juizes amigos antes que o minotauro do gosto e
do critério publico podesse saborear, ou despedaçar desres-
peitosamente, as jóias e mimos da aristocracia dos beauxes-
prits.
D* aqui, algumas vezes, a publicação indiscreta e a apro-
priação abusiva d'essas copias : — todas hão lembrar-se como
Voltaire, por exemplo, receava da indiscrição dos amigos
quando lhes confiava algum trecho ou producto inédito da
sua penna.
15
A menina De Launay, que Saint-Beuve appellida de La
Bruyére das mulheres, que Eugénio Crépet prefere que seja
o La Rochefoucauld feminino, e que nós suppomos poder
lisongear melhor não incommodando por sua causa nenhum
d'aquelles respeitáveis fabricantes de Máximas e Caracte-
res:— a menina De Launay, pode dizer-se, e diz ella pró-
pria nas suas Memorias, que deveu «sahir inopinadamente
da profunda obscuridade em que vivia» na corte elegante
da duqueza de Maine á pequena carta maliciosa que eserer
vera ao senhor de Fontenelle, por este não ter visto com
olhos lassez phibsophes" o prodigio dos Espíritos junto do
leito da Tenar.
Fontenelle, vivamente gracejado pelos amigos, mostrara
a carta.
— <íElle reussit», — todos a copiaram, e quando nos sa-
lões de Sceaux se soube quem a escrevera, foi uma sur-
preza geral, e a reputação do fino talento da De Launay fi-
cou para sempre feita.
Como diz Vauxcelles, e como toda a gente sabe, as car-
tas da senhora de Sévigné tornaram-s e celebres dès son vi~
vant; muitas outras o foram, correndo em copias entre os
amadores mais apurados e os círculos mais cultos do tempo.
Antes de publicadas, as celebres Máximas de La Roche-
foucauld foram em diversas copias submettidas á critica do
salão da senhora de Sablé; por signal que a esta circum-
stancia e também áquelle costume devemos uma das mais
bellas cartas da nobre esposa do nosso antigo e illustre au-
xiliar, o marechal de Schomberg, conde de Mertola^ carta
primorosa de bom senso e de fina honestidade feminina, que
egualmente andou de mão em mão, em copias, posto que
truncada pela amiga do famoso moralista.
Mas não era só isto.
46
Como a moda, — esta absorpção, tantas vezes preversão
da elegância feminina e moderna, — cliega a escravisar o
pudor das mulheres e a seriedade dos homens, aquella os-
tentação, aquelle culto dominante da litteratura epistolar e
da arte de bem dizer, levava de vencida os recatos e reser-
vas mais naturaes e legitimas da correspondência intima.
O que hoje nos parece, na publicação das Cartas da freira
portugueza, uma inconfidência brutal e cynica, era então
pouco menos do (jue a coisa mais natural do mundo.
Alguns annos depois, a menina Aissé, aquella singular
circassiana feita parisiense, cuja doce tradição inspirou a
Prevost, segundo Asse, a sua Historia, de uma grega mo-
derna, e cujas epistolas este reuniu ás da Religiosa, não
duvidava oíferecer á sua amiga e confidente, a senhora Ca-
landrini, copias das cartas do seu mais que discreto aman-
te, e dizia-lhe : «... tão bem escriptas são, que se não se
soubesse a quem são dirigidas, achal-as-hiam encantado-
ras.»
Nada mais natural, pois, — eBarbinnão tinha realmente
interesse em mentir, n'esta parte — , do que correrem já
em copias nos últimos mezes de 1668 as cartas que elle
imprimia, quer simplesmente sob o influxo d'aquella moda
ou d' aquella corrente litteraria, — (juer, e é o que enten-
dem geralmente os commentadores, como trophéo de uma
conquista galante de aventureiro fidalgo e francez, — quer,
finalmente, o que longe de excluir pode comprehender e
completar essas hypotheses, como fructo exótico colhido em
terra estranha e longínqua que estimulasse vivamente a
sentimentalidade elegante dos salões parisienses.
— (íPour Lishomie?! mais cela est bien loinf. . . » diziam
dois annos depois á futura senhora de Maintenon, quando
ella pensava em vir abrigar-se aqui.
47
Apesar das estreitas relações entre as duas cortes, e do
numero considerável de francezes que tinham vindo servir
em Portugal, — o nosso paiz era então, como não deixou
de ser ainda, e, com magoa o dizemos, como não deixaram
de ser também os mais paizes, para uma grande parte da
sociedade parisiense, alguma coisa semelhante ... ao que
para o romano de Roma eram os outros povos, ou para o
chinez de Pekin continuam sendo todos. . . os que não são
chinezes.
Pelo menos um paiz longínquo e extraordinário que a
lenda, e também o disparate de superficiaes viajantes, en-
volviam em fievoas algumas vezes maravilhosas, não pou-
cas, picarescas.
Mas se as Cartas portuguezas, que era o nome que lhes
dera o editor, andavam em copias, — louvadas e procura-
das— , nos círculos litterarios, onde segundo as próprias in-
dicações d'ellas havia alguns mezes apenas que poderiam
ter apparecido, — pode por egual acreditar se que Barbin,
tão intimamente relacionado com esses círculos, colhendo- as
e imprimindo-as, nenhum conhecimento tivesse, realmente,
da sua procedência, não soubesse, pelo menos, o nome do
seu proprietário ou do seu apresentante, a (juem tivessem
sido dirigidas, quem as tivesse traduzido, emfim?
Pois nem o caracter intimo d'aquella correspondência, o
extraordinário ruido e interesse que ella despertava, os na-
turaes inconvenientes que a sua publicação poderia ter, não
diremos já para a pobre freira estrangeira, facilmente de-
nunciada assim aos seus compatriotas, mas para o próprio
destinatário inconfidente, — «um gentil homem de qualida-
de» na sociedade e na milicia franceza, — fariam hesitar na
empreza o celebre editor, se ella não lhe tivesse sido au-
ctorizada, se elle não soubesse seíjuero nome de quem re-
F. 2
18
cebendo ou de quem traduzindo as Cartas poderia conce
der-lhe ou reeusar-Ihe o direito de imprimil-as?
Claramente: — ou quem lhe confiara e auctorizara a pu-
blicação lhe impozera o silencio dos nomes, ou o livreiro,
commettendo por conta própria a indiscrição de publicar
aquellas cartas intimas, que apesar dos costumes desabiiea-
dos do tempo poderiam não deixar em boa situação e con-
ceito o destinatário illustre, abstinha-se prudentemente de
aggravar o abuso, trazendo do pequeno circulo dos que co-
nheciam a procedência d'ellas para a grande publicidade
menos complacente e fácil os nomes dos que se haviam tor-
nado réos d'aquella inconfidência cruel.
É certo que em algumas occasiões, e não tão frequente-
mente como, por uma comprehensão incompleta dos costu-
mes e dos perigos da epocha, parece ter-se supposto, circu-
lavam ou imprimiam-se, como succede hoje, composições
anonymas ou apocryphas que a exploração mercantil ou a
intriga e as indiscrições das salas attribuiam a personagens
contemporâneos, por este facto muitas vezes prejudicados
na sua reputação e nas suas situações sociaes.
Era, porém, muito arriscada a aventura, e raramente o
espectro da Bastilha e o risco de uma completa ruina dei-
xariam que se abalançassem, de coração leve, a taes em-
prezas, livreiros acreditados e conhecidos como Barbin.
Uma observação ainda. Ninguém viu até hoje, na inte-
gra^ e foi-nos impossível tental-o, o Privilegio da publicação.
Porventura n'elle se encontraria alguma exjilanação natu-
ralmente supprimida no extracto publicado d'esse diploma.
Mal pode comprehender-se, porém, que Barbin, impri-
mindo uma obra que circulava já em copias e da qual po-
derá apoderar-se qualquer, como elle dizia ter feito, obti-
vesse o direito exclusivo por cinco annos d'essa impressão
19
e na forma da lei a registasse na Communauté des Mar-
chants Libraires & Imprimeurs . . . suiuant <È conforme-
ment à VArrest de la Cour de Parlement du 8 Avril 1653,
se não estivesse seguro de que ninguém lhe poderia dispu-
tar o direito, e não podesse ou tivesse provado a proprie-
dade da versão original, pelo menos.
II
Mas haveria realmente o original accusado?
Mas realmente seria uma versão o livro de Barbin?
Ao cabo de dois séculos de tradição aílirmativa, de lei-
tura, de critica, de enthusiasmo, — ao cabo de oitenta edi-
ções, rhapsodias e imitações — , um escriptor deBeaune, o
sr. E. Beauvois, piedosa e apaixonadamente empenhado em
lavar da memoria de um grave personagem a terrível fra-
queza de ter abrasado em profanos amores uma «esposa do
Senhor», — caso que parece não se vira ainda na mocidade
de general algum de exércitos christãos — , rompe no ex-
cesso pouco critico, não de suppor, apenas, mas de resol-
ver que essas Cartas, — sacrílegas, ainda depois das da ce-
lebre abbadessa do Paracleto — , sejam simplesmente...
um Parfait Secretaire des Amants ^.
«... ne sont pas autre chosa, — observa elle de passa-
gem, decisivamente, n'um pequeno parenthesis desdenhoso.
1 La jeunesse du marechal de Chamilly &. par E. Beauvois.
{Extr. des Mémoires de la Société d'Histoire, ele.) — Beaune,
1885.
20
aberto na breve lição de como e porque os auctores e edi-
tores de ces sortes d'écrits não se embaraçam muito avec
des lecteiirs peu exigeants, qui ne seront pas offusquées par
Vincohérence des idées, ni par les faits contradictoires , ni
par la boursouflure du style.
Logo apuraremos todas estas coisas, a começar pela bour-
souflure du style do auctor das Cartas, que o illustre critico
de Beaune, algumas paginas adeante, mais generosamente
suppõe ter sido tquelque bel esprit qui avait plus de facilite
de style que de logique et de memoire ...»
Mas é precisamente o que, por via de regra, acontece não
aos secretários mas aos amantes!. . . Alguém disse já, não
sabemos quem, como não o sabia Ratisbonne, que o trans-
mitte: — «Para bem escrever uma carta de amor é neces-
sário começar sem saber o que se dirá, e não saber o que
se disse, quando se acabou.»
Que o sr. Beauvois nos perdoe ! Nada mais respeitável
do que a sua piedosa tentativa. Mas também nada mais na-
tural do que a sua gravidade erudita não estar muito ao
corrente do que os amantes costumam dizer, e do que cos-
tumam ser. . . os Secretários de amor.
Se assim não fosse, o illustre escriptor teria facilmente
reconhecido a considerável distancia, bem maior do que o
seu parentbesis, — que separa uns dos outros, e as Cartas
portuguezaSj por exemplo, do Secretaire des dames ou do
Novveav secretaire, que exactamente por aquelle tempo o sr.
Pikkert, — gentilhomme ordinaire de la Chambre du Roy,
— dedicava á menina d'Adlersbelm, e Estevão Loyson, au
Palais, etc, alli mesmo a dois passos de Barbin, offerecia
aos seus freguezes peu exigeants *.
1 Novveav sscretaire, \ contenant diverses | lettres | choisies
21
Não seria, porém, o pequeno livro das Cartas poríngue-
zas uma simples ficção romântica destinada a explorar si-
multaneamente, na forma, uma corrente litteraria predo-
minante, e no fundo, as recordações e as lendas da campa-
nha de Portugal, pelos nossos estimados auxiliares de então,
e mais ainda pelos seus descendentes até hoje, um pouco
caprichosamente considerada como uma campanha fran-
ceza?
N'esta hypothese, a indicação de que a obra fora tradu-
zida de um original portuguez, e a terminante allusão ao
destinatário das Cartas, seriam apenas um expediente ba-
nal e grosseiro de estimular a curiosidade e o appetite do
publico.
Do que temos dito deduz-se já como nos parece insubsis-
tente e ociosa a questão de ser ou não ser uma traducção
a publicação de Barbin, invariavelmente affirmada como tal
por elle e por todas as numerosas edições subsequentes,
até hoje.
Débil argumento era já o duvidoso interesse dos livrei-
ros em dar como versão o que, sem risco para os créditos
da autbenticidade da obra, poderiam francamente offereeer
aos leitores com os merecimentos de original directamente
reproduzido.
Que haveria de extraordinário, — particularmente para
o grande publico — , que uma religiosa estrangeira escre-
vesse ao amante na lingua d'este, na lingua franceza já en
et familières, | sur differents sujeis les plus galands & | en-
joiiez de ce temps, ete. | par M. Pikkert, gentilhomme | ordi-
naire de la Chambre du Roy. | A Paris, chez Estienne Loy-
son, au Falais, | à Tentrée de la Gallerie des Prisonniers, \ au
Noin de lesvs | mdclxviii. | Avec Privilege du Roy.
22
tão, e pelas próprias circumstancias da epocha, notavel-
mente generalisada, quando, além de tudo, o francez d'es-
sas Cartas não era positivamente o das «grandes senhoras»
e dos grandes escriptores do tempo?
Porque simular uma authenticidade que desde logo se
arriscava a suspeitas maiores pela declaração perfeitamente
inverosimil de não conhecer o editor os nomes dos proprie-
tários do escripto que imprimia e de que pedira e obtivera
privilegio de publicação?
Já agora que vamos em palestra que tem de passar por
enfadonha e prolixa para alguns leitores, mas que se nos
impõe como necessária, no estado de deficiente discussão e
investigação critica em que ainda viemos encontrar a ques-
tão no próprio meio litterario portuguez, permittam-nos
uma pequena digressão, que, não sendo inútil para o ponto
que estamos discutindo, sob outro aspecto se nos affigura
interessante.
Anda de ha muito accusada na historia bibliographica, e
até na historia das nossas primeiras descobertas, uma nar-
ração relativa á da ilha da Madeira, precisamente publicada
por Barbin, o mesmo editor das Cartas, dois annos depois
d'estas, como traducção, também, de um original portuguez,
de Francisco Alcoforado, supposto companheiro de Zarco
n'aquella descoberta *.
1 Relation | historique \ de la decouverte \ de 1'isle \ de Mc-
dere. | Traduit du Portngais. \ Á Paris, | Chez Lovis Billaine,
au second i pilier de la grand'Salle du Palais, à la Palme, &
au grand César, | m.dclxxi. | Avec Privilege dv Roy.
— Extrait dv Privilege du Roy. Par grace & Privilege du
Roy, donné à S. Germain en Laye le 18 iour d'Aoust 1671.
II est permi à Claude Barbin Marchand Libraire à Paris d'im-
23
Não é extremamente curiosa a apparição d'este nome de
Alcoforado n'uma publicação de Barbin poucos annos, ape-
nas, depois da publicação das Cartas da freira Marianna ?. . .
A narração alludida é geralmente considerada como a
fonte original da lenda romântica dos amantes Machin e
Arfet, fugidos de Bristol e arrojados por uma tempestade
áquella ilha, então ignorada.
É claro que não vamos estudar, agora, a novella.
A obra de Barbin, extremamente rara, não é mais de
que um extracto ou do que uma accommodação, na melhor
boa fé confessada, de uma Epanaphora de D. Francisco
Manuel de Mello.
Pois sobre o editor parisiense pesa ainda a suspeita in-
justa de ter praticado uma mystificação, dando como tra-
dueção de original portuguez, que não existia^ o romance
dos dois amantes inglezes.
Seja exactamente esta publicação de Barbin, feita, como
dissemos já, dois annos, apenas, depois da outra, que ve-
nha depor em favor da honestidade profissional d*elle, e de
certo modo reforçar a idéa de que elle dizia simplesmente
a verdade quando declarava que as Cartas que imprimia
eram apenas uma traducção.
Podendo dar um caracter perfeitamente original ou iné-
dito á sua Relation historique, ou limitar-se a dizer que era
primer un Livre intitule, Relation de Viste de Madere, pêdant
Tespace de cinq années, ete.
— Achevé d'imprimer pour la premiere fois le 10 iuillet
1671.
— (Verso) — Et le dit Barbin a associe avec luy a son Pri-
vilege, Louys Billaine, suivant Taccord fait entre'eux.
Exemplar offerecido pelo distincto bibliophilo sr. F. Neves.
24
a traducção da supposta narrativa portugueza de Francisco
Alcoforado, declara discretamente, no frontespicio, que é
traduzida do portuguez, e posto seja realmente um trabalho
de reconstituição da narrativa accusada por D. Francisco
Manuel, observa que é a este «que devemos o serviço de a
ter communicado ao publico na sua língua, e é sobre aim
pressão portugueza que eu faço esta traducção.»
Não pára aqui, porém:
— «Como cada lingua», — accreseenta, — «tem asuabel-
leza própria, o seu estylo particular e o seu génio, julgo-
me obrigado a prestar conta do que posso ter supprimido,
mudado ou adoçado n'esta traducção.»
E explica como entendeu dever desembaraçar a Relação,
do estylo, — estrement eslévé & bien plus Poélique gu'ora-
ioire, — de D. Francisco Manuel de Mello, observando que
— i'ce sttle est vniuersellement pratique par la pluspart cies
Portugais.-o
Não o era, naturalmente, por uma mulher, toda entre-
gue á sua paixão e á sua dor, e que não pensava, decerto,
senão em exprimil-as o mais clara e persuasivamente que
podesse, ao amante pouco experiente e entendido nas opu-
lências lilterarias da lingua que mal aprendera na campa-
nha! ...
Com bem diversa diffieuldade havia pois de encontrar-se
o traductor das Cartas, não menor seguramente do que a
de desbastar e verter a linguagem litteraria da moda.
Era a de comprehender e trasladar o dizer familiar e
commum.
Não seria, por isso mesmo, a primeira garantia da vera-
, cidade do editor, n'esta parte, a própria linguagem da obra^
e não se revela precisamente n'aquella o trabalho, as hesi-
tações, o torneio forçado de uma versão ?
25
Não sei de escrlptor ou leitor francez que tenlia seriamente
duvidado de que seja uma traducção o livro de Barbin.
É tão difficil esconder aquelle caracter ao leitor menos
experiente no génio e nos segredos da própria lingua, que
realmente a simples ausência de qualquer contestação defi-
nida e séria, por parte dos escriptores e criticos francezes,
— que muito mais do que os nossos se teem occupado das
Cartas, — poderia imprimir um certo ar de impertinência á
discussão detida do problema.
Já observámos, porém, que temos de considerar a ques-
tão nos termos em que ella se encontra ainda, não em Fran-
ça, mas entre nós, e as duvidas que não se manifestam por
parte da critica franceza encontramol-as subscriptas, de al-
gum modo, por dois dos nossos maiores e mais respeitáveis
escriptores modernos.
Cremos, comtudo, que se tem exaggerado consideravel-
mente o valor critico que elles proprics deram a essas du-
vidas.
Attribue-se a Alexandre Herculano a idéa de que as Car-
tas não sejam uma traducção, mas essa idéa encontramol-a
apenas, desacompanhada de qualquer justificação, em uma
pequena nota preambular á versão portugueza de Lopes de
Mendonça, em 1852.
— «O nosso amigo Alexandre Herculano», — diz elle, —
«é de opinião que as Cartas são originalmente escriptas em
francez, e parece dar pouco credito á tradição que as attri-
bue a uma religiosa portugueza.»
Camillo Castello Branco ^ depois de dizer que «em 1669
1 Curso de Litleratura Portugueza por Camillo Castello Bran-
co. Continuação e complemento do Curso de Litleratura Por-
tugueza por José Maria de Andrade Ferreira. — Lisboa, 1876.
26
apparecem em francez as Cartas da religiosa portugueza
traduzidas por Subligny, a quem o conde enfatuado con-
fiara os originaes», inclina-se declaradamente para aquella
duvida de Herculano, accrescentando : «O torneio, a Índole
e a contextura da phrase recende as olorosas meiguices do
género epistolar francez.»
Que nos perdoe o grande escriptor, nosso mestre e amigo,
mas é exactamente a isso que nos parece, e tem parecido a
muitos, podáramos dizer que a todos, que ellas nem longin-
quamente recendem.
Precisamente uma das singularidades mais notadas é o
contraste da sua linguagem banal, arrastada, incorrecta,
quer com a forma preciosa^, aos últimos lampejos da qual
apparecem, quer com o estylo castiço, vivo, gracioso, na
florescência do qual aquella publicação se faz.
Malherbe, que na sua grammatica adoptou a versão das
Cartas de Heloisa, por Bussy, como um exemplar da boa e
elegante dicção franceza, poderia citar a versão das Cartas
portuguezas como excellente exemplar. . . contrario.
Dorat, de quem não poderá dizer-se que não conhecesse
perfeitamente a sua lingua, e até as olorosas ternuras a que
allude Camillo, pois que as praticava com particular dilec-
ção, Dorat, o apaixonado imitador em verso das Cartas de
Marianna, dizia d'ellas:
— «Não se encontram nas Cartas de que nosoccupamos
nem esta metaphysica do amor que as nossas Mulherinhas
(Femmelettes) fizeram moda, nem aquelles golpes officiosos
de punhal que cortam a intriga em vez de a desatar, nem
aquelles venenos lentos que deixam ás heroinas tagarellas
o tempo de uma arrastada agonia, nem aquellas situações,
em summa, em que o auctor se fatiga por metter em acção
os caracteres que elle sonhou e dos quaes nenhum modelo
27
existe no turbilhão que nos cerca; mas em compensação,
tudo alli é verdadeiro, natural, d'esta simplicidade commo-
vedora, primeiro encanto dos escriptos que se relêem e dos
quaes a gente não se cança
— «A dicção é arrastada, diflusa, incorrecta, algumas
vezes maneirada, quasi sempre commum. Por pouco sen-
siveis que sejamos, havemos de ler muitas vezes as Cartas
portuguezas antes de percebermos que são mal escriptas.
Que se julgue do prazer que nos causariam, se ao mereci-
mento que teem já, juntassem ainda o encanto do estylo.»
Escusado será dizer que Dorat as tinha, irrecusavel-
mente, como traduzidas.
Mas se, — aparte o desprimor litteral, — a Índole eo tor-
neio do estylo as identificassem com as tendências e com o
gosto da epistolographia franceza do século xvn, mal po-
derá comprehender-se que ellas tivessem o extraordinário
êxito de que a nossa nota bibliographica dá irresistível tes-
temunho, e que constituíssem n'essa litteratura como que
um género exótico, precisamente pela sua feição sentimen-
tal e estyllistica: — o das portuguezas .
Quantas vezes se tem citado a phrase da senhora de Sé-
vigné?
— «Emfim, Brancas escreveu-me uma carta tão exces-
sivamente terna, que resgata todo o seu esquecimento pas-
sado. Fala-me do seu coração em todas as linhas. Se lhe
respondesse no mesmo tom faria u.msLportugueza.y> ^
1 Lettres de Madame la Marquise de Sévigné, etc, a Madame
la comtesse de Grignan, etc. Rouen, 1780.
Lettre 73 — Aux Rochers. Dimanche 19 juillet 1671.
Uma nota diz- — «Allusion aux Lettres de la Religieuse
Portugaise».
28
Se Camillo Castello Branco tivesse podido dedicar ás
Cartas toda a fina e certeira attenção do seu alto espirito e
da sua singular aptidão critica, ninguém, talvez, como elle,
pudera ter apurado definitivamente a questão.
Mas no meio das opulências litterarias que inventariava
no seu manual, poude dar apenas, a essas Cartas, uma ob-
servação passageira e rápida, porventura trahida, além
d'isso, por uma certa prevenção casual.
Comludo, como teremos occasião de ver, a sua objecção
não pára, pode dizer-se até que não se fundamenta, prin-
cipalmente, na supposta conformidade d'ellas com a dicção
epistolar franceza.
N'este ponto a duvida, — apesar de toda a auctoridade de
quem n'um simples traço, mais gracioso do que exacto, a
exprime, de passagem, — mal pode contrariar e arredar,
não diremos já toda a tradição franceza^ mas as indicações
terminantes dos commentadores que mais detida e particu-
larmente estudaram e verificaram essa tradição.
Sabemos bem que um ou outro escriptor, e Sousa Bo-
telho cita, por exemplo, o abbade Feller, mas nenhum de
competência, e menos ainda com estudo especial e sério do
assumpto, teem ligeiramente supposto uma simples «aceom-
modação» ou mystificação litteraria.
Em vez, porém, de um exame necessariamente enfado-
nho da forma grammatical do texto de Barbin, offerecere-
mos o resultado e o testemunho de dois homens que larga-
mente estudaram as Cartas e cuja auctoridade e experiên-
cia, não só litteraria, mas linguistica, não poderá ser re-
cusada n'esta questão.
Poderamos chamar a depor muitos outros, é claro. De-
sejariamos citar, por exemplo, Francisco Manuel do Nasci-
mento, o Filinto Elysio^ um mestre da lingua portugueza,
29
largamente conhecedor também do génio e do torneio litte-
rario do francez. Francisco Manuel foi o primeiro traductor
portuguez das Cartas. Traduziu-as em Paris, acceitando
sem objecção nem reserva a tradição de que eram origina-
riamente portuguezas. Mas se este facto vale por um de-
poimento importante, é também o único que Francisco Ma-
nuel nos deixou.
De passagem, porém, faremos uma observação: — a de
que tão diilicil é realmente esconder o caracter de traduc-
ção de uma obra litteraria que apesar de toda a notável
sciencia da lingua portugueza que caracterisava Francisco
Manuel, do seu estylo obstinadamente purista, e do torneio
tão original quanto geralmente artiíicoso da sua locução, a
traducção d'elle está a denunciar-se e impor-se como tal,
quasi que em cada linba, ao leitor portuguez regularmente
conhecedor e experiente da lingua nacional.
É o que tem acontecido ou o que acontece geralmente
com a versão franceza, ás pessoas a quem ó familiar esta
lingua.
Por isso, para o abbade de St. Leger, o celebre biblio-
grapho, um dos dois commentadores a que nos referíamos,
não havia duvida de que o livro de Barbin era reaUnente
uma traducção.
E até uma péssima traducção, que «não se faz tolerar
senão pelo fundo das idéas que pertencem ao original, ab-
strahindo dos innumeraveis defeitos da translação.»
Outro commentador a que não podemos deixar de refe-
rir-nos é Sousa Botelho, mais conhecido entre nós por Mor-
gado de Matheus, e não sem injustiça também entre nos
quasi exclusivamente conhecido pela celebre edição monu-
mental dos Lusíadas. Estudou larga e apaixonadamente as
Cartas, na lenda e no texto, e fez d'eUas uma edição pri-
30
morosa, separando-as das rhapsodias com que andavam con-
fmididas, e vertendo-as n'uma linguagem que, não sendo
tão purista e tornejada como a de Filinto, é por isso mesmo
mais natural e viva.
Todas as circumstaneias concorrem, qual d'ellas mais fa-
vorável, para imprimir á noticia critica do benemérito bi-
bliographo e erudito, e, não diremos á sua opinião, mas á
sua convicção profunda e intransigente, uma singular au-
ctoridade: — u estudo demorado e comparativo das Cartas,
nas melhores e mais antigas edições; os recursos de traba-
lho e de consulta que lhe facultava a própria sitaação so-
cial; o largo conhecimento e diuturna pratica das línguas
e litteraturas franceza e portugueza, que lhe eram por
egual familiares; um facto, até, geralmente esquecido en-
tre nós : o de ser marido de uma grande escriptora fran-
ceza— dVesprit qui ne dit rien de vulgaire et le gout qui ne
dit rien de trop» ■ — na phrase de José Ghénier; — a quinta
voz, a da «cavallaria idealista do século xvm», d'aquelle
magnifico quinteto imaginado por SaintBeuve: — Voltaire,
João Jaques, Diderot, Crébillon filho, e ella. . . a Senhora
de Sousa ^
1 «D'autres ont peint le dix-huitième sièele par des aspects
mouqueurs ou orageux, dans ses inégalités ou ses désordres.
Voltaire Ta bafoué, Jean Jaeques Ta exalte et deprime tour à
tour; Diderot, dans sa Correspondance, nous le fait aimer
comme un galant et brillant méiange; Crébillon fils nous en
déroule les conversations alambiquées et les licences. L'auteur
ã.'Eugène de Rothelin nous a peint ce sièele en lui même dans
sa íleur exquise, dans sont éclat ideal et harmonieux. Eugène
de Rothelin est comme le roman de chevalerie du dix-huitième
sièele, ce que Tristan de Léonois ou tel autre roman du trei-
zième sièele était à la chevalerie d'alors, ce que le petit Jehan
31
Para nada faltar a esta coincidência de circumstancias
felizes no mais dedicado commentador das Cartas da pobre
freira portugueza, a illustre auctora da Adèle de Sénange e
Exigène de Bothelin passara parte da sua mocidade n^um
convento, e diz Saint-Beuve: «ea ousarei conjecturar que
aquella circumstancia se conservou como a maior questão
da sua vida e o fnndo mais inalterável dos seus sonhos.»
Pois bem : o depoimento de Sousa Botelho chega a pa-
recer rude na sua forma terminante e convicta.
— « ... um portuguez — diz elle — ou seja quem for que
conheça bem esta lingua, não poderá duvidar de que as
cmco cartas da religiosa tenham sido traduzidas yuasi lit-
teralmente de im original portuguez . A construcção de mui-
tas phrases é tal que retraduzindo-as palavra a palavra em
portuguez, encontrar-se-hão inteiramente no génio e no ca-
racter doesta lingua . »
— «A traducção», — accrescenta — afrouxou-as incontes-
tavelmente, mas repito: para qualquer portuguez é claro
que pela conformidade de certas phrases da traducção, com
as que se empregam na lingua portugueza, o traductor se-
guiu quasi litteralmente o original, salvo n'aquillo que al-
gumas vezes exigia o génio differente das duas línguas.»
Já agora não encerraremos estas citações sem lembrar
que a resultado egual chegou um dos mais eruditos histo-
riadores da litteratura portugueza, Theophilo Braga: — «Em-
bora essas Cartas, — diz elle — só existam hoje na traduc-
ção franceza de Cuilleraque, de 1669^ ainda revellam a
de Saintré ou Galaor étaient au quinzième, c'est-à-dire, quel-
que chose de poétique et de flatté, mais d'assez ressemblant.»
— Saint-Beuve, Mad. de Sousa, 1834. {Portraits de femmes,
1862.)
32
feição da syntaxe portugueza, e são de modo que por si
teem caracterisado na Europa o génio e o caracter porlu-
suez.» *
III
Se a dicção do livro de Barbin parece encarregar-se
de demonstrar a sinceridade do celebre editor, quando aífir-
mava que esse livro reproduzia apenas a copia supposta-
mente mais correcta de uma traducção, — o entrecho das
cinco Cartas está longe de favorecer a idéa de que tanto
aquella aíTirmação, como a de que ellas tinham sido dirigi-
das a um gentil homem francez, que servira em Portugal,
fossem intencionalmente um estimulo á curiosidade do pu-
blico, ou o disfarce insidioso de uma ficção romântica.
Não ha nas Cartas portuguezas , realmente, revelação al-
guma de costumes, de instituições, de sentimentos, sequer,
por dizer assim originaes, peculiares, necessariamente ex-
clusivos de uma civilisação, de um paiz ou de uma socie-
dade mal conhecida.
Nenhuma novidade histórica, ethnologica, social; ne-
nhuma excentricidade ou maravilha de longes terras e de
povos desconhecidos; nenhuma recreação mythologicaj, —
das que estavam um pouco no goso da epocha, — se conti-
nha n'aquella pequena publicação, que precisasse mais ou
1 Manual da Historia da litteratura portugueza, etc, por
Theophilo Braga — Porto, 1875. Vide também, do mesmo au-
ctor: Estudos da edade-média e Curso de litteratura portu-
gueza,
â3
menos grosseiramente fazer-se acreditar e valer pelas de-
clarações do editor.
Fabulado ou verdadeiro, o episodio, singelo, natural,
quasi vulgar, nada romanceado, tanto poderá succeder em
França, como em Portugal.
Com bem pequenas variantes, tanto poderá encontrar-se
na guerra da Devolução,, mais recente e que mais vivamente
interessava o publico francez, como nas campanhas^ para
elle pouco menos do que indifferentes e desconhecidas da
Restauração portugueza.
Precisamente quando Barbin publicava o mysterioso li-
vro, o interesse d'esse publico pelas coisas e pelo nome do
nosso paiz, deveria ter afrouxado consideravelmente.
Havia um anno que fizéramos a paz com a Hespanha,
muito apesar dos esforços e dos desejos da politica franceza,
e eram passados muitos mezes que haviam reentrado em
França, os últimos officiaes e soldados que d'ahi tinham
vindo auxiliar-nos.
Algumas passagens das Cartas fixam-lhes data anterior
a essa retirada, e uma refere-se expressamente á paz de
Flandres, que estava feita, antes que se assignasse, a 2 de
maio de 16t)8, em Aix-la-Chapelle, o respectivo tratado.
A 15 de julho d'esse anno chegara á Rochella a esqua-
dra de Cabaret conduzindo o marechal de Schomberg, conde
de Mertola, e o grosso das forças francezas.
Esmorecera um pouco o ruido do escândalo da deposi-
ção de Aflbnso vi (1667), e do casamento da esposa d'elle
com o cunhado (1668).
E certo que o capricho ou a imaginação do supposto au-
ctor das Cartas, poderia escolher livremente o theatro do
seu episodio.
Não fora comtudo, parece evidente, por melhor prender
F. 3
34
e captivar a attenção do publico, que escolhera Portugal,
e as nossas campanhas do Alemtejo, porque até na própria
obra nenhum vestígio se manifesta de semelhante preoecu -
pação.
Conventos e amores de freiras, haviam-n'os em França.
Nem lá faltavam também os escândalos correlativos.
Uma allusão local, apenas, se encontra no livro, e por
curioso acaso, essa, perfeitamente insignificativa e inútil para
o publico francez, corrobora tanto a idéa da originalidade
portugueza das Cartas que ainda hoje pode ser verificável.
É a da varanda conventual «d'oude se vêem as portas de
Mertola», allusão que o primeiro traductor comprehendeu
mal, e os eommentadores^ incluindo os nossos, não teem
comprehendido melhor.
De resto, nenhuma descripção do paiz, nenhuma allusão
mais ou menos explanativa ás campanhas do Alemtejo, aos
successos ruidosos do tempo, ás circumstancias da vida lo-
cal^ ou da vida do mosteiro.
Apenas a lembrança de quando o amante «hia para a
guerra», se arriscava n'ella ou d'ella tardava em voltar.
Qual guerra? Contra quem? Não seria natural que, se as
Cartas fossem forjadas, estas coisas se dissessem por outra
forma, ou que uma ou outra vez, pelo menos, a expressão
da saudade servisse de thema á descripção, á explanação
mais ou menos ligeira do meio ou do facto?
A freira tem familia: um irmão, pelo menos. É este, até,
que lhe proporciona um ensejo de escrever ao amante. Co-
mo? Fala d'isso como de coisa que elle sabe perfeitamente.
Fala só para elle.
Como se entenderam os dois, como se approximaram,
como se introduzia elle no convento? Que bellos lances es-
timulantes que o novel! ista, — se fosse um novellista que ti-
35
zesse estas cartas, — poderia ofierecerá curiosidade do lei-
tor parisiense !
Como se fazia a guerra, como se vivia no convento? As
Cartas não dizem nada d'isto. Não são um quadro com dif-
ferentes planos, em que a paixão profunda que retratam se
destaque de um fundo definido, trabalhado, característico,
— imaginoso, ao menos.
Tudo alli é pessoal, simples, intimo.
Um só nome appareee: — o de Marianna.
É sempre um coração que fala em cada linha, como di-
ria a senhora de Sévigné; é sempre a alma desolada e des-
conhecida,— para nos servirmos da phrase fmal das desas-
tradas Respostas, de Loyson : — tantôt de Mariane presente,
tantôt de Mariane absente, quelquefois de Mariane passion-
née, quelquefois de Mariane indifférente, de Mariane douce,
et de Mariane cruelle, mais toujour de Mariane.
O nome do destinatário não se revelia. Nem sequer a
inicial, as reticencias, o M*** da praxe. É um oíEeial fran-
cez, ura capitão de cavallos, como se dizia então; pereebe-
se incidentalmente. Tem em França um irmão e uma cunha-
da. O irmão chama-o. Parte para uma nova campanha. Es-
creve ainda á desolada amante. O que lhe diz?
Nada d'isto se elucida, se desenvolve; nada d'isto se apro-
veita para alongar o entrecho^ para tornar mais interes-
sante a intriga.
Vé-se bem que não se escreve para o publico. Mais ain-
da: que não se traduz senão para dar a nota verdadeira,
original.
Onde está o artista, o litterato, o eseriptor?
Não esta, certo, na correcção e na facilidade do dizer,
nem no torneio e na moda dominante do estylo, nem no
interesse, na habilidade do entrecho . . .
3*
36
Onde se revelia a intenção e o engenho de uma obra li-
terária, a nota descriptiva, a recreação imaginosa, a infor-
mação precisa, o contorno definido, o cunho indeclinável
da invenção romântica ?
Não: — se, como dissemos, as Cartas deveriam fazer, e
lizeram, desde a sua apparição uma impressão profunda,
não foi sob o aspecto particular de uma novidade estran-
geira, de um fruclo exótico trazido de longes terras, mas
por alguma razão análoga á que principalmente fez, vinte e
seis annos depois, o êxito da traducção do latim, pelo conde
Bussy Rabutin, das Cartas de Heloísa e Abeillard: — pela
verdade ingénua e vibrante da paixão que se retratava n'el-
las atravez de um francez pouco lilterario e de uma forma
em que se estão adivinhando as duvidas e as hesitações de
comprehensão e de interpretação da nossa linguagem cor-
rente.
Foi pela mesma força communieativa, nada mysteriosa,
ou perfeitamente humana, pela qual as Cartas de Heloísa e
Abeillard, muito antes de recolhidas e apuradas na collec-
ção monumental de Francisco de Amboise, ou de popula-
risadas na versão de Bussy, — ou pela qual, ainda, muito
mais tarde, as da Menina Lespinasse, — se singularisam
não só na tradição litteraria, mas, se pode dízer-se assim,
na solidariedade sentimental e esthetica das almas bem for-
madas, sem differenciação de nacionalidades, de litteratu-
ras e de epochas.
E no fim de contas, poderia ser este, sob mais de um
aspecto, um dos melhores e mais seguros testemunhos do
fundo original, authentico, do livro publicado por Barbin.
Nas escassas e débeis contestações d'essa authenticidade
avulta sempre a idéa ou o argumento, que melhor podera-
mos chamar vanglorioso preconceito de litteratos, de que só
37
um grande talento de eseriptor experimentado, — Rousseau
parecia exigir até um génio, — poderia ter produzido acpiel-
las singellas cinco cartas.
Pareceu-nos sempre que o argumento poderia valer de
contra-prova.
O que só o talento singular de um grande eseriptor po-
derá simular e forjar, por ser tão natural ou por tão espon-
tâneo e verdadeiro parecer, porque não havia de produzil-o,
como o comprehenderam os contemporâneos, como o teem
comprehendido umas poucas de gerações de eseriptores e
leitores, — a alma simples e ingénua de uma mnlher apai-
xonada e perdida, em todo o vigor da vida^ entre as pare-
des sombrias de um convento, escrevendo ao homem que
a seduzira e abandonara, — agarrando-se desesperadamente
ao seu amor, como o naufrago a um pedaço de madeira
na solidão fatal e impassível do ímmenso?
Poderia ella imaginar, poderia ella comprehender, se-
quer, que as suas cartas fossem atiradas, não ao fogo, mas...
ao publico?
E como e porque havia de esconder-se inteiramente dos
seus contemporâneos e da posteridade, do meio d'aquella
litteratura, por assim dizer, arregimentada, do século xvii,
d'aquella litteratura parisiense, particularmente, que a si
própria se devassava nos recessos mais obscuros e Íntimos,
pelas suas Cartas e pelas suas Memorias, tão opulentas de
informação como de espirito, — como e porque havia de es-
conder-se esse eseriptor admirável, cuja producção tão ver-
dadeira fora que se confundia com a verdade, e cujo talento
teria sido até excedido pela inaudita modéstia com que as-
sistira, obstinadamente callado e obscuro, ao seu trium-
pho. . . e á sua exploração?
38
IV
Acabámos de roçar por uma das objecções senão mais
ponderosas e sérias, mais favorecidas e vulgarisadas por
um certo preconceito meio social e meio litterario, de que
todos os progressos scientiíicos da moderna critica não teem
conseguido emancipar muitos espirites.
Esta objecção, que para nós é de todas a mais inconsis-
tente, tem mesmo uma espécie de historia erudita.
Derivou-se de uma phrase de Rousseau, desentranhada
de uma das suas cartas menos conhecidas, e pouco mais
tem feito do que glossar essa phrase."
Escrevendo a D'Alembert, a propósito do artigo Genève
da Encyclopedia, uma longa epistola dissertativa sobre o pa-
pel da mulher na sociedade, e em particular no theatro,
atravez dos tempos, João Jacques dizia*:
— «As mulheres, em geral, não amam arte alguma, com
nenhuma se entendem, e nenhum génio teem. Podem ven-
cer nas pequenas obras que só exigem leveza de espirito,
gosto, certa graça, ás vezes até alguma philosophia e algum
raciocínio. Podem adquirir sciencia, erudiíção, talentos e
tudo que se adquire á força de trabalho. Mas este fogo ce-
leste que abraza e enleia a alma, este génio que consome e
devora, esta eloquência ardente, estes transportes sublimes
que levam os seus enlevos ao fundo dos corações, faltarão
* Oeuvres completes de J. J. Rousseau. — Nouv. ed. — Paris,
Didier, 1837.
39
sempre nos escriptos de mulheres. São todos frios e boni-
tos como ellas; terão o espirito que quizerdes: alma é que
nunca. Serão cem vezes mais razoáveis do que apaixona-
dos. As mulheres não sabem nem descrever nem sentir o
verdadeiro amor. A Sapho, apenas, que eu saiba, e uma
outra, mereceriam ser exceptuadas. Apostaria quanto ha
no mundo em como as Cartas portnguezas foram escripías
por um homem. Ora, em toda a parte onde as mulheres do-
minam, o seu gosto deve dominar também, e ahi está o que
determine o do nosso século.» '
Pareceu-nos bem dar o trecho completo, pois que ape-
nas a referencia gryphada apparece, de vez em quando,
triumphantemente citada, em copia de copia, como séria
objecção á authentidade das Cartas. Particularmente entre
nós, raros serão os que a tenham lido na obra de Rous-
seau.
É claro que o paradoxo mysantropico do citoyen de Ge-
nève, como elle o subscreve, está julgado e abandonado de
ha muito, ou, melhor, desde a sua apparição.
É curioso que n'essa mesma carta, João Jacques dizia:
— «O amor é o reinado das mulheres. São ellas que ne-
cessariamente dão n'isto a lei, porque, segundo a ordem
da natureza, a resistência pertence-Ihes, e os homens não
1 O director d'esta bella edição de 1834, das Obras de J.
Jacques, pozera a este trecho a seguinte nota : — 'iOnsaitposi-
íivement aujoiírdliui que ces Lettres, dont M. Barbier a donné
en 1806 une nouvelle édition, sont réellement d'une religieuse
portugaise, qui s'appeloit Marianne Alcoforada, et qu'elles fu-
rent adressées au comte de Chamilly, dil alors comte de Saint
Leger. Voyez la notice de M. Barbier en tête de son édition
et le feuilleton du Journal de 1'Empire du 5 janvier 1810.»
40
podem vencer esta resistência senão á custa da sua liber-
dade.»
Geralmente não é lembrada a resposta de D'Alembert.
D'Alembert não conhecia naturalmente as Cartas portv-
guezas.
— «Não podemos dissimular — diz elle — que nas obras
de gosto e de agrado, ellas (as mulheres), attingem melhor
êxito do que nós, sobretudo n'aquellas de que o sentimento
e a ternura devem ser a alma, porque para dizerdes que as
mulheres não sabem descrever nem sentir o verdadeiro amor
é necessário que nunca lêsseis as Cartas de Heloisa ou que
as tenhaes lido, apenas, n'algum poeta que as estragasse.
Confesso que este talento de pintar o amor ao natural, ta-
lento próprio de um tempo de ignorância em que só a na-
tureza dá lições, pode afrouxar no nosso século, e as mu-
lheres, tornando-se a nosso exemplo, mais galantes e apai-
xonadas, saberão em breve amar tão pouco como nós, e
dizel-o tão mal, egualmente; mas será isso culpa da natu-
reza?. . . »^
Seja-nos permiltido citar a propósito d'aquella opinião de
Rousseau a observação de um grande e delicado talento arre-
batado permaturamente pela morte á litteratura portugueza :
— «É exactamente a inducção contraria que eu tiraria»
— diz Lopes de Mendonça- — passando-as (as Cartas) pe-
los olhos. O estylo epistolar ninguém o possue mais flexí-
vel, mais aflFecluoso, mais pittoresco, mais suavemente aban-
donado e espirituoso do que as mulheres. As cartas de Mad.
Sévigné, as memorias de Mad. de Caylus, e ainda mesmo
no próprio tempo de Rousseau as delirantes e apaixonadas
1 Ed. cit. das Oeuvres completes de J. J. Rousseau.
2 No jornal A Semana.
4i
cartas de Mad. Lespinasse, saltam iramediatanienie á me-
moria para protestarem contra uma tão absurda proposi-
ção ... As cartas de uma religiosa portugueza, seja qual
fôr a sua origem histórica, extremamente duvidosa e in-
certa, dão a conhecer a mão e a alma de mulher . . . »i
Uma observação ainda: — não é extremamente notável
que todas as objecções feitas á authenlicidade original das
Cartas pareçam conter, invariavelmente, em si, um argu-
mento, a mais, em favor da tradição d'ella? O próprio Rous-
seau como que se encarregou de refutar praticamente a sua
theoria paradoxal. . . escrevendo a Nova Heloísa.
Que se compare toda a sentimentalidade, toda a verdade
imaginativa, artística, por vezes artificiosa d'elle, com a
verdade, com o amor, com a paixão real das Cartas da He-
loísa verdadeira ! . . .
Mas, como dissemos, não é precisamente a objecção es-
travagante e inscientifica, — principalmente inscientifica, —
de João Jacques, na sua formula inicial, rudemente gené-
rica, que se oppõe ainda á tradição da authenticidade femi-
nina e portugueza das Cartas.
É já tempo de completarmos o parecer de Camillo Cas-
tello Branco, 2 que embora isolado, o que honra a corajosa
1 II est inutile . . . d'nisister, après tant d'autres, sur Tapti-
tude singulièr que les femmes opportent au genre épistolaire
en vertu des qualités et des faiblesses mêmes de leur nature.
II est leur domaine au même titre que la vie privée. Dans Tor-
dre intellectuel, c'est le seul qu'elles aient agrandi et renou-
velé; le seu! oúelles aient falte preuve d'une origlnalité puis-
sante, complexe, variée; le seul, en un mot, oíi elles aient
creé. — E. Crépet, Três. epist. Paris 1864.
2 Loc. cit.
42
e honrada franqueza do illustre escriptor, cresce em aucto-
ridade, inegavelmente, na questão que agora visa.
— «J. Jacques Rousseau» — diz elle — «apostava que as
cartas da religiosa haviam sido escriptas por um homem, e
nós também, por diversas causas das do philosopho das
Confissões. Elle refuta que mulheres escrevam de amor as-
sim tão sentidamente; nós impugnamos que, em 1663 (aliás
1668), no periodo de D. Bernarda Ferreira de Lacerda e
soror Violante da Cruz, uma senhora escrevesse n'aquelle
estylo parco, natural, desenfeitado, desluzido do ouropel do
tempo. As nossas duvidas assentam na formação, e não tem
<|ue ver com a esthetica das amorosas suavidades, da en-
tranhada saudade que chora n'essas íartas.»
Mesmo sem intenção insidiosa poderia suscitar-se esta
duvida: — se o caso seria mais natural n'um homem, no pe-
riodo de D. Francisco Manuel, e ainda do padre António
Vieira; ou, quando, suppondo francez esse homem, se é
aquella a linguagem epistolar, para não falar de outra, que
evoluciona de Guez de Balsac a Hamilton, passando pela
senhora de Sévigné. ou do Palácio Rambouillet ao Palácio
do Temple, passando pela corte de Sceaux, ou dos esprits
doiix aos roués, passando pelas |3?^ecí05as . . .
Certamente a linguagem das Cartas não é a de Bernarda
Ferreira, nem a paixão que n'ellas chora veste «as delambi-
das finezas» dos poetas do tempo, na pbrase de Camillo. Mas
de que a corrente dos requintes estylisticos não assoberbava
todos os espiritos, ou não afogava todas as pennas, dá-nos o
grande escriptor, precisamente no periodo accusado, irre-
cusáveis exemplos. Não vale, porém, a pena discutil-os.
Para nós, n'esta questão da forma, quer os que crêem
na authenticidade das Cartas, quer os que as teem por apo-
cryphas, chegaram, particularmente em Portugal, por ca-
43
minhos oppostos a um erro commum: — o de confundirem
o trabalho litterario com a obra inconsciente, o resultado
artístico com a expressão intima, o que se escreve para o
publico com o que se diz a um amante.
D'aqui, as mais extraordinárias conclusões: — a de en-
tenderem uns que o texto da versão francezaé apenas uma
pallida imagem da obra da pobre freira, não tanto por in-
comprehensão litteral do traductor, como porque ella teria
escripto na linguagem florida ou purista de Francisco Ma-
nuel ou de Frei Luiz de Sousa; — a de imaginarem outros
que não entraria nas posses estylisticas de uma religiosa,
perdida no fundo de um convento e de uma provincia de
Portugal, aquella expressão singela, sentida, verdadeira, de
uma grande paixão, que elles teem por privilegio da expe-
riência e do officio de litteratos.
Pois não bastará considerar friamente a simples situação
que produzia aquellas cartas para afastar qualquer idéa de
uma influencia ou de uma elaboração propriamente littera-
ria na redacção d'ellas?
Se era realmente uma pobre religiosa obscura, perdida
no fundo de uma provincia e de um convento, que ao im-
pulso de uma paixão profunda e absorvente como em todo
o texto se revelia, escrevia a um amante estrangeiro que
mal conhecia a lingua, como imaginar n'essas cartas, pom-
pas e requintes de estylo mundano, ou como de não se pau-
tarem pelos primores e artifícios que se davam á moda e
ao publico, fazem suspeita á authenticidade d'ellas?
Não se sente, não se advinha alli o torneio galante ou
artificioso das composições femininas destinadas á leitura
ou á meditação de todos, moldadas no gosto ou na educa-
ção litteraria do século?
Por certo que não, mas em vez d'isso parecer uma ob-
44
jecção á originalidade d*aquella correspondência intima e
obscura, devera antes valer-lhe de contraprova decisiva.
Pinheiro Chagas •, com a sua fina e larga experiência
litteraria, com a sua notável percepção critica, diz o se-
guinte : — « . . .0 traductor, um tal Cuilleraque, parece que
interpretou com acerto as expressões apaixonadas da nossa
infeliz compatriota, porque as Cartas conservam no texto
francez a ardente simplicidade que é o signal evidente de
uma paixão sincera que não procura arrebiques de estylo,
mas que se exprime simplesmente, com a eloquência expon-
tânea que brota do coração, d'onde vem, no entender de
Vauvenargues, os grandes pensamentos.»
Theophilo Braga 2, não hesita em affirmar, e n*este ponto
confessamos que não pedemos inteiramente acompanhar o
illustre critico, que as Cartas são ^to único producto ver-
dadeiramente sentido, verdadeiramente bello, que a alma
portugueza apresenta no século xvn.» E com irrecusável
verdade accrescenta: — «Podem pôr-se a par das Cartas de
Heloisa com a diflferença para melhor que Marianna Alco-
forado ignorava as preoccupações do estylo. As observações
intimas feitas pelos maiores génios e artistas, como Shaks-
peare ou Goethe, não retratam com mais vida as paixões
do que a pobre Marianna descrevendo a sua situação de mu-
lher abandonada. Como aquelle que volteava por entre a
multidão^ com a lanterna accesa á busca de um homem,
como elle podemos findar este exame do Seiscentismo, por-
que achámos uma inconsciente obra de arte que é bella pela
sua verdade.»
^ Os dramas celebres do amor. (Educação pop. Ertcyclopedia
instr.) Lisboa 1874.
2 Loc. eit.
45
Como todas as modas, — e como é até da própria natu-
reza d'ellas — , em litteratura, a de uma certa maneira de
dizer, determinada ou influenciada quer por uma inclina-
ção de educação e de gosto, na sociedade polida e littera-
ria, quer pela força attractiva ou assimilladora de certos
modelos ou de certas originalidades que se sobrelevam e
impõem ao uso e ao gosto commum, não ha de rasoavel-
mente suppor-se por tal forma absorvente, penetrante, ni-
veladora, que chegue a dominar, por egual, não só em todas
as camadas e situações sociaes, mas em todas as condições,
em todos os estados, em todas as manifestações da senti-
mentalidade e do pensamento individual.
Será muitas vezes diíTicil, mas é indispensável, distinguir
na linguagem, na expressão, por dizer assim, plástica da
alma humana, dois estados, duas condições, podemos dizer
embora pouco rigorosamente, duas formas inicial e neces-
sariamente difTerentes, — quantas vezes até oppostas? — uma,
immediata, passiva, inconsciente, simples ainda quando,
como acontece em certas linguas, como certas naturezas,
em dadas raças, — entre nós por exemplo — , frequente-
mente colorida por uma espécie de materialismo imagi-
noso;— a outra: a condição, o estado, a forma que chama-
remos reflexa, meditada, consciente sem que por isso tenha
necessariamente de deixar de ser espontânea, sobre a qual
operam e actuam as correntes e influencias propriamente
46
iitterarias, ou como se tem convencionado chamar: — eru-
ditas, que bem pouco o são, muitas vezes.
Não estamos nós todos os dias applicando despreoecupada-
mente esta distincção tão natural e justa, na investigação e
no estudo da poesia e do romance popular?
Não se nos impõe ella precisamente na critica de muitas
obras e de muitas individualidades litterarias?
Lembramo-nos d'um exemplo que não parecerá deslo-
cado. O dos dois textos das Reflexões sobre a Misericórdia
de Deus, o primeiro, o original, o da Mademoiselle, ou como
lhe chamam, não sem razão, Saint Simon e Romain Cornut,
o da Madame de La Valliere: — o texto incorrecto, intimo,
que era só para quem o escrevia; — o segundo, o texto
revisto, emendado, pensado pela senhora de Genlis ou por
Bossuet, na idéa apenas de tornar mais grammatical^ mais
litteraria, mais á moda a linguagem.
Com bem melhor razão do que das Cartas da pobre freira
portugueza, poderá o illustre irapugnador d'eslas objectar
que em pleno período das «Grandes Senhoras», e á beira
da corte do «Grande Rei», uma senhora franceza^ e demais
sendo a senhora de La Valliere, ou como quizeram outros,
a senhora de Longueville ou a senhora de Montespan, não
escreveria «n'aquelle estylo parco, natural, desenfeitado,
desluzido do ouropel» ... e até de grammatiea.
Que não se pense, porém, que não temos exemplos de
casa, — exemplos portuguezes, — que contrariem e corrijam
a confusão alludida.
A epistolographia portugueza está poueo menos que
por explorar e reconstruir, posto existam d' ella exempla-
res e coUecções notáveis, particularmente em relação aos
dois últimos séculos, e sem exclusão da procedência feme-
nina.
47
Do mesmo período das Cartas da freira, existem muitas
outras que por egual contrariam os moldes litterarios das
Lencastres e das Violantas.
Aqui temos nós algumas dezenas de cartas da Marqueza
de Cascaes a seu filho, que esperamos publicar um dia, e
que apesar de escriptas n'uma intensão educativa, sob as
influencias do gosto e da litteratura da corte, estão longe
de perder n'aquelles moldes, a expontânea originalidade do
pensamento e da forma.
Mas citaremos apenas um exemplo perfeitamente com-
temporaneo das Cartas da religiosa, fornecido exactamente
por uma religiosa também, que a dois passos e na mesma
cidade de Marianna, descreve ao confessor as intimas mo-
ções do seu amor mystico, ao mesmo tempo talvez que a
outra descreve ao amante as saudades e os arrobamentos
do seu amor naturalista.
E está impresso e publicado o exemplo, n'um livro sin-
gularmente notável para o estudo da bysteria mystica dos
conventos, livro e estudo deploravelmente esquecidos pelos
nossos escriptores.
Nos Fragmentos da vida da Madre Marianna da Purifi-
cação, ctdiscipula de Santa Thereza de Jesus», no cons^ento
da Esperança, de Beja (166i-169o), encontram-se nume-
rosos trechos das cartas e narrativas intimas em que ella
descrevia «no estylo parco, natural, desenfeitado» da sua
ingénua e piedosa intimidade, os extraordinários, podera-
mos dizer, os realistas «Ímpetos», como ella lhes chama, do
seu absorvente e extravagante sensualismo mystico.
Exactamente, como que a confirmar a nossa observação
e a corrigir rudemente a errada noção litteraria que com-
batemos, essas confissões, essas notas intimas destaeam-se
da moldura pomposa do estylo alambicado e erudito do Fr.
48
Caetano do Vencimento, seu colleecionador, um digno col-
lega das Lencastres e das Violantas. '
Ha até uma coincidência notável : — é a de certa maneira
de dizer, a de certas fórmulas da linguagem corrente e vul-
gar, communs aos fragmentos de Marianna da Purificação
e ás Cartas. . . da outra.
A isto teremos occasião de nos referir.
Mas para que alongar mais estas reflexões?
Se nem podemos suppor que as próprias escriptoras mais
affeitas e cuidadosas em manejar perante o publico a lin-
guagem litteraria do tempo, — de D. Bernarda Ferreira,
ou do nosso, — conservassem a preoccupação d'ella nas si-
tuações e relações da sua vida intima, como poderamos
exigir á correspondência d'uma pobre senhora que escreve
apenas pela necessidade e ao impulso de uma expansão de
dor, — qne escreve somente, desolada e afflicta. ao homem
a quem «toda se entregou» e que mal conhece a lingua em
que ella lhe escreve, — como poderamos exigir a essas car-
tas o luxo, o artificio, o enfeite, o ouropel litterario?
0 que é natural, o que deve corroborar a authenticidade
d'ellas, é aquella mesma linguagem passiva^ desenfeitada,
immediata, aquellas idéas ou aquelles sentimentos qui n'ont
fait qu'un saut du ca^nr sur le papier, na phrase felicíssima
do auctor de Mademoiselle Justine de Liron.
Estudando a obra de Delécluze, em 1832, um dos críti-
cos mais finos e experimentados que conhecemos, Sainte
Beuve, depois de analysar n'um delicioso artigo as varias
1 Fragmentos da prodigiosa vida da muito (avorecida, e ama-
da Esposa de Jesus Christo a venerável Madre Marianna da
Purificação & pelo M. R. M. Fr. Caetano do Vencimento, & —
Lisboa, 1747.
4d
formas litterarias sob as quaes «se traduzem estes senti-
mentos delicados de algumas almas» produzindo «o romance
intimo», observa:
fO melhor, quanto a nós é circumscrevermo-nos estri-
ctamente ao verdadeiro e visar o romance o menos possí-
vel, omittindo algumas vezes com gosto, mas escrupulisando
em ajuntar qualquer coisa. Assim as cartas escriptas no mo-
mento da paixão, e que reflectem, sem esforço de memo-
ria, os momentos successivos d'ella, são inestimáveis e de
um encanto particular na sua desordem. Conhecem-se as
de uma Portugueza, muito curtas, infelizmente, e trunca-
das. As da menina de Lespinasse, longas e desenvolvidas
e sempre renascentes como a paixão, teriam maior encanto
se o homem a quem são dirigidas não impacientasse e não
ferisse constantemente pelo ar pedante que se lhe attribue
e pelo seu egoismo demasiadamente pronunciado. As car-
tas da menina Aissé, as menos conhecidas de todas estas
cartas de mulheres, ^ etc.
E Eugénio Crépet, o intelligente e dedicado coUecciona-
dor do Trésor Épistolair-e de la France^, adoptando o pa-
recer do sceptico Stendhal, diz o seguinte : — « . . . as ficções
dos poetas heaux-esprits do século xvii são simplesmente ri-
dículas; um bom juiz em tal matéria, Beyle, teve muita
razão em dizer no seu livro do Amor: «As elegias de Parny
e as Cartas de Heloísa a Abeilard de Colardeau, são pin-
turas bem imperfeitas e bem vagas quando as comparamos
com algumas cartas, . . . com as de uma religiosa portu-
gueza, com as da menina de Lespinasse», etc.
1 Du Roman intime ou Mademoiselíe de Liron — 1832 {Port.
de femmes par C. A. Saint Beuve. Paris 1862.
'^ Le Trésor êpistolaire de la France etc, par Eugène Crépet.
— Paris 186Í-1865.
F. 4
50
O leitor não nos leva a mal, com certeza, estas citações.
Para que havíamos nós dizer, muito peior, o que está tão
exeellentemente pensado e escripto não só pelas melhores,
como pelas mais insuspeitas auctoridades ? Até Beyle, o
grande sceptico, n'aquelle mesmo livro onde elle confes-
sava que fazia todo esforço em impor silencio ao coração ;
em ser secamente sceptico I . . .
VI
Mas Íamos esquecendo o sr. Beauvois, o piedoso impu-
gnador de que um «gentil homem» , um marechal da França
christianissima do Rei Sol, possa carregar na sua devota
memoria com a fraqueza de ter na mocidade endoidecido
de amor uma religiosa.
Ha uma objecção do illustre escriptor que embora não
vise nem o sexo nem a forma litteraria do auctor das Car-
tas, pode perfeitamente entrar n'esta altura da nossa já bas-
tante alongada palestra.
É a da «incoherencia das idéas» e a «dos factos contra-
ditórios i» que se contém nas Cartas.
Boa parte d'este senão, pertence, e o sr. Beauvois, mes-
mo, teve occasião de verifieal-o, á confusão que diversos
editores fizeram das cinco cartas da freira com outras pos-
teriormente publicadas sob a declaração terminante de que
não eram d'ella.
Feito este desconto, que é larguíssimo, o que fica?
O auctor, observa o sr. Beau'>^ois «escreve com tanta
54
leviandade qae nem se lembra no fim da carta do que es»
creveu no principio».
Grave reparo, na verdade, o mesmo e até quasi nos
mesmos termos do d'aquelle critico a que já nos referimos,
que precisamente considerava como qualidade caracteristica
das verdadeiras cartas de amor começarem a escrever -se
sem se saber o que se diria e çtfterminarem-se sem se saber
o que se dissera.
Na carta considerada como a 4.*, a religiosa pergunta ao
amante porque não lhe tem escripto, e declara-se muito
infeliz se elle não teve oecasiãc de escrever-lhe depois da
sua partida, «o que está em contradição absoluta» observa
solemnemente o sr. Beauvois «com outra passagem da mes-
ma carta» em que ella accusa o destinatário de conservar-
se n'uma profunda indifferença, sem lhe escrever senão
cartas frias, cheias de repetições, «a metade do papel em
branco», etc.
Pode não haver uma contradição tão absoluta como pa-
rece. Do que a pobre senhora se queixa é de que elle lhe
não escrevesse como ella imaginava, como ella queria, com/)
elle lhe promettera, naturalmente : — longas cartas apaixona-
das, saudosas, — das terras que fosse atravesando.
E depois, como esperamos mostrar, esta carta não é
realmente a 4.', é mais próxima da partida do amante, e a
partida a que allude pode não ser a do Alemtejo, mas a de
Portugal. Entre as duas poderão estar os pequenos bilhetes,
as taes cartas frias e lacónicas !
Para que nos demoramos porém n' estas hypotheses?
• Pois será mais natural que um escriptor, que um hei
esprit, forjando uma correspondência a que pretende dar
todo o caracter de authenticidade original, commetta taes
contradições a poucas linhas de distancia, do que uma pobre
4#
52
mulher escrevendo afflicta, n'Qma expresão irreflectida de
magoa^ de desconfiança e de saudade?
É o caso de dizer, como a menina De Launay a propósito
de uma bem maior contradição apparente, — ^o verdadeiro
é como pode ser e não tem outro merecimento senão o de
ser o que é. As suas irregularidades são muitas vezes mais
agradáveis do que a perpetua symetria que se encontra em
todas as obras de arte.»
Mas o sr. Beauvois continua «o exame d'estas incohe-
rencias». Heróico trabalho, na verdade, o de destrinçar e
discutir gravemente as incoherencias de que é capaz ... o
amor.
Segundo a primeira carta, — observa o estimável sábio, —
o official francez escrevera já algumas outras cheias de coi-
sas inúteis, — o que, de passagem, digamos que parece con-
firmar a observação que fizemos acerca d'aquellas a que se
refere a supposta 4." das da religiosa. Escrevera «uma ul-
tima entre outras, «ce quien suppose plusieiírs » ^ nota pers-
picazmente o sr. Beauvois.
E accrescenta: — «Como pode ella^ então, ter esquecido
que elle lhe escrevera muitas vezes depois da sua partida ?»
Meu Deus I como tão \Ti1garmente se esquecem os aman-
tes, de tudo o que não é actual, o que não lhes satisfaz im-
mediatamente os Ímpetos, os desejos, os impaciências da sua
paixão. . . Além de que o illustre critico parece-nos enga-
nar-se um pouco.
A primeira carta não fala precisamente de varias cartas,
ou de uma ultima carta escripta depois d'aquella partida.
Eása primeira é que o foi suppondo já o destinatário em
França ou que o encontraria alli.
Ma-s é certo que a segunda o accusa de não ter escripto
durante seis mezes, e então, diz o sr. Beauvois, «como a re-
53
ligiosa deveria ter escripto a quarta pouco tempo depois, não
se explica como elle tivesse podido fazer-lhe uma confi-
dencia molesta cinco ou seis mezes antes», — segundo esta
ultima carta accusa — «tendo deixado Portugal e cessado,
havia muito tempo, de eommunicar-se com ella de viva
voz».
Bem mais difíicil fora, realmente, de explicar o caso se
as Cartas fossem um romance, um trabalho forjado e pen-
sado por um escriptor, por um bel esprit, como imagina o
critico. Não sendo, e não estando datadas as Cartas, é fácil
suppor, — e logo veremos como esta supposição se converte
em certeza — , que a ordem em que ellas se suceedem na
publicação, não seja a ordem em que realmente se succe-
deram.
Explica-se então, o que, do contrario, se não podesse, —
que poderia, — explicar-se, sendo as Cartas authenticas,
menos explicável fora sendo ellas forjadas.
Fácil fora ensaiar outras explicações, mas não estamos
fazendo um jogo de dialéctica: — damos apenas a que nos
deu o estudo sincero dos textos.
De certo, se a incoherencia apontada provasse contra a
authen ti cidade das Cartas, como e porque não provaria tam-
bém, e melhor, contra a hypothese de serem tranquilla e in-
tencionalmente forjadas para passarem como authenticas?
Poderamos observar simplesmente que mais natural do
que cahir n'essa incoherencia o escriptor que procurava
dar-lhes todo o caracter de verdadeiras, fora calcular mal
um ou outro praso decorrido, uma pobre senhora, escre-
vendo attribuladamente ao amante que a abandonara.
Estamos, porém, realmente convencidos e esperamos
mostrar, que a 4." carta da publicação é anterior á outra ou
deve ser contada quando muito por 3.
54
Mas, toda a impugnação do sr. Beauvois tem por obje-
ctiva arredar da memoria de um personagem illustre a tra-
dicção de que foi este o destinatário^ e consequentemente
o inconfidente, das Cartas da freira portugueza.
É, pois tempo de irmos ao encontro d'esta tradição.
VII
Como dissemos, Barbin publicou as cinco cartas sob o
simples titulo de Lettres portugaises, no começo de janeiro
de 1669.
Foi certamente extraordinário, — singular, — o acolhi-
mento que teve o pequeno livro.
Antes, muito provavelmente, de que esse êxito sugge-
risse, com.o logo no primeiro anno suggeriu, o additamento
de uma segunda parte ou de novas cartas portuguezas, á
publicação inicial, Pedro du Marteau, o celebre livreiro de
Colónia, lançava duas edições das cinco cartas, somente:
— uma, a encontrada e descripta por Sousa Botalho (mor-
gado de Matheus), sem data; — outra, até agora absoluta-
mente desconhecida, — datada d'esse anno, e que só depois
da nossa primeira edição da Soror podemos examinar.
Como as que deviam seguir-se, essas edições reproduzem
o aviso ^ao leitor, y de Barbin, com uma diíTerença, porém,
de singular importância: — a primeira, reproduz esse aviso
sem alteração alguma; a segunda, a datada, corrige com
os nomes do destinatário e do traductor, a discreta omissão
d'esses nomes. Outra differença ainda, é a dos títulos. Nas
55
edições de Pedro du Marteau, o de uma, a descripta e pos-
suída por Botelho, é este: — Lettres d'une rehgieuse portu-
gaise; o da outra, diz assim : — Lettres d'ainour d'une re-
Itgieuse escrites au Chevalier de C. Ofjicier François en Por-
tugal.
Com estas edições primeiras de Barbin e de Marteau
concorreu logo uma outra assignada de Amsterdam pelo
livreiro Isaac van Dyck, que costuma reunir-se, — como
tem direito egual, a datadn de Marteau, — ás collecções
elzeverianas e que Brunet suppõe ter sido impressa, não em
Amsterdam, mas em Bruxellas.
Não se encerra, porém, o anno de 1669, sobre estas
quatro edições apenas, o que já seria notável.
Barbin reimprime a sua e acrescenta-lhe uma segunda
parte, — uma collecção nova à^Q portuguesas, — que acaba
de imprimir em 20 de agosto.
Em sete mezes, pois, não só haviam cinco edições, mas
sob o estimulo do acolhimento feito pelo publico ás cartas
da freira portugueza publicava-se,— porque digamol-o já,
hesitamos em dizer com a opinião geral, que se forjava, —
uma collecção nova de cartas portuguezas, ás quaes Barbin
ou o seu collaborador lilterario, embora servindo-se do
mesmo privilegio obtido para a publicação das primeiras,
nunca pensou em attribuir a mesma procedência e o mesmo
destinatário d'estas.
A segunda parte compõe-se de sete cartas que um novo
aviso «ao leitor», diz serem de une femme du monde, ex-
plicando francamente ^que o ruido feito pela traducção das
cinco cartas poiiuguezasT incitara nalgumas pessoas de qua-
lidade a tradusir outras que lhes cahiram nas mãosy, e o
editor a publical-as na idéa de que sendo escriptas «n^m
estylo differcnte do de uma religiosat poderia agradar a dif-
S6
ferença ou não ser tão desagradável a nova collecção —
9.qu'on ne me sache guelque gré de le donner au public» . . .
Na forma e nas indicações de nomes e de costumes, pa-
rece revelar-se, como geralmente se tem acreditado, que
são apocryphas e forjadas estas cartas de «uma senhora da
sociedade portugueza». Não temos, porém^ de nos occupar
d'ellas.
O que é muito curioso, é que, como melhor poderá ver-
se da nossa nota bibliographica, os livreiros e alguns críti-
cos,— e, o que é espantoso, até o primeiro traductor por-
tuguez, o celebre Filinto Elysio, já em 1810! — viessem a
confundir e a misturar as sete e as cinco cartas como se
fossem todas da religiosa.
Ainda em 1669 Pedro du Marteau reproduz a segunda
parte com o mesmo prefacio que a explica e distingue na edi-
ção de Barbin, — mas, e d'aqui data realmente amystiíica-
ção, — com o mesmo titulo da primeira parte e das primei-
ras edições de Colónia: Lettres d'une réligieuse etc.
Outro facto extremamente notável, — e para nós mais si-
gnificativo do que se tem supposto, — e o da apparição,
n'este mesmo anno, de uma collecção de respostas ás cinco
cartas da freira portugueza, editada, não por Barhin, mas
por J. Baptista Loyson, — outro livreiro parisiense bastante
conhecido.
Precede-a também um aviso «ao leitor», em que Loyson
começa por dizer que a curiosidade despertada pelas cinco
cartas da religiosa,— «escriptas a um gentil homem de volta
de Portugal a França», é que o persuade de que o leitor
não terá menor curiosidade em ver as respectivas respos-
tas. Foram-lhe estas fornecidas por um dos amigos, — que
lhe é desconhecido^ — d'aquelle gentil homem.
Este amigo desconhecido do editor, e de quem elle re-
57
cebe, sem mais ceremonias, as respostas que se apressa em
publicar como aulhenticas, «assegura-lhe que estando em
Portugal obteve as copias, aescriptas em linguagem dopaiz,
das mãos da abbadessa de um mosteiro, que recebia as car-
tas e as guardava, em vez de as entregar á freira a quem
eram dirigidas, p
Depois d'esta grosseira historieta, em que parece revelar-
se já a intenção de justificar o destinatário das cinco cartas
da religiosa, o aviso «ao leitor» plagia um largo trecho do
da edição inicial de Barbin, a começar pelas palavras: —
«Não sei o nome de quem as escreveu, nem de quem fez a
traducção» , — e termina por esta curiosa declaração : — «As-
seguram-me que o gentil homem que as escreveu voltou
para Portugal. y>
Apesar da declaração terminante do editor, de que não
conhece o amigo do gentil homem que lhe fornece as res-
postas d'este e de que não sabe os nomes de quem as es-
creveu e de quem as traduziu ^ o privilegio da publicação
indica que ellas foram traduzidas pelo Sieur D. F. D. M.
e, segundo Asse, acompanha-o uma cessão do auctor, da-
tada de 3 de fevereiro de 1669, isto é, de um mez apenas
depois da publicação das cinco cartas iniciaes por Barbin.
Se a primeira idéa que naturalmente occorre, e que o
exame das Respostas não faz mais do que inteiramente con-
firmar, é a de que ellas são um embuste grosseiro que nem
por algum merecimento litterario se faz desculpar, devemos
confessar que uma suspeita nos tem obstinadamente acom-
panhado essa idéa.
É a de que a par da exploração do ruido e do interesse
que as cinco cartas da freira portugueza despertavam, houve
também a intenção de attenuar a antipathia, a censura, que
porventura se manifestaria em relação ao destinatário in-
58
grato e inconfidente, ao mesmo tempo que se procuraria
desnortear a opinião acerca de quem elle realmente fosse.
Não podemos resistar a observar, aqui, que exactamente
por este tempo reentrava em França, de uma nova cam-
panha, o indigitado destinatário e revelador das cartas.
A idéa capital das Respostas é mostrar-nos o seductor da
pobre freira portugueza sob um aspecto perfeitamente di-
verso d'aquelle que as Cartas naturalmente haviam de at-
tribuir-lhe no conceito dos corações sensíveis.
Longe de abandonal-a brutalmente, e de não ter com-
prehendido nem merecido aquella paixão profunda e inge-
nua^ o illustre aventureiro seria, segundo as Respostas, o
mais fiel, o mais dedicado, o mais correcto e cavalleiroso
amante.
Cheio de saudades e de boas intenções, não pensaria se-
não em abandonar prazeres da corte, aífectos de familia,
seducções de futuro pela sua querida religiosa desolada e
perdida n' aquelle paiz longínquo e simi-barbaro onde o sr.
de Saint-Romain dizia, em 1665, para obter certos adian-
tamentos fi nanceiros, que não encontraria sequer uma ba-
teria de cozinha regularmente digna de um representante
da França ! . . .
Se outra coisa poderia ter-se imaginado, fora porque as
cartas do apaixonado gentil-homem eram cruelmente se-
questradas por uma severa abbadessa, que logo depois não
hesitava em offerecel-as por copia a um amigo d'elle, natu
ralmente tão desconhecido d'esta austera senhora como do
editor que se apressava em revelai as ao publico.
De resto assegurava-se que o malaventurado amante vol-
tara para Portugal, e as suppostas Respostas esforçavam-se
por accentuar esta idéa, que o não abandonava, de volver
aos braços da saudosa Marianna.
59
Muito discreto, o amigo, que exactamente n'esta occasião
offerecia a um editor a exploração do encantador roman-
ce I .. .
E como tudo isto se passara rápido I . . .
E como deveriam ficar desconcertados os que julgavam
poder sobrescriptar a paixão ardente e as cartas amantissi-
mas da freira portugueza a um certo nome conhecido e bri-
lhante que estava bem longe de vir esconder e continuar o
amoroso idyllio na duvidosa tranquillidade das charnecas
do Alemtejo, á beira da inquisição de Évora. . .
Como veremos, o nome do illustre conquistador da po-
bre religiosa era segredado e apontado, naturalmente com
uma discripção correspondente á que elle e os seus amigos
haviam mostrado na exhibição dos trophéos d'aquell a con-
quista.
Esse nome, já sobejamente illuminado por uma tradição
brilhante na corte e na milicia de Luiz xiv, ia entrado no
caminho das mais elevadas distincções que havia de condu-
zil-o ao quadro glorioso dos marechaes de França.
A pequena aventura das campanhas de Portugal não lhe
tolheria o passo, certamente, mas o ruido d'ella, a impres-
são extraordinária produzida pelas Cartas, aquella figura
sombria e desolada da pobre religiosa que pela profunda
eloquência da sua paixão fatidicamente se prendera ao nome
e á vida do seductor, poderiam tornar-se-lhe mais de uma
vez incommodas e oppressivas no futuro.
Seria a publicação das Respostas intencionalmente desti-
nada a arredar, a dissolver, a desarmar, pelo menos_, a ver-
são corrente?
É difficil deixar de suspeitar que o fosse, mas o que é
certo é que o não conseguiu, nem logrou evitar sequer que
em breve se definisse, em novas edições, a attribuição que
60
o livro de Loyson parecera dever ou pretendera realmente
desmentir.
Á invenção capciosa das primeiras Respostas seguiu-se
outra que lealmente se revelava como simples ensaio litte-
rario.
Foi uma nova coUecção de Repouses aux lettres porlu-
gaises, impressa em Grenoble, ainda no mesmo anno de
1669, pelo livreiro Robert Philippes, e composta de seis
cartas. O auctor declarava tentar apenas trabalho análogo
ao que Aulus Sabinus fizera em relação a algumas das he-
roidas de Ovidio, «com tão pouco êxito que as respostas
d'aquelle não fizeram mais do que realçar o esplendor das
cartas d' este, posto não fossem mais do que uma diversão
de espirito em que a paixão e o coração nenhuma parte ti-
nham.»
Começa comtudo, por dizer que «não pretende esclarecer
o leitor sobre se as cinco cartas portuguezas são verdadeiras
ou suppostas, nem se ellas se dirigem, como se diz a um dos
as signalados senhores do reino . . . «direi somente,» — acres-
centa,— que a ingenuidade e a paixão das cinco cartas, a
poucas pessoas permitirão duvidar de que tenham sido ver-
dadeiramente escriptas.»
Assim, como era natural, e como já dissemos: desde a
apparição d'ellas não só a sua authenticidade não inspirava
grandes duvidas e até nenhuma encontramos definida em
escripto contemporâneo, como se divulgara o nome do des-
tinatário sem que nenhuma contestação positiva se revele
também, embora este se achasse em França quando exa-
ctamente as primeiras edições e as primeiras rhapsodias se
suecediam rapidamente, e elle oecupasse^ pelas tradições e
relações de familia, pela sua própria situação, um logar
distinctissimo na curte e no exercito franeez.
61
Esse nome não tardara em denunciar-se, umas vezes, e
especialmente nas edições feitas sob a immediata acção da
auctoridade franceza, por uma discreta inicial, apenas, —
outras declaradamente e acompanhado do nome do tradu-
ctor, do destinatário, do primeiro editor ainda em vida d'el-
les, sem que se revelia o simples ensaio de uma rectifica-
ção ou de um desmentido.
Assim, logo nas primeiras edições, ao passo que Barbin
cala no frontespicio da sua, qualquer allusão ao destinata
rio das cartas e no prefacio diz modestamente — «não sei o
nome d'aquelle a quem foram escriptas nem o de quem fez
a traducção d'ellasi>j — Pedro du Marteau, no mesmo anno
de 1669, semanas ou mezes depois, na formosa edição até
agora desconhecida e a que atraz alludimos, não somente
põe logo na primeira pagina a observação de terem sido es-
criptas as Cartas que publica — «aw Chevallier de C. ojficier
François em Portugal», — mas reproduzindo o prefacio do
collega de Paris, substitue o periodo citado por este: — «O
nome d'aquelle a quem foram escriptas é Monsieur le Che-
VALiER DE Chamilly e 0 nome de quem fez a tradvcqão É
CuiLLERAQUE.í
Note-se, — pois que até agora parece ter passado desaper-
cebida— esta forma familiar, ou como de quem de si pró-
prio fala, de aflirmar o nome do traductor: — é Cuillera-
que (aliás Guilleraque).
Já na primeira edição do nosso trabalho prováramos que
não era somente em 1699, como se afíirmava, mas muito
antes, em 1690^, pelo menos, que os nomes do destinatário
e do traductor, expressamente se exhibiam.
Mas então não conhecíamos a edição de Marteau, e ape-
sar da nossa perfeita e fácil convicção de que os nomes do
destinatário e do traductor das Cartas não eram um mys-
62
terio para os primeiros editores como o não era para grande
parte do publico^, e que elles mesmos, até, não haviam posto
um grande empenho em occultar-se: — mal cuidávamos
que exactamente um d'esses editores se teria encarregado
de revelar esses nomes, logo em 1669, poucos mezes de-
pois de terem entrado em França os officiaes em serviço
de Portugal, um dos quaes era exactamente Chamilly, sem
que este, ou alguém por elle, ou qualquer d'aquelles, ou,
em summa, o traductor, personagem bem conhecido na
corte e nos sallões, ensaiassem a menor objecção no meio
do êxito enorme do livrinho.
Este facto absolutamente inédito, ' na historia e na cri-
tica da questão, não só arreda, — melhor ainda: não só
aHiquilla, todas as hypotheses engenhadas sobre a falsa idéa
de que só muito mais tarde e por adaptação interpretativa
a uma simples inicial, appareceu o nome de Chamilly como
o destinatário das Cartas,— mas é um novo subsidio de sin-
gular valia para a authenticação e comprovação d'ellas.
E quando se approxima este facto, do pensamento reve-
lado nas primeiras Respostas ^ de attenuar a má situação
moral do inconfidente destinatário das Cartas, — ou se con-
sidera que o próprio êxito d'ellas o collocaria imprevista-
mente n'uma situação incommoda não só perante a senti-
mentalidade publica, mas perante as conveniências hypo-
critas e intriguistas da Corte, nos últimos tempos do Rei-
Sol: assumem um caracter de novo testemunho corrobo-
rativo a omissão da declaração de Pedro du Marteau em
edições posteriores, — nas d'elle próprio, até; — a substi-
tuição do nome por uma vaga inicial; — a própria desappa-
1 Na nova Bibliographia das Cartas, contaremos como po-
demos verifical-o.
63
rição d'aquella edição de 1669 de que só casualmente se
encontra agora um exemplar em Portugal.
Não occultaremos mesmo que a edição de Marteau nos
suggeriu a idéa de que fosse ella a primeira, a original, e
que Barbin simplesmente a aproveitasse, apropriando-se
d'ella, e substituindo, para não se comprometter, — pois que
vivia á beira da Corte e da Bastilha, — ou para obter o pri-
vilegio, a franca e despreoccupada indicação do seu col-
lega de Colónia.
O que, porém, principalmente importa que fique assente
é que não foi em 1699, nem em 1690, nem sequer em 1678
que se começou a insinuar ou determinar os nomes do des-
tinatário e do traductor das Cartas : — foi logo nos.primeiros
meses de 1669, en'uma das primeiras edições d'ellas, que
esses nomes se revelaram declaradamente.
Sem data, mas provavelmente em 1669, ainda, — o mes-
mo Pedro du Marteau faz uma edição da segunda parte ou.
das Cartas d'uma «dama da sociedade,» conservando-lhe
})orém o titulo de Lettres d'une religieuse portiigaise, —
apesar da declaração do prefacio, que é também o de Bar-
bin, de que taes cartas são muito diíferentes das primeiras.
Assim começa a extraordinária confusão a que nos refe-
rimos já.
Continuam no anno seguinte (1670) as reedições das
Cartas e das Respostas, por Barbin e Loyson, e em 1671
começa Pedro du Marteau a exploração simultânea das ul-
timas, attribuindo-as ao tChevalier de C..., officier en
Portugal.n
Em 1678, publicam-se em Londres, traduzidas em inglez,
as cinco cartas da religiosa portugueza tão perfeitamente
consideradas como authenticas que o traductor, — o celebre
Roger L'Etrange, um dos litteratos e dos críticos mais dou-
64
tos da Inglaterra, no século xvii, — oíTerece-as não só como
«uma viva imagem d'uma estranha e desgraçada paixão,»
mas como lição de que «uma mulher é tanto de carne e
sangue n'um convento como n'um palácio». A traducção
ingleza reproduz-se, pelo menos, em 1693, 1694 e 1701.
A primeira versão allemã de que temos noticia, e que como
a anterior, não tem sido citada pelos commentadores e hi-
bliographos é já do século xviii.
Marteau que faz n'aquelle anno de 1678 uma nova edição,
põe-lhe a mesma indicação da de 1671.
Na edição de Haya, em que as cinco cartas se encontram
já confundidas ou misturadas com as 7 d'uma femme du
monde, diz-se que ellas foram escriptas por uma religiosa
portugueza ao — « Chevalier de G* »
Repete-se a indicação, mais desenvolvida, n'outra edição
de Haya, de 1688, por Abraham de Hont e Jacob van El-
linkhuysen, com a circumstancia de que o periodo do aviso
inicial da edição de Barbin, a que temos alludido é substi-
tuído por este : — «o nome d'aquelle a quem as cartas foram
escriptas é M. le C. de C. e o nome d'aquelle que fez a
traducção é C.»
Na edição de 1689, dos mesmos livreiros, a indicação do
destinatário é— a Chevalier de C*. officier en PortugaU .
Finalmente, n'uma edição de Corneille de Graef, em
1690, o periodo respectivo do aviso inicial de Barbin é
emendado por outro em que expressamente se diz que o
nome do destinatário é Monsieiír le Chevalier de Chamilly e
o do traductor Cuilleraque.
Em 1699 publica Francisco Roger, uma collecçao de
Cartas galantes e amorosas em que reproduz as da freira
portugueza precedidas ainda do prefacio de Barbin.
N'este, porém, o periodo capital cede o logar a esta rcs-
65
tituição correcta da declaração de Marteau: — Le nom de
celui auquel on les a écrites, est Monsieur le Chevalier de
Chamilly & le nom de celui qiii en fait la Tradudion, est
Guilleraque. »
Terminemos estas citações com uma que tem uma par-
ticular importância.
Em 1698 publica Miguel Brunet, a primeira edição da
apreciada coUecção de Richelet: — «Les plus belles lettres
françoiseSj tirées des mcilleurs AuteurSj* etc. — muito elo-
giada pelo Journal des Savants (Paris), d'aquelle anno.
Não podemos ver esta edição nem as duas que rapida-
mente se lhe seguiram. Não podemos pois aííirmar j)ositi-
vamente que venham lá as Cartas portuguezas.
Cremos que vem. Mas vimos a quarta edição publicada
em 1708 por Luiz e Henrique van Dole, em Haya.
No primeiro volume, encontram-se as cinco cartas da re-
ligiosa portugueza, com o endereço, cada uma, a Monsieur
le C*, ou C. de 6,'***.
Note-se que se trata de uma espécie de edição critica de
cartas authenticas, que é, até, precedida de uma nota bio-
graphica dos auctores.
É claro que o auctor das nossas Cartas não figura n'essa
nota, mas a redacção d'estas foi revista no pensamento de
as tornar mais francezas, sendo, na ultima, o nome portu-
guezissimo de Dona Brites substituído pelo de Emile.
De resto, as cinco Cartas da pobre freira portugueza con-
tinuaram a ser reunidas e confundidas pela grosseira ex-
ploração dos livreiros com as outras sete de uma «dama da
Sociedade» e com as Respostas, nas varias collecções, al-
gumas muito ineptas e insípidas, de amorosas, onde brilha-
vam, como diamantes de fina agua entre falsa joalhería, ou
então rivalisando com alguns do singular quilate como os
F. O
66
da Heloísa, e offuscando inteiramente os de Boursault e os
da Presidente Ferrant.
YIII
Será, porém, este nome de Chamilly, como o do desti-
natário das Cartas e como o do ingrato objecto dos apaixo-
nados enlevos de uma freira portugiieza, uma tradição ou
invenção bibliographica, simplesmente?
Não é.
Saint-Simon, ^ que começa a escrever as suas celebres
Memorias, em 1691, Saint-Simon, que como muito bem
diz um dos seiís editores, — inous a fait voir le dessous des
cartes du grand règnev — , falando da nomeação de dez ma-
recbaes de França, em li de janeiro de 1703, e dando a
noticia biographica d'elles, diz do primeiro, o tenente ge-
neral Chamilly:
— «Servira com reputação era Portugal e em Cândia.
Vendo-o, e ouvindo-o, ninguém poderia persuadir-se de que
tivesse inspirado um amor tão desconforme como o que é
a alma d'essas famosas Cartas portuguezas , nem que ti-
vesse eseripto as respostas que n'ellas se encontram, áquella
religiosa.»
E mais tarde, registando a morte do marechal de Cha-
milly, em 6 de janeiro de 171o, escreve:
1 Mémoires complets et authentiques du duc de Saint-Simon,
Âi publiées sur le manuseript original &. — Nouv. ed. — Paris,
1842.
67
— cServira, moço, em Portugal e a elle é qm foram es-
criptas essas famosas Cartas portuguezas por uma religiosa
que lá conhecera e que elle enlouquecera de amor. »
Vê-se que não é uma versão, uma opinião duvidosa, he-
sitante, que Saint-Simon emitte.
É a affirmação segura de um facto que na sua situação
e com as suas relações e influencias na corte e na aristo-
cracia militar franceza elle teria excellentes occasiões de
colher e verificar, até por narrativa do próprio Chamilly,
tendo tido a confiança d'este e tendo intimamente convivido
com elle e com a marqueza sua esposa.
Outro contemporâneo que egualmente poderia ter veri-
íicado com toda a segurança a tradição, Duelos, que, como
observa um critico teve á sua disposição os melhores ar-
chivos e informações, escreve : — «O marechal de Chamilly,
celebre pela sua bella defeza de Grave, morreu também
n'este anno (1715). Era formoso e bem feito, e servira na
mocidade em Portuga Vonde fora vivamente amado por uma
freira. É a elle que são dirigidas as Cartas portuguezas.^
— aToujours des assertions, jamais de preuvesi — excla-
ma o sr. Beauvois.
Mas que melhores provas podem exigir-se do que as as-
serções positivas, claras, terminantes, perfeitamente des-
preoccupadas de qualquer interesse ou de quaesquer du-
vidas, por parte dos contemporâneos, sem nenhuma con-
tradicção_, sem objecção alguma, de egual natureza e au-
ctoridade?
Mas porque, ou como^ ou para que haviam esses con-
temporâneos dizer «5?tr quoi était fondée cette attrihution,y>
1 Mémoires secrets {Nouv. Collect. de mém. pour servir á le
Hist. de France, &— Paris. 1839).
5*
68
eíles que simplesmente registavam um facto sabido, que o
próprio interessado nunca contestou, do qual talvez, até, o
soubessem, e não expunham apenas uma opinião, uma sus-
peita, uma presumpção própria?
Quaes são então as provas que nos ofterecem, — que va-
lham aquellas ou que as tornem duvidosas, — os qu3 recu-
sam o testemunho dos contemporâneos e da tradição?
Ah, se o interessado se calla e não contesta, — observa
sempre um pouco á cavalleira o sr. Beauvois, — é porque
vendo que as Cartas se attribuem a um chevalier de Cha-
milly^ o marquez não tendo usado este titulo, podia perfei
tamente acreditar que não se tratava d'elle, ou antes não
se dignou refutar este erro «como os sábios não protestam
hoje contra o emprego dos seus nomes em ficções litterarias
ou dramáticas.»
Farão isto alguns sábios que o sr. Beauvois conheça, mas
além de que Ghamilly não se parecia nada com um sábio,
no dizer dos contemporâneos, que sempre o conheceriam
melhor, as coisas passavam-se n'outro tempo um pouco
differentemente do que parece que se passam agora em
Beaune, segundo a sentença do illustre escriptor.
O sujeito a quem se attribuia uma obra que poderia com-
prometter um pouco os seus créditos litterarios e moraes,
protestava, geralmente, e protestava até algumas vezes. . .
sendo verdadeira a attribuição.
Foi o que aconteceu com aquelle lord Bolinghroke, de
quem fala a menina Aissé, que negava fortemente que fos-
sem suas três philippicas contra Walpole, realmente escri-
ptas e publicadas por elle.
Voltaire não se cança de protestar perante os amigos, o
publico e o sr. de Sartine, contra a exploração mercantil,
cavilosa, ou apenas indiscreta do seu nome.
69
Mas não vale realmente a pena discutir a prudente ou a
philosophica indifferença de Ghamilly.
É certo que elle não tinha a zelar grandes créditos litte-
rarios, e pode facilmente suppor-se que o ruido da sua aven-
tura amorosa não o importunasse tanto como aos seus piedo-
sos biographos e admiradores de dois séculos mais tarde.
Hão de convir, porém, que quem desdenha o testemunho
e a aííirmação contemporânea de que Ghamilly fora o des-
tinatário e o heroe das Cartas, tinha obrigação de nos offe-
recer argumento melhor para explicar o silencio acquies-
cente d'elle, do que a hypothese de que não quizera dignar-
se contradizer a versão, ou de que podia acreditar que se
não tratava d'elle porque não usara o titulo de «chevalier
de Ghamilly» . E o de «marquez», usava-o em 1669?
O que tem uma certa graça é que este ultimo argumento
chega a transformar-se em questão capital.
Ghamdly «usava um titulo superior ao de chevaliery> ob-
serva triuraphanlemente o sr. Beauvois; não é elle, pois,
que'o editor de 1678 designa por «chevalier de C.y>, e o
editor de 1690, «qui a rendu cette initialle par Chamilly, a
fait preme d'une crasse ignorance.y
Pobre Gorneille de Graef!
Elle poderia ter optado pela edição dos seus collegas
Abrabam de Hont e Jacob van Ellinkhuysen, de 1688, tra-
duzindo respeitosamente a indicação d'estas: — M. le C. de
C. — por Monsieur le Comte de Chamilly, porque, emfim,
a inicial primeira tanto poderá dizer Comte como Chevalier.
Ainda assim o illustre critico não se daria por vencido.
Entende que o titulo de Gonde de Ghamilly, também não
é uma designação correcta.
É a que empregam, em 1638 e 1664, dois diplomas fir-
mados pelo próprio Luiz xiv, que emfim tinha um tal on
70
qual direito de determinar estas coisas, mas o sr. Beauvois
oberva que é «muito abusivamente» que chamaram assim
a Noel Bouton.
Parece que Schomberg, apesar de distanciado da curte e
dos praxistas d*estas coisas, procedeu com maior exacção
chamando-lhe, em Estremoz, conde de Chamilly-Saint-Le-
ger.
Em todo o caso chamar-lhe simplesmente chevalier é que
foi um escândalo. «O ignaro traductor, — insiste o sr. Beau-
voiSj — não escreveu correctamente o titulo de Noel Bou-
ton; chama-o chevalier de Chamilly, et il est le seul à le
qiialifier ainsi.i>
É certo que n'alguns documentos o titulo de chevalier
apparece qualificando Noel Bouton, mais é. . . seguindo-lhe
o nome, — ISoel Bouton, chevalier, — e não antecedendo-o!
Francamente, apesar de todo o respeito que nos merece
o illustre commentador, tudo isto nos parece perfeitamente
insignificante, quasi pueril.
Em primeiro logar vimos já que não é só o editor de
1690 que emprega a designação de chevalier de Chamilly,
nem são somente os editores que não se lembram, quando
se referem ao conhecido personagem, de o designar res-
peitosamente pelos seus titulos nobiliarchicos.
Chevalier de Chamilly não é um titulo: — é uma designa-
ção usual, corrente, simplificado,— tanto mais naturalmente
empregada quanto é certo que o individuo designado por
ella é realmente Chamilly, e se torna o principal Chamilly,
o mais conhecido por este nome, atravez da successão de
diversos titulos e de diversas situações.
Simplesmente Chamilly, e cremos que uma vez apenas
conde de Chamilly, é como lhe chama Saint-Simon, e era
como lhe chamava o povo :
71
Pour faire enrager Chamilly
On a fait choix d'Huxelles, etc.
M. de Chamilly, apenas, chama Turenne em difterentes
cartas ao pae ou ao irmão mais velho de Noel: — os ve-
lhos condes de Chamilly. E Turenne sabia bem o que elles
eram.
É também como appellida o futuro marechal, — o nosso
Chamilly, — em 1675, uma das Cartas históricas de Pel-
lisson, e a narrativa da campanha da Hollanda (1672), edi-
tada em 1759 por P. Hondt, em Haya, documentos citados
pelo próprio sr. Beauvois I . . .
Na errada idéa, porém, de que o nome de Chamilly fosse
uma simples interpretação da inicial empregada por alguns
editores, — quando exactamente foi essa inicial que pro-
curou discretamente velar ou disfarçar o nome terminante-
mente denunciado logo n'uma das primeiras edições, — o
sr. Beauvois exphca que essa interpretação se dera porque
Chamilly se tornara celebre e de todos os officiaes que ha-
viam servido em Portugal era o mais conhecido cujo nome
começasse por C.
Suppunhamos que assim era.
Mas como explicar que propondo-se apenas a explorar
a celebridade real ou supposta de Chamilly, os editores não
pozessem principalmente em relevo o nome d'elle, por ma-
neira a não suggerir qualquer duvida, e se limitassem a
designar o destinatário das cartas por chevalier de Chamilly,
officier français en Portugal, sem a menor allusão aos seus
feitos e á sua situação recente?
Que espécie de correlação poderia estabelecer-se entre
a celebridade adquirida por Chamilly na defeza de Grave
(1675) e as cartas da freira portugueza?
72
Quem se lembrara então de qae elle tivesse, como tan-
tos outros, servido em Portugal, para lhe attribuir aquellas
cartas, que não seriam de certo o seu melhor elogio, se a
attribuição não andasse já na versão publica?
Não confessa o auctor da collecção Philíppes, em IGtíf,
no mesmo anno em que ellas apparecem, que o destinatá-
rio d'ellas se diz ser um nome illustre?
Para que precisariam, tantos annos depois, do sobrescri-
pto de Chamilly?
Mas além de que elle estava longe de ser ainda um ho-
mem celebre, quando Pierre du Marteau em 1669 lhe põe
o nome na sua edição das Cartas, engana-se redondamente
o sr. Beauvois, como se teem enganado todos, suppondo
que aquelle gentilhomem e official adquirira uma singular
celebridade entre os officiaes francezes que serviram em
Portugal.
Como logo mostraremos, o seu nome conservou se na
mais completa obscuridade durante as campanhas da Res-
tauração.
Era bravo, ousado, intrépido?
Cremol-o facilmente, até na fé das cartas da pobre freira.
Mas essas qualidades eram vulgarissimas nas fileiras por-
tuguezas e estrangeiras, que sustentaram na fronteira todo
o peso e Ímpeto do velho império hespanhol, desmentindo
as desastradas illusões de Mazarin e dos deploráveis diplo-
matas da sua politica peninsular.
Precisamente entre os auxiliares francezes que serviram
com Chamilly em Portugal haviam outros cujos nomes «co-
meçando por aquella inicial» brilhantemente se distinguiram
ao lado d'elle, como foram Chevry, coronel de um regi-
mento francez, e Chavet, que ambos se tornaram muito dis-
tinctos na batalha de Montes-Claros, Claran, a quem em
73
1603 foi confiado o commando de um regimento de alle-
mães e italianos, desertores do exercito iiespanhoi, e que
chegou do decurso da canipanlia do Alemtejo a mestre de
campo general. Havia, finalmente, um chevalier de Cler-
mont, da Casa Clermont Lodcve, que ha pouco um escriptor
francez, suppondo também que o nome de Chamilly fosse
apenas uma interpretação de iniciaes pelo editor de 1690,
observava que ellas melhor poderiam talvez designar.^
Feito que distinguisse Chamilly, n'essa campanha, não
chegou até nós, não ficou nos archivos, não passou á his-
toria.
Só um : — o da conquista da pobre freira portugueza.
Esse, porém, continuou a ser-lhe attribuido sem contes-
tação, nem protestos, pelos seus contemporâneos, e até hoje,
atravez do êxito ruidoso e constante das Cartas.
O estudo d'estas, longe de contrariar, conforma-se per-
feitamente com a tradição, como teremos occasião de ver.
IX
No fim do século passado, em 1796, o editor parisiense
Delance, por suggestão de Aubin, publicou uma nova edi-
ção das Cartas Portuguezas, precedendo-as, pela primeira
vez, de um estudo critico do notável bibliographo o abbade
Mercier de Saint-Léger.
Sem a menor hesitação, e fundando-se nas investigações
que poderá faze, Saint-Í^éger, aflirmando a authenticidade
* Maur. Paleologrue. — Revue de deux mondes, lo oet. 1889.
74
das Cartas, dá como seu destinatário e como o protogonista
d'ellas, Chamilly, — Noel Bouton de Cliamilly.
Começa por determinar a data exacta da vinda d'elle para
Portugal, data que continua, comtudo, a ser erradamente
fixada por alguns escriptores francezes e portuguezes, que
o suppõem vindo com o conde de Schomberg, — mas afas-
tando-se, não sabemos porque, da indicação das edições
anteriores, substituo o nome do traductor indicado termi-
nantemente por algumas d'ellas.
— «Chamilly, de volta a França, — diz Saint-Léger, —
teve a tola vaidade de communicar estas Cartas, sendo exa-
ctamente a esta tolice que devemos possuil-as. Confiou o
original ao advogado Suhligny, para as traduzir e publi-
cal-as». D'ahi a primeira edição de Barbin. . .
Ora todas as edições que designam o traductor, e não
pode dizer-se que todas se copiem umas ás outras, coinci-
dem em chamar-lhe Guilleragues, ou, as primeiras, Cuille-
raques, certamente por lapso. O nome de Subligny em ne-
nhuma apparece, e este simples facto, naturalmente, nos
inclina em favor da attribuição corrente.
O próprio Saint-Léger parece hesitar quando diz :
— «Seria que Guilleragues fizesse as respostas de Cha-
milly, e Subligny a traducção das Cartas da religiosa por-
tugueza? É o que ignoramos e o que julgamos muito inu-
tir discutir.»
Quem era Subligny?
Advogado segundo uns, actor segundo outros, pae da
menina Subligny, famosa dançarina da Opera; escreveu
em 1668 uma comedia critica contra a celebre tragedia
Andromaca, de Racine. Foi a Folie quérelle, que Racine e ou-
tros chegaram a attribuir a Molière, e que se considera como
tendo iniciado, em França, a parodia. Subligny fez ainda a
75
falsa Clelia, romance que parece ter tido uma certa accei-
tação, e attribuem-se-Ihe o Desespoir extravagant (1670) e
outras peças de theatro. Tendo feito as pazes com Racine,
escreveu em defeza de algumas obras d'elle, em 1671 e
1677, e accrescenta Saint-Léger que elle «dirigia ao mes-
mo tempo, com Montplasir, a musa da famosa condessa de
Suze.»
Quem era Guilleragues?
Lavergne de Guilleragues, ou o conde Lavergne de Guil-
leragues, como outros lhe chamam, era um gentil homem
gascão, secretario da camará e do gabinete do rei, relacio-
nado com Racine, Boileau, a senhora de Sévigné, etc, e,
segundo Saint-Simon, — «glotão, agradável, com muito es-
pirito, fazendo excellente companhia, tendo muitos amigos,
e vivendo á custa d'elles, porque tudo esbanjara. . . »
O retrato de Boileau, seu amigo, é mais lisonjeiro :
Esprit né pour la cour et maitre en l'art de plaire
Guilleragues qui sais et parler et se taire.
Dirigiu algum tempo a Gazette deFrance, onde fez o ne-
crológio de Turene. Fora intimo da senhora de Maintenon
quando ella era ainda a senhora Scarron, e a este respeito
é costume citar a seguinte phrase da senhora de Caylus:
«Pela constância do seu amor, seu espirito e seus encan-
tos, deve também ter logar no catalogo dos admiradores
da senhora de Maintenon.»
Segundo Saint-Simon, foi esta circumstancia que lhe va-
leu, em 1677, a embaixada de Constantinopla, <ípourserem-
plumer. >
Só partiu para este posto em 1679, e morreu n'elle pouco
depois.
76
Sousa Botelho não acha provável que, dada a sua posi-
ção e estado, o sr. de Ghamilly lhe desse as cartas a tra-
duzir.
N'este ponto divergimos inteiramente.
Entre os dois suppostos traductores, e consideradas exa-
ctamente as situações e as tendências de cada um, cremos
mais provável que fosse por intermédio de Guilleragues que
as Cartas fizessem a sua primeira apparição em publico,
ou que fosse a elle que Ghamilly as revelasse e desse.
Além de tudo é esta a indicação única e constante, como
já vimos, das diversas edições ainda em vida de Guillera-
gues e de Subhgny, sem que o nome do ultimo appareça
em alguma.
E no fim de tudo pode bem ser que o verdadeiro tradu-
ctor fosse simplesmente o próprio Ghamilly, e que o papel
do outro se limitasse ao de monitor litterario ou concessio-
nário amigo da versão litteral, — tão pronunciadamente ac-
cusada, — que elle lhe communicasse, das Gartas
Esta idéa da inconfidência de Ghamilly, e de elle ter lan-
çado ou deixado lançar á publicidade as cartas da desolada
amante, até sem occultar-lhe o nome, quando escondia o
seu, tem sido naturalmente othema obrigado á indignação
e á censura dos commentadores e do publico.
Vimos já o (jue diz Saint-Léger.
Sousa Botelho, citando-o, accrescenta esta observação
irrespondivel : — «A vaidade de Ghamilly é tanto mais in-
desculpável que, se aquella publicação fosse conhecida em
Portugal, prejudicaria gravemente a reputação e o repouso
da pobre religiosa que elle tão cruelmente abandonara.»
O sr. Eugène Asse, depois de observar que sobre este
ponto a posteridade, sobretudo a feminina, condemnou ir-
remissivelmente Ghamilly, ensaia uma attenuação. que,
77
aparte o sentimento generoso que a inspira^ está longe de
ser acceitavel e exacta.
Diz elle: — «A sua nobreza de alma e á sua generosidade
misturava-se um grão de fatuidade, de que a publicação
das cartas de Marianna é a prova evidente. Que não foi
elle próprio o auctor da publicação parece quasi certo. É
inteiramente inverosimil que entre a sua volta de Portugal
em 1768 (aliás 1608) e a sua partida para a expedição de
Cândia tivesse o tempo necessário para uma indiscrição tão
prolongada. E mais ainda porque nunca fez trabalho de tra-
ductor ou de publicador, além de que temos sobre este ponto
testemunhos decisivos (?). Mas é certo que a sua indiscri-
ção só parou n'este limite extremo, e que elle deixou fazer
o que não fez elle próprio ...»
«Evidentemente as cartas da pobre Marianna foram mos-
tradas pelo seu possuidor como um d'estes trophéos, ou pelo
menos como uma d'estas lembranças trazidas de paiz estran-
geiro. Comtudo, o incógnito foi completo, e nenhum nome,
nem o do destinatário nem o do traductor, foi inscripto na
primeira edição. Quanto ao de Marianna Alcoforada nunca
appareceu n"ella. . . »
Lopes de Mendonça dissera já: — «o homem que soube
merecer tamanho affecto, cedendo á vaidade de publicar as
cartas que recebera, callou o nome da pessoa que as assi-
gnava. . . »
Ora não ha nada mais inexacto.
O que se calou foi simplesmente «o nome da pessoa a
quem eram escriptas e o do traductor», e isto na edição
de Barbin, que na de Marteau, do mesmo anno (1668), não
succedeu assim.
O de quem as escrevera, e que fora tão natural e sim-
ples esconder ou substituir por outro até mais vulgarmente
78
Irancez, como um editor substituiu mais tarde o de D. Brites
pelo de Emile, conservou-se na publicação como se encon-
traria certamente nas cartas originaes, apenas sem o appel-
lido de familia, que seria. . . um pleonasmo, em cartas de
amor.
Não comprehendemos também como seja inverosimil que
Chamilly, que estava já em França no começo de 1668,
que só partiu para Cândia no fim de setembro d'esse anno,
não tivesse tempo, recebendo as cinco cartas, muito prova-
velmente até junho ou julho, quando muito, para as ler e
communicar a um ou outro amigo.
Taes attenuações nem teem, com razão, o merecimento
de satisfazer os piedosos escrúpulos do sr. Beauvois e dos
que se esforçam por afastar da memoria de Chamilly a nó-
doa supposta ou real d'aquella inconfidência.
Pela nossa parte consideramos toda esta questão alheia
aos principies e ao caracter da verdadeira critica.
Parece-nos tão perfeitamente natural e tão perfeitamente
humano a seducção e o abandono da pobre freira, como a
inconfidência, a revelação das suas cartas, por parte de um
homem novo, estróina, pouco intelligente, sahreur de pro-
fissão e educação, creado nos costumes e na moral desabu-
sada da aventura e da vida guerreira.
Episódios como o que deu causa ás Cartas, não deixaram
ainda de ser frequentes em tempos de guerra, e n'ellas mes-
mas se encontra um traço bem mais naturalista do que Io-
das as subtilezas dos commentadores, quando a pobre re-
ligiosa alludindo á pressa com que deseja partir o ciliciai
francez que será portador d'uma das suas cartas, diz que
talvez elle deixe também «n'este paiz, alguma mnlher que
o amasse.»
Censura asperamente o sr. Beauvois, um membro da
79
Academia das Inscripções e Lettras, o sr. Monmarqué, por
este ter imaginado que o próprio Chamilly publicara as
cartas.
Pois até certo ponto, e sem dar-mos ao facto uma grande
importância, o que parece realmente mais natural é que
essa publicação se não fizesse, e que as cartas não circu-
lassem em copias, e depois impressas, sem auctorisação,
sem conhecimento de Chamilly, que voltava de Cândia pre-
cisamente alguns dias depois de se ter coneluido a impres-
são da primeira edição, á qual seguia de perto a publica-
ção das primeiras Respostas . . .
Voltemos porém á edição de Delance, no fim do século
passado.
Esgotada rapidamente, como succedera ás anteriores,
Delance reproduzia-a em 1805 e 1807, ampliando o estudo
critico de Saint-Léger, com algumas notas de Barbier, o
investigador bibliothecario do conselho de estado.
Manifestamente o êxito das Cartas pòrtuguezas não es-
friara.
A edição de 1806, analysada pelo Journal de VEmpire,
e da qual se fizera uma tiragem especial de luxo, esgotou-
se mais rapidamente ainda do que a anterior.
Embora a epocha parecesse pouco asada a recreações
litterarias, e particularmente a este género de leitura, Por
tugal e a Hespanha voltavam novamente a occupar as alten-
ções geraes, e este facto favorecia naturalmente aquelle
êxito.
Deu-se então um pequeno incidente que deveria estimu-
lar a historia critica das Cartas á resolução de um problema
novo, e que naturalmente nos conduz á questão do nome de
quem as escreveu.
— «Num cataloa;o de livros de M. D. L. M. 1808» —
80
diz A. Barbier, na sua magnifica obra, verdadeiro monu
mento de investigação erudita ^, — «o auctor das Cartas por-
twjuezas é designado sob o nome de M."" de Pédégache.
Este nome será o do auctor das sete cartas dadas como se-
gunda parte desde 1669?»
A indicação não parece ter sido devidamente verificada;
não se ficou sabendo quaes as Cartas a que ella se referia,
mas ninguém a applicou, também, ás cinco cartas da reli-
giosa, nem levantou a menor suspeita relativamente a es-
tas, cuja tradição corrente ia dentro em pouco receber uma
confirmação nova
Pédégache não é um nome inteiramente desconbecido
em Portugal.
Parece ter sido o de uma familia de origem suissa que
veiu estabelecer-se aqui.
D^essa familia o único membro conhecido é Miguel Ti-
bério Pédégache Brandão Ivo, que se julga ter nascido em
\ 730, e era coronel da 2/ linha de infanteria de Elvas, em
1791, morrendo em Setúbal em 1793 ou 1794.
Publicou em 1756, sob as iniciaes M. T. P., uma ^Nova
e fiel relação do terremoto de Lisboa^, e em 1791 a (íArte
de guerra de Frederico II o grande j>, em verso portuguez.
Associado com um francez, o seu nome appareee-nos
também n''uma obra publicada em Paris e bastante conhe-
cida. É no Recueil des plus belles ruines causées par le feu
du {" novembre de 1755. Dessiné siir les lieuxpar MM. Pa-
ris et Pédégache, et grave à Paris par Jac. Ph. leBas,pré-
mier graveur du cabinet du roy, en 1757.
' Dictionaire des ouvrages anonymes par Ant. Alex. BarJjier.
3.» ed. & Paris, 1874.
81
Prefaciou, além d'isso, a obra de Quita.
Seria a mãe, ou alguma parenta d'elle, aquella M."" de
Pédégache ?
Lembrar- se-ha o leitor de que dissemos que hesitávamos
em considerar como inteiramente apocryphas as sete car-
tas de uma femme du monde de Lisboa, reunidas ás da re-
ligiosa portugueza em varias edições.
Não nos surprehendera que a i/."" Pédégache do catalogo
de 1808 nos apparecesse um dia como sendo realmente
aquella femme du monde da 2.' parte das Cartas portiigiie-
zas de Barbin.
X
Quem era, ou como se chamava, porém, a religiosa do
Alemtejo que escrevera as cinco primeiras cartas?
Marianna, era o único nome que essas cartas deimn-
ciavam, nome muito usado em Portugal, e que seria fácil
encontrar, repetidíssimo, na população conventual da epo-
cha.
Certamente as Cartas foram na successão das suas pri-
meiras edições e do seu ruidoso êxito conhecidas em Por-
tugal ou por muitos portuguezes.
Sem querermos antecipar certas indicações, observare-
mos que, além de outras e fáceis provas da considerável
leitura de livros francezes em Portugal, n'aquelle tempo,
quem tiver tido occasião de conhecer as nossas mais anti-
gas bihliothecas. publicas e particulares terá verificado que
F. 6
82
já então nos interessava vivamente o movimento litterario
d'aquelle paiz.
Era considerável o numero de compatriotas nossos que
viviam em França relacionados com os melhores círculos
da sociedade polida e litterata d'aquelle paiz, e postoque o
episodio dos amores de uma freira não fosse, aqui, como
em parte alguma, um facto tão extraordinário e excepcio-
nal,— em que pese ao sr. Beauvois — , que despertasse sin-
gular interesse, mormente em epocha tão agitada por gran-
des e tempestuosos movimentos, — fácil teria sido, real-
mente, que o ruido das Cartas movesse á curiosidade os
conterrâneos da auctora d'ellas.
Seria pois natural que se quizesse deduzir contra a sua
authenticidade um poderoso argumento do silencio dos es-
criptos portuguezes do século xvn, e ainda do século xvui,
a tal respeito, e alguma vez se tem ensaiado realmente esse
argumento.
Tem-se notado, por exemplo, que Barbosa Machado não
cite, sequer, as Cartas, na sua grande Bibliotheca.
Mas em primeiro logar ha uma infinidade de publicações
e de auctores que Machado não conheceu e não cita, e de-
pois, admittindo que elle conhecesse as Cartas, e, o que é já
bem diílieil de admittir^ que, conhecendo-as, se permittisse
cital-as, quando a Inquisição e a Censura não eram positi-
vamente uma lenda, — deve considerar-se que o livro de
Barbin não era uma publicação portugueza e não entrava
no molde da Bibliotheca Luzitana.
Estamos persuadidos que Machado conheceu as Cartas
por alguma das suas numerosas edições.
Se as citasse, teria sido para refusar a authenticidade
d'ellas, para contestar que tivesse havido uma Soror Ma-
rianna^ portugueza, que as tivesse escripto.
83
Poderia fazel-o?
A sua discrição parece-nos bem diversamente significa-
tiva, e temos d'ella, no nosso tempo, prevenção e exemplo...
Como nos parece por egual contraproducente o argu-
mento que se pretenda tirar contra as Cartas, do prolon-
gado silencio dos escriptores portuguezes dos dois últimos
séculos.
Se a tradição ou se a attribuição do livro de Barbin fosse
falsa, os próprios sentimentos dominantes, então, na socie-
dade portugueza, e o prestigio e o interesse das instituições
religiosas em Portugal, se insurgiriam protestando contra
a mystificação odiosa que se lançava sobre uma religiosa
d'este paiz.
Teria sido tão fácil desmascarar a calumnia ! . . .
Echoara tão alto e tão longe o escândalo !
O silencio, por assim dizer, systematico, parece antes re-
velar, por um lado, a impossibilidade ou o receio da contro-
vérsia e da investigação, e, por outro, o empenho em calar
esse escândalo, que deveria mortificar profundamente uma
familia poderosa e estimada.
Os próprios chronistas religiosos que se referem ao ce-
lebre convento da pobre freira das Cartas e que se espraiam
em narrativas miúdas e pueris acerca de muitas compa-
nheiras d'ella, calaram-lhe o nome, apesar da expiação a
(jue ella se entregou e da fama de predestinada em que
ella morreu, segundo os documentos que podemos desco-
brir n'esse mesmo convento.
Mas .existira ella, realmente? Quem era? Como se cha-
mava ?
Era esta a interrogação que subsistia na tradição e na
critica do livro de Barbin, quando Brunet publicou o seu
monumental Diccionario^ registando n'elle as Cartas, sem
6#
84
poder accrescentar informação ou esclarecimento novo a
respeito d'ellas.
Em 5 de janeiro de 1810 apparecia no Journal de VEm-
pire um folhetim, intitulado Variétés, e firmado por um
omega, dando a noticia critica da obra de Brunet.
Alludindo ás Cartas, o critico dizia o seguinte :
«A primeira edição das Cartas Portugiiezas é de 1669,
como diz o sr. Brunet. Mas elle indica dois volumes e a
obra é só em um. Toda a gente sabe hoje que estas Cartas
cheias de natural e de paixão foram escriptas ao Sr. de Cha-
milly por uma religiosa portugueza e que a traducção é de
Guilleragues ou de Subligny. Mas os bibliographos não des-
cobriram ainda o nome da religiosa. Posso dizer-lhes: no
meu exemplar da edição de 1669 ha esta nota n'umalettra
que me é desconhecida: — «A religiosa que escreveu estas
cartas chamava-se Marianna Alcof orada, religiosa em Beja,
entre a Extremadura e a Andaluzia. O cavalleiro a quem
estas cartas foram escriptas era o conde de Chamilly, cha-
mado então conde de Saint-Léger .y) Recentemente uma edi-
ção prematura revelou-nos as fraquezas de uma mulher
que muitos, de entre nós, poderam ver, conhecer, estimar.
Ninguém mais do que eu censurou este esquecimento de
todas as conveniências. Mas 140 annos passados desde que
as Cartas Portuguezas foram escriptas, tornam a minha
indiscrição muito desculpável. Uma historia tão velha já
não offerece pasto á maledicência nem á malicia.»
Diversos commentadores teem copiado, uns dos outros,
incompletamente, este trecho, attribuindo-o alguns jio Jour-
nal des Savants, cuja publicação, aliás, parece estar inter-
rompida entre 1792 e 1816 1.
Como em Portugal não encontrei o Jcurnal de VEmpire,
8o
É de Boissonade, e no catalogo dos seus livros foi repro-
duzida a nota manuscripta a que elle se refere.
Boissonade conhecia, ou veiu a conhecer, o portuguez,
pois que publicou em 1828 a traducção do Hyssope^ de An-
tónio Diniz, traducção reproduzida em 1867 sob a revisão
de Ferdinand Dénis.
A indicação encontrada e revelada por elle era clara e
precisa.
Parecera que devera ser fácil a verificação na parte em
que se referia á existência ou ao nome da freira portugueza,
Gomprehende-se que os acontecimentos políticos de que
então foi, e por largo tempo continuou a ser theatro o nosso
paiz, fizessem addiar as investigações necessárias, além de
que é fácil perceber qne a observação de Boissonade rela-
tivamente ao caracter inoffensivo e por assim dizer archeo-
logico da sua indiscrição, não era rigorosamente applicavel
na pátria da religiosa, onde existia ainda a familia d'esta.
Sousa Botelho, apesar de toda a sua paixão pelas Cartas
e de censurar justamente os escriptores portuguezes pela
ingrata indifferença que mostravam por ellas, não pôde le-
var as suas investigações até authenticar positivamente a
nota do exemplar de Boissonade. As suas investigações li-
mitaram-se á grande obra de Caetano de Sousa, a Historia
Genealógica da Casa Real, onde lhe foi fácil, um pouco hy-
potheticamente, ainda assim, encontrar uma familia Alco-
d'aquelle anno, e não me contentava com a copia de copia do
trecho de Boissonade, solicitei-o, e obtive-o directamente tran-
scripto, do distincto escriptor e meu amigo, o sr. Marianno
Pina, que reside em Paris, a cuja obsequiosa amabilidade devo
lambem a copia exacta do prefacio da t dição inicial de Bar-
bin e o exame directo d'essa edição.
86
forado, estabelecida do lado do Alemtejo, pela correlação
d'ella com o trágico episodio de Villa Viçosa, em 1512: —
o assassínio da duqueza de Bragança e do pagem Alcofo-
rado^ pelo duque D. Jayme*'
«Supponho pois, — diz elle, — muito provável que esta
familia existisse em 1663, no Alemtejo, e que uma filha
d*esta casa fosse religiosa n'um dos conventos de Beja. s
De restOj n'outros pontos do paiz appareciam famílias do
mesmo nome, e elle cita uma entre Douro e Minho, que
erradamente suppõe ser um ramo dos seus Alcoforados do
Alemtejo. E n'isto se ficou por largo tempo.
XI
Deficientes, insignificantes, como eram estas indicações,
a critica e o publico acceitaram-n'as, á mingua de outras,
como prova da verdade da nota encontrada por Boissonade,
tão fortemente concorriam todas as circumstancias para fa-
zer acreditar na authenticidade original das Cartas.
Mal poderá realmente suppor-se que fosse uma mystifica-
ção apparecer sobre um exemplar bibliographico de 1669,
em francez e em Paris, tão precisamente determinado o nome
e a terra da freira, nome que até na concordância feminina,
tão portugueza e antigamente tão vulgar, do elemento pa-
tronímico, parecia attestar a verdade da indicação.
Que interesse poderia haver em inventar esta, além de
1 A Senhora Duqueza, por L. C. — Lisboa, 1889.
87
tudo, não a destinando ao publico, ou quando fora tão fácil
contraproval-a, averiguando se existira realmente na pe-
quena cidade de Beja uma freira d'aquelle nome nos pou-
cos annos que Chamilly passara em Portugal?
Cumpria^ comtudo, á critica portugueza completar n'este
sentido, ao menos, o trabalho dos escriptores e dos editores
estrangeiros que durante dois séculos fizeram o renome e a
consagração litteraria das Cartas, mantendo-lhes honrada-
mente a attribuição da sua origem portugueza.
Não era uma questão de patriotismo, e que o fosse, con-
stituiria já uma questão de dever e de bonra para a littera-
tura da nação.
Francamente, umas certas tendências petulantes para
apoucar ou para desdenhar a inspiração e o sentimenio da
solidariedade e da prosápia nacional, no estudo e no traba-
lho litterario, achamol-as não apenas inscientificas, mas es-
túpidas.
Basofiando de emancipar a critica, mutilaram-n'a.
Vangloriando-se de desempoeirar os espíritos, desnor-
team-n'os.
D ando -se ares de refazer a humanidade e a historia, fal-
seara ambas.
Podemos não concordar^ e dissemos já que não concor-
dávamos, inteiramente, com a opinião demasiado exclusi-
vista do sr. Theophilo Braga, quando diz que as Cartas são
o único producto litterario verdadeiramente bello e sentido
do nosso século xvii.
Mas sem ellas, esse século fica realmente truncado na
historia litteraria portugueza.
Falta aquelle nolino, vibrante, indisciplinado, que nos
traz como que uma lembrança consoladora e amiga do (jue
é natural, do que é espontâneo, do que é ingénua e neces-
88
sariamente verdadeiro e eterno, ao meio das pompas e dos
refinamentos artisticos, magistraes, da grande orchestra
dos seiscentistas.
A parte tudo isto, accusada e aílirmada a origem portu-
gueza das Cartas^ dada a consagração geral do seu valor
esthetico e litterario, relacionada a sua origem com um pe-
ríodo interessantíssimo da nossa historia, apontado até o
nome portuguez da sua auctora, nome que inconsciente-
mente conquistara assim um logar verdadeiramente glo-
rioso na historia das grandes manifestações e das grandes
obras da alma humana, é claro que a critica tinha o direito
de esperar de nós uma cooperação mais efficaz ou menos
indolente e tarda, do que realmente encontrou nos nossos
litteratos e investigadores.
, Razão tinha Sousa Botelho em estranhar que tantos an-
nos depois da publicação das Cartas, traduzidas em fran-
cez, nenhum escriptor portuguez tivesse tentado restituil-as
á lingua nativa e revindical-as, assim, «como propriedade
nacional.»
Quando elle o tentou, com êxito, que ainda não foi ex-
cedido, e com uma dedicação que infelizmente não logrou
sequer ser imitada, já Francisco Manuel as traduzira.
Por desgraça, nem um nem outro poderam lançar-se
nas investigações, que então poderiam ser bem mais effi-
cazes do que hoje, porque o vandalismo que deixou des-
truir e dispersar em todo este paiz tantos documentos e
tantas memorias preciosas do passado, pode dizer-se que
não começara ainda a sua obra brutal.
Muitos annos depois, Lopes de Mendonça começa a tra-
ducção das Cartas.
A fina sensibilidade do seu grande talento de artista dá-lhe
a convicção da originalidade feminina e espontânea da obra.
89
Mas Lopes de Mendonça não era, e não poude ser, um
investigador, um estudioso.
A seguinte observação d'elle, — mais sentimental do que
critica, — mostra claramente que para o seu temperamento
e para a sua educação litteraria a questão de saber quem
escrevera as Cartas, era, mais do que indifferente, impor-
tuna.
Bem se importava elle com isso !
Comoviam-n'o, encantavam-n'o aquellas paginas em que
chorava uma paixão profunda e ardente. Por isso as ama-
va, por isso somente as vertia.
— líSeja como fôr,» — diz elle ingenuamente, — seria
quasi impossível verificar a authenticidade d'estas conje-
cturas: o homem que soube merecer tamanho aíTecto, ce-
dendo á vaidade de publicar as cartas que recebera, calou
o nome da pessoa que as assignava. Assim deviam fazer os
hihliomanos e eruditos: a curiosidade litteraria tem limites;
a mulher, mesmo depois de morta, deve ser sagrada para
o homem. As fraquezas que possa haver commettido, repa-
ra-as ás vezes com longos dias de amargura e soffrimento ;
as lagrimas do arrependimento lavam as culpas e debilida-
des do coração; resta-lhe, apenas, depois, essa sensibilidade
que a engrandece, esses aflfectos que a tornam sublime,
essa doçura celeste com que nos sabe consolar nos transes
tormentosos da vida.»
Quanta indolência e quanta incapacidade scientifica não
teem julgado auctorisar-se com esta sentimentalidade ro-
mântica, doentia, que em Lopes de Mendonça era, por di-
zer assim, ingenita! . . .
Ultimamente, porém, alguns escriplores portuguezes ten-
taram resgatar a longa iiicrcia da critica nacional e colher
directa ou indirectamente em Beja, no berço d'aquella pe-
90
quena historia que continuava a echoar no mundo, infor-
mações ou documentos que inteiramente a corroborassem
ou, de vez, a desmentissem.
Quando muiio encontravam-se com o reflexo da tradição
litteraria, devido, em grande parte, naturalmente, á vul-
garisação das indicações francezas.
Havia, porém, devemos dizel-o, n'este mesmo reflexo
um elemento, um raio de luz, lenue, vacilante, que tem
passado geralmente desapercebido, e que não deriva posi-
tivamente da tradição litteraria, ainda depois da revelação
de Boissonade.
Esta, como vimos, indica, apenas, o nome da cidade em
que vivia a religiosa.
Ora em Beja houve, até ha pouco, três conventos de frei-
ras, dois dos quaes, de freiras franciscanas.
Em todos elles existiram religiosas com o nome de Ma-
rianna, nome vulgarissimo em Portugal, como é sabido.
De uma Alcoforado, — D. Leonor Alcoforado, — freira no
convento da Esperança, no século xvn, existia vestígios na
bibliotheca de Evora^ não falando já que em qualquer no-
biliário, se encontrariam até, em titulo de Alcoforados, frei-
ras Marianas.
D'onde se deriva^ pois, indicar-se na tradição oral o con-
vento da Conceição, e não outro, como aquelle a que per-
tencera a religiosa das Cartas, quando exactamente da exis-
tência de Alcoforadas, n'este, é que parecia perdida toda a
tradição?
E nem assim, nem com esta espécie de indicação restri-
ctiva, persistente, se conseguiu adiantar a investigação.
Mais ainda.
Em Beja existia um morgado dos Alcoforados, um solar
d'estes, e uma propriedade rural conhecida por este nome.
91
O ultimo representante d'essa casa importante e antiga
do Alemtejo,— Alexandre Lobo Alcoforado, — era um es-
criptor que morreu lia pouco, na pobreza e no hospital, re-
gressando de Paris onde fora, e d'onde sahiu, cremos, no
tempo da guerra franco-allemã.
Estão vivos muitos homens distinctos que foram seus
amigos e que o descrevem como um homem de talento, il-
lustrado, um pouco excêntrico e triste.
Ah, se Sousa Botelho podesse ter sabido tudo isto, o nosso
trabalho não teria hoje razão de ser.
Gomtudo, a existência de uma Marianna Alcoforado en-
tre 1663 e 1667, n'um convento de Beja, continuou a ser
apenas uma indicação vaga e anonyma, lançada n'um exem-
plar do livro de Barbin, de 1669, que felizmente viera pa
rar ás mãos de um académico francez.
Os que procuravam colher, das auctoridades e dos raros
estudiosos de Beja, informações, documentos, quaesquer
esclarecimentos precisos, obtinham apenas esta resposta
persistente, implacável : — «Nada existe, nada se encontra ! »
— e contentavam-se com isto, ao que parece!
Foi o que conseguiram Felner e Jorumenha, dois expe-
mentados investigadores.
Em relação a Jorumenha, temos hoje razão para suppor,
— para acreditar mesmo, — que se coisa alguma colheu o
publico das suas investigaçães, fura porque estas, feitas
n'um piedoso intento, — egual ao do sr. Beauvois, — de des
truir e calar, de vez, a lenda, o levaram muito próximo da
irrecusável verdade d'ella.
Quem SC lembrar das idéas do dedicado biographo de Ca-
mões, pode bem imaginar como elle, costumado a arrostar
com as investigações mais laboriosas e diííiceis, não teria
recuado no devoto empenho de provar que nunca existira
92
a pobre Marianna do exemplar de Boissonade, se a não ti-
vesse encontrado ... no próprio archivo de familia !
O sr. Pinheiro Chagas, apesar de secundado por um es-
clarecido ecclesiastico, altamente coUocado n'aquella dio-
cese, que também não poude esclarecemos melhor, o dr.
Boavida, escrevia em 1874 :
— «O auctor d'este livro esteve ha pouco tempo em Beja
e procurou obter alguns esclarecimentos a respeito d'esta
apaixonada religiosa. Nada poude alcançar. Nám no livro
das profissões, nem no dos óbitos se encontra este nome, o
que não admira porque elies sobem apenas ao fim do sé-
culo XVII. Mariana Alcoforado não nos legou de si senão a
revelação do seu apaixonado talento e do seu dilacerante
amor. Tendo visitado o convento da Conceição fui condu-
zido pela digna e respeitada abbadessa d'esse mosteiro á
janella conhecida pelo nome de janella de Mertola, único
vestigio que subsiste ainda d'essa tradição apaixonada.
D'essa janella, diz-se, contemplava a triste religiosa a es-
trada por onde o amante partira para nunca mais voltar. »
O illustre escriptor, nosso amigo, foi manifestamente il-
ludido, não por má fé, é claro, mas por deficiência de in-
vestigação das pessoas que o informaram, deficiência, além
de tudo, explicável por certas prevenções e por certas pre-
occupaçães perfeitamente naturaes, nas quaes também nós
fomos topar, e que por egual nos illudiriam se não tivésse-
mos teimado em vencei -as.
O livro em que devia estar a profissão da religiosa des-
appareceu. Como? Quando? Onde pára? ^
1 Houve em Beja, ha alguns annos, um padre Mira, collee-
cionador curioso de coisas e memorias da terra. Todos me in-
dicavam a sua bibliotheca, ou o seu esnobo litterario, como
93
Mas n'um livro de óbitos do convento existe o termo do
d'ella, e o seu nome encontra-se ainda n'outros documen-
tos, como veremos.
Uma d*aquellas preoccupações a que alludimos era ma-
nifestamente a de que a pobre freira não teria vivido muito
além da sua paixão.
Uma preoccupação um tanto romântica, muito vulgar
aliás, apesar do quasi constante desmentido da historia, em
casos semelhantes! ....
Publicando, em 1876, o Curso de Litteratura Portugue-
za, em continuação ao de Andrade Ferreira, o sr. Camillo
Castello BrancO;, annotando a sua duvida, já discutida, so-
bre a aulhenticidade das Cartas, escrevia:
— «Não duvidamos, todavia, nem dos amores, nem da
existência da religiosa Marinna Alcoforado no convento da
Conceição de Beja, pelas noticias que temos d'ella e de sua
familia, conforme ás genealogias ordenadas por D. António
de Aguilar e José Freire de Montarroio Mascarenhas, no
artigo : Alço for ados de Beja. »
E dava resumidamente essas noticias, que, embora em
mais de um ponto perfeitamente inexactas, citavam com-
ludo duasfdhas de Francisco da Costa Alcoforado, — «D. Pe-
regrina e D. Marianna, freiras na Conceição de Beja.'^
A suspeita do grande escriptor reduz-se então, depois
d'esta descoberta, a que «tal freira, amando talvez muito o
reposituiio que muito convinha consultar. Mas esse repositó-
rio conserva-se avaramente vedado ás curiosidades indiscre-
tas dos estudiosos. Como diz o povo : ha gente que não faz e
que não deixa fazer. Na cavalheirosa e intelligente amabilidade
que em Beja patrocinou a minha investigação, houve esta ex-
cepção apenas.
94
conde, não escreveu taes cartas, e apenas lhe deu o amor
e o nome para a vaidosa ficção.»
Gomo? Porque?
Dêmos já as razões d'essa suspeita e as que se nos afi-
gura que inteiramente a contradizem. Comtudo a desco-
berta de Camillo era tanto mais importante quanto na mul-
tidão de manuscriptos genealógicos, existentes e conheci-
dos em Portugal, que podemos compulsar, como que sys-
tematicamenle brilham pela ausência os Alcoforados de
Beja, do manuscripto citado, e n'este mesmo se torna sus-
peita a brevidade desdenhosa da referencia aos únicos Al-
coforados que sustentaram o nome como singular affirma-
ção de nobreza.
De certo modo é aquella indicação o primeiro passo para
a confirmação da nota de Boissonade e da velha tradição
da origem das Cartas.
Mas nenhum passo novo se avançou desde 1876.
XII
Temos exposto e estudado o que podemos chamar o es-
tado da questão das Cartas portuguezas, ou mais propria-
mente das Cartas da religiosa portugueza, com um desen-
volvimento prolixo e miúdo que somos os primeiros a reco-
nhecer como mais de uma vez impertinente.
Observámos já que para isto tinha de concorrer necessa-
riamente a situação em que o problema se encontrava, ain-
da, na historia e na critica litteraria nacional, as mais na-
turalmente interessadas em resolvel-o.
Não declinamos, porém, a parte que deva averbar-se á
profunda sympathia que nos inspiram as Cartas, e ao irre-
sistível e persistente encanto que sempre tem exercido so-
bre nós aquella catastrophe de uma alma ingénua e ardente
que se afunda na fria obscuridade das coisas sem nome,
deixando na historia da expressão humana o rasto fulgu-
rante das coisas immortaes.
Justamente colloeada a par de Heloísa, e superior a Les-
pinasse, na expressão vibrante, verdadeira, genial, da pai-
xão e da desgraça, em que as excede a ambas, — porque
não teve as consolações intelleetuaes da primeira, nem
poude, como a segunda, refugiar-se nas gratas recordações
de um amor que só a morte extinguira, — a religiosa por-
tugueza, glorificada por dois séculos de admiração, atra vez
de tantas evoluções do gosto e do sentimento artistico, pa-
receu-nos sempre accusar, no seu prolongado anonymo,
um desamor injusto ou uma vergonhosa incúria da nossa
critica e da nossa solidariedade litteraria
Mais uma vez citaremos o sr. Beauvois, e d'esta ha de
ser, apenas, para lhe agradecer o seu exemplo ou o seu es-
timulo, rude e injusto como foi.
Levou-o longe, mais longe, cremos, do que deveria es-
perar-se do caracter e da missão de historiador e de critico,
a preoccupação de illibar a memoria do seu heroe, de um
incidente que exaggeradamente suppo? ser uma nódoa que
lhe empanasse o nome de bravo e leal soldado.
Mas, repetimol-o: — no fundo d'essa tentativa ha um sen-
timento de generosidade e de justiça, que não somente nunca
íica mal, mas é sempre a melhor força e a melhor aucto-
ridade do eseriptor e do homem de sciencia.
Pois bem.
Foi exactamente um sentimento egual que nos moveu ;i
96
rever e a tentar recompor a historia das Cartas, lastimando
que outros compatriotas nossos o não tenham podido fazer,
(jue bem melhor o fariam, de certo.
Foi esse sentimento que reagiu em nós, irresistivelmente,
quando, parecendo abandonar o illustre critico de Beaune,
se achou em face d' esta apostrophe odiosa e injusta, com
que elle, como os que apedrejavam a Samaritana, fere,
cego e implacável, a doce e desolada imagem da pobre freira
portugueza :
— «É um verdadeiro allivio para os seus admiradores
(de Ghamilly) o constatar que elle nada teve com uma fú-
ria, uma louca, como ella justamente se appellida; com uma
religiosa que tivesse vivido na impenitencia, sem nunca se
emendar, sem luz de remorso, mas encarniçada na sua pai-
xão sacrílega; com uma mulher, emfim, cujas cartas res-
piram o mais perfeito egoismo, e são quasi inteiramente
cheias de censuras, de injurias, de ameaças, de sentimen-
tos de desespero, de transportes de ciúme: Se elle as leu,
julgou-se de certo feliz de não ter sido o objecto de um amor
tão desmedido. Graças a Deus, elle não teve de subtrahir-
se ás obsessões de tal ménada, nem de trahil-a, elle, a quem
não pode accusar-se uma perfídia, uma defecção, uma de-
serção. Elle não entregou á publicidade as cartas que não
lhe foram tal dirigidas. Não teve de corar de uma indelica-
deza que teria maculado a sua reputação de homem o mais
bravo e o mais cheio de honra. . . »
Não, sr. Beauvois I
Esses tristes amores, esse banal episodio da mocidade do
seu heroe, não podem ser já relegados para a fabula; hão
de continuar na liistoria, e o nome d'esse heroe continuará
a viver n'ella, mais pela paixão da pobre senhora seduzida
e abandonada, do que pelo morticínio de Grave, ou pelas
97
esquecidas glorias da «arte de matar methodicamente os
homens», na phrase de Voltaire.
Quem se lembrara d'elle, se não fossem as Cartas!. ..
E que a piedade intransigente e feroz, que não é de certo
a de Christo perdoando á «que muito amou», se tranquil-
lise e aplaque.
Trinta annos rojou a alma e rasgou as carnes, no mys-
tico idiotismo da penitencia claustral, a fúria, a ménada, a
louca de amor, a desventurada seduzida de Beja, emquanto
o seu illustre seductor percorria gloriosamente a vida, co-
berto de honras e de gordura.
Duas palavras ainda.
A leitura das Cartas e o estudo da tradição que as acom-
panha tinham-nos dado a convicção profunda, a ceiteza mo-
ral, da sua authenticidade, muito antes que podessemos ten-
tar a verificação directa.
Na tentativa d'essa verificação não fomos, a principio,
mais felizes do que os que nos haviam precedido em egual
empenho.
Fomos apenas mais teimosos, talvez.
Não nos desalentou a costumada negativa de quaestjuer
documentos ou de quaesquer subsidies que authenticassem
a indicação do exemplar de 1669 encontrado por Boisso-
nade.
Gomprehendendo a necessidade de uma investigação di-
recta, e traçado o pequeno plano d'e]la, por maneira que,
tendo de ser rápida, podesse ser segura e decisiva, acudiu-
nos a dedicação intelligente e activa de um amigo, o nosso
antigo coUega no parlamento, o sr. general A. da Fonseca.
A cooperação d'elle e á de um velho amigo de infância e
de escola, o intelligentissimo professor padre Júlio Pereira
da Silva, bem como á inexcedivel amabilidade do vigário
F. 7
98
capitular, sr. Matta Veiga, da respeitável e estimabilissima
abbadessa do convento da Conceição, madre D. Maria Fe-
lisarda Mendes Góes, do zeloso secretario da camará, sr.
Palma, e de outras estimáveis pessoas de Beja, é que cer-
tamente devemos ter podido ser mais productiva do que a
de outros a investigação complementar do nosso estudo,
feita em três dias, apenas, de permanência n'aquella for-
mosa e histórica povoação ^
Em relação a archivos, a documentos históricos, a me-
morias do passado, Beja tem soffrido a devastação e o aban-
dono desolador em que, entre nós, a cada passo, tropeça o
estudioso.
O que a guerra e as discórdias civis esqueceram ou pou-
param, encarregou-se o desleixo e a inépcia administrativa
de deixar perder, apodrecer, dispersar.
Apesar d'isto, existem ainda em Beja documentos e mo-
numentos preciosos, e é justo dizer-se que a dedicação per-
feitamente offieiosa de alguns funccionarios guarda e salva
de uma completa ruina o pouco que existe já no género.
Uma provisão régia de 15 de março de 1815, dirigida á
respectiva Provedoria, diz «que entre as crueldades prati-
cadas pello Corpo Francez entrado nessa cidade em G de
junho de 1808 fora a de insendiarem differentes edifícios e
entre elles o Cartório dessa Provedoria, ficando reduzidos
a Cinzas os Livros do Begisto das Ordens e de outros ob-
jectos importantes como os Livros de Arrecadação da Beal
1 Convém lembrar que dizíamos isto quando fazíamos a
primeira edição (1888). Depois, não somente obtivemos, — e
adeante o dizemos, — outras indicações preciosas, mas voltá-
mos a Beja a ampliar e rectificar as obtidas.
99
Fazenda, os dos Bens da Coroa, os Tombos e todos os mais
documentos cora que o decurso de muitos séculos enrique-
cera o mencionado Cartório», etc.
Relativamente á historia do magnifico mosteiro da Con-
ceição e á pobre freira das Cartas, com difficuldade se en-
contram ainda alguns vestígios truncados e dispersos.
O caracter da epocha em que succedeu o amoroso episo-
dio, e em que elle não seria, muito provavelmente, único,
bem como a situação importante e influente da familia a
que a religiosa pertencia, bastaram, naturalmente, para
que o escândalo não deixasse rasto fundo e nitido em do-
cumentos que ficassem archivados.
Ficou e morreu no pequeno soalheiro provinciano.
Observámos já que até em relação ao nome da religiosa
os documentos impressos que se referem ao convento são
inteiramente mudos, e mais de uma vez, na nossa investi-
gação, nos pareceu sentir mão desconhecida que tivesse an-
dado a apagar a memoria da desgraçada. Melhor diremos
que positivamente o sentimos.
Não o conseguiu inteiramente, como vamos ver.
Para nós, ainda que a simples tradição litteraria das Car-
tas não offerecesse suiíicientes provas e garantias da sua
própria veracidade, a nota manuscripta encontrada em 1808
em Paris, por Boissonade, e a contra-prova d'ella, agora,
pela authenticação da existência da religiosa, que essa nota
indicava, completam e encerram definitivamente a questão,
aparte mesmo o estudo comparativo dos mais documentos.
Fiado apenas n'uma indicação genealógica dos Alcofora-
dos de Beja, — que cremos ser a mesma revelada por Ca-
millo, — aventou Theophilo Braga a idéa, que chegou a con-
verter em tentativa critica, de reconstruir a verdade histó-
rica das Cartas pelas referencias d'ellas.
7*
100
A idéa era prematura, considerada a deficiência e até a
incorrecção d'aquella indicação genealógica, a inanidade
das investigações ensaiadas e abandonadas, e o estudo in-
completo das Cartas nas suas relações com os acontecimen-
tos do tempo e com a própria biographia do destinatário que
a tradição accusava.
Não falando já na raridade e no caracter extremamente
vago das referencias com que, n'esta situação, se poderia
contar.
Mas por bem pagos nos déramos do nosso trabalho ainda
quando não tivéssemos conseguido mais do que tornar per-
feitamente viável e segura aquella idéa.
Não podemos, hoje, porém, encerrar esta parte do nosso
trabalho sem acerescentar á larga conta do nosso reconhe-
cimento a amável generosidade com que um illustre cava-
lheiro de Portalegre nos facultou interessantes documentos
que nos permittiram refazer e melhorar muitas paginas,
n'esta nova edição.
Foi o sr. Martinho da França de Azevedo Coutinho, cujo
archivo, abundante já em diplomas de muita nobreza, veia,
a herdar os da familia da gloriosa Freira portugueza.
ALCOFORADO E GHAMILLY
. . todo o possuidor deste Mor-
gado terá obrigação de vin-
cular a elle, por sua morte,
a terça da sua terça para com
isso hir em augmento e terá
por apellido Alcamforado . . .
Test. de F. da Costa Alco'
furado, 1660.
Marianna Alcoforado, — ou Marianna Alcoforada^,
como se dizia no tempo, — nasceu em Beja e foi ba-
btisada na egreja matriz de Santa Maria da Feira,
d'aquella cidade, aos 22 de abril de 1640, sendo
seu padrinho D. Francisco da Gama, conde da Vi-
digueira.
1 Esta extensão syntaxica do sexo ao nome patronymico
era, então, geral, e na locução popular não pode dizer-se rara,
ainda. Marianna devia assignar-se também assim, pois que a
assignatura da irmã, como escrivã do convento, é sempre:
D. peregrina M." Alcoforado, e a mesma forma subsiste no
termo de óbito de Marianna. Convém lembrar que a nota en-
contrada por Boissonade, em Paris, no começo do século, in-
dica precisamente por Marianna Alcoforada a religiosa das
Cartas, o que seria, por si, quando não houvesse outras, uma
prova sufliciente da exactidão e da contemporaneidade do au-
ctor d'essa nota.
\0l
Era filha legitima de Francisco da Costa Alcofo-
rado 6 de D. Leonor Mendes.
Quem era Francisco da Costa Alcoforado?
Os Alcoforados constituem na tradição nobliarchica
portugueza uma velha arvore genealógica extrema-
mente ramosa e frondente, que mergulha as raizes
em tempos anteriores á formação do reino, apon-
tando á superfície da historia com o nome do rico-
homem D. Gueda o Velho. É porém com um des-
cendente d'este, Pedro Martins, que a fidalga espé-
cie ccmeça a bracejar nas genealogias e nas chro-
nicas portuguezas.
Pedro Martins, que viveu no reinado de Âffonso n,
era filho de Martins Pires de Aguiar e de D. Elvira
Gonçalves de Sousa, homem nobre aquelle, e filha,
esta, dos livres amores de um par de não menores
prosapias, segundo algumas genealogias: — D. Gon-
çalo Mendes de Sousa e D. Goldora Goldares de Re-
feiteira, piedosa padroeira do famoso mosteiro de
Bustello, no Douro.
Parece averiguado que foi Pedro Martins o que
primeiro usara o appellido de Alcoforado, ou, como
escrevem outros, Alcanforado^.
1 E também Alcamforado e Alcoforado. Todas estas formas
se encontram nos documentos relativos a Francisco da Costa
e sua família. O termo de óbito de Marianna escreve Alcan-
forada, e no Tombo Novo do Convento de S. Francisco, em
que está registada a instituição do vinculo, diz-se também Al-
camforado.
108
«Não se acha nas historias o motivo, — diz deso-
ladaraenle Manso Lima', — porém bem se conhece
que foi alcunha que começaria em Alcanforado por
andar sempre cheiroso, e depois por corrupção Al-
coforado, porque a opinião de alguns de que foi este
cognome derivado do Couto de Alcofra, no julgado
de Lafões, é sem duvida errada pois aquelle Couto
desde o reinado d'el-rei D. Sancho i sempre andou
em morgado na famiiia a que ultimamente foi jul-
gado no anno de 172 por sentença da Relação da
cidade de Lisboa e os Alcoforados nunca possuiram
fazenda na Beira e quando houvessem tido este se-
nhorio se chamariam de Alcofra como se denomi-
nara o apelido do solar e não Alcoforados que é co-
gnome de alcunha.»
Sobre o respectivo brazão heraltico phantasiaram
egualmente os genealogistas, com uma certa graça
ingénua.
— «São as armas d'esta famiiia,— continua Manso
Lima, — o campo do escudo xadresado de prata e
azul, de sete peças em facha e por timbre uma águia
estendida em memoria de proceder dos Aguiares
que teem esta ave por armas porém variada na côr,
porque é azul, voante, armada de prata e metade
xadresada do mesmo metal. A causa d'esta mudança,
diz a tradição, fora haverem nascido de um mesmo
1 Famílias de Portugal tiradas dos melhores nobiliários do
reino, etc, por Jacinto Leitão Manso de Lima, etc. Ms. da
Bibl. Nac. de Lisboa.
106
parto Pedro Martins e Nuno Martins, e contendendo
depois sobre a progenitura se ajustaram que deci-
disse a sorte a sua disputa, e sendo a fortuna mais
favorável a Pedro Martins tomou em lembrança do
successo o jogo do xadrez, se não é que estas fos-
sem o brazão da família de D. Goldora Goldares de
Refeiteira de quem os Alcoforados herdaram os bens
e o padroado do mosteiro de Bustello, como escreve
o conde D. Pedro.»
Tudo pode ser, mas, seja como fôr, offerecemos
já, aos que se importam com estas coisas, a con-
solação de poderem imaginar que a pobre amante
do glorioso pimpolho dos Chamilly poderia, ao me-
nos, contrapor á águia dos Senhores de Corberon,
a não menos altaneira dos Aguiares, e ás gueules à
la fasce d'or, dos Bouton, o bello xadrez a prata e
azul, tão phantasticamente explicado por Manso de
Lima, como aquellas por Pedro Palliot'.
Ao avesso da divisa dos Chamilly: — larosevaut
le bouton^. Também será n'isto que os dois possam
irmanar. . .
* Hist. gén. des comtes de Camilly, eit. pelo sr. Beauvois.
> « . . . os Chamilly contentaram-se com o antigo escudo :
— de gueules á la fasce d'or, — que por ser muito simples não
deixava de passar por ter uma alta significação symbolica, re-
presentando as goles as pétalas da rosa (em persa gul) e o oiro
os seus eslames. Assim, alguns personagens d'esta casa, fa-
zendo um trocadilho com o seu próprio nome, tinham ado-
ptado por divisa: — Le bouton vaut la rose.»
Beauvois, La jeunesse du marechal, etc.
107
Os Alcoforados ramificam-se em varias casas so-
larengas, principalmente ao norte do paiz, e aquelle
appellido ou desapparece no cruzamento das diver-
sas gerações fidalgas, ou vae acompanhando outros,
sem que nos conste que se fixe n'uma exclusiva
instituição de morgado, ao costume e segundo as
leis e tradições do tempo, senão na familia, — a me-
nos conhecida d'aquelie nome, exactamente, — de
Marianna Alcoforado.
Podemos hoje dizer que não é só este facto que
contraria a arbitraria aílirmação de Camillo Castello
Branco, de que o tronco dos Alcoforados de Beja
«não é com certeza o do rico-homem D. Gueda o
velho, de quem descendem os Alcoforados da Casa
da Silva, de Villa Pouca, etc.» *, e devemos accres-
centar que o escudo dos Alcoforados era o adoptado
pela Casa de Beja até á sua extincção por morte do
ultimo representante, ha poucos annos^.
Pouco nos importara esta questão da ascendên-
cia de Marianna Alcoforado se aparte o rigoroso de-
ver da critica, de não desdenhar ou esconder facto
ou elemento algum, em restituições históricas da
natureza d'esta que emprehendemos, não valesse
por testemunho indirecto, no processo, a bastarda e
ridícula preoccupação de certos genealogistas mo-
dernos, de arredar da prosapiosa arvore dos Alco-
í Curso de litt. port. Lisboa, 1876. Nota n.
2 Alexandre Lobo Alcoforado.
108
forados o notável ramo que foi o único que não tro-
cou ou engeitou o nome, — e muito especialmente
os dois pobres entes que melhor o conservaram e
enobreceram na memoria das gerações: — a amo-
rosa de Beja e o enamorado pagem da Duqueza de
Bragança *.
Documentos e investigações novas habilitam-nos
a completar, — diremos melhor, a refazer, — o nosso
anterior trabalho, arredando, de vez, toda a contro-
vérsia sobre a familia de Marianna.
O pae d'ella era um Alcoforado directo e authen-
tico, — dos Alcoforados de Traz-os-Montes, berço ori-
ginário da familia. Dois antepassados, — Ruy Gon-
çalo e Martim Gonçalo Alcoforado, — netos em ter-
ceira e quarta geração do primeiro Alcoforado, —
foram senhores de Bemposta, Penasroyas e Castro
Vicente. Outro tinha a sua casa, — de que ha bem
pouco existiam restos, — em Cortiços, antiga e en-
tão florescente villa da mesma província, onde va-
mos encontrar o avô de Marianna, — Balthazar Vaz
Alcoforado, que serviu como capitão na Itália e em
Flandres no tempo do ultimo Filippe, — reentrado
já em Portugal e na sua província, em 1596, pois
que n'esse anno commandava uma expedição de
gente de pé e de cavallo enviada ao Porto pelo bispo
de Miranda, D. Manuel de Seabra.
Era este Balthazar filho de Francisco Carmona
1 A Senhora Duqueza, Lisboa.
109
Alcoforado, de Cortiços, que casara com uma pa-
rente, uma Alcoforada também, — Anna Vaz, — filha
dos morgados das Aguasleves: Diogo Fernandes e
Filippa Alcoforada. Matrimoniou-se com uma se-
nhora de Castro Vicente, — Anna da Cunha Pinto,
ou Pinta, segundo o dizer do tempo, — e teve três
filhos.
O mais velho, — Nicolau da Cunha Alcoforado, —
foi capitão-mór de Cortiços, serviu briosamente nas
primeiras refregas da Restauração, e reformou-se
em 1647.
Casou com Antónia de Miranda, filha dos morga-
dos do Anjo, de Chaves, e o seu primeiro filho, —
BalthazarVaz Alcoforado, como o avô, — foi natural-
mente o que nas nossas primeiras investigações en-
contrámos batalhando desde soldado a capitão e mes-
tre de campo nas fronteiras de Traz-os-Montes *.
1 Dipl. de 28 de junho de 1665 e 29 de dezeniljio de 1670,
eit. na 1.* ed.
Este ramo de Alcoforados que permaneceu em Traz-os-Mon-
tes não parece ter sido mais feliz do que o que veiu vecejar
em Beja. O ultimo, dos de Cortiços, acabou por vender, não
ha muitos annos, a quinta ou solar patrimonial, onde me consta
existir ainda, encimando um portal, o brazão da familia. Uma
nota encontrada nos papeis do sr. Azevedo, de Portalegre, dá
as seguintes informações : Balthazar Vaz Alcoforado casou com
D. Marianna da Rosa, e falleeeu, sem testamento, em 23 de
novembro de 1723, sendo sepultado na Egreja Matriz de Cor-
tiços, segundo termo do Reitor António Ferreira do Amaral.
Consta ter tido os seguintes filhos :
no
Do segundo filho de Balthazar Vaz e de sua mu-
lher Anna da Cunha não ha noticia, e o terceiro
foi o nosso Francisco da Costa Alcoforado.
Parece que d'este tomara conta Tristão da Cu-
nha, que foi Mestre de Campo general em Traz-os-
Montes, e que perdendo um oitio nas campanhas da
Restauração ficou sendo chamado o Torto. ^
Naturalmente com elle veiu para o sul, e o que
é certo é que indo a Beja fixou a sua residência
n'aquella cidade, casando com Leonor Mendes, fi-
lha de Francisco Mendes e Maria Alves, mercado-
res* e proprietários, aUi.
— Balthazar Vaz Aleoforaido, que era formado, segundo um
assento de baptismo feito em i730, em que foi padrinho com
sua irmã :
— Angélica, nascida em 20 de agosto de 1700, tendo por
padrinhos Jorge de Lemos e sua mulher D. Joanna, do logar
de Mascaranha, no baptismo em 2 de setembro. Esta Angélica
casou duas vezes, uma com Miguel Machado, de Mirandella,
ouira com António de Moraes Sarmento, de Miranda. Não teve
filhos do primeiro.
— Nicolau da Cunha, baptisado em 21 de setembro de 1702.
(Certidão pedida por D. Luiza do Carmo Alcoforado, de
Lisboa, e passada em 26 de outubro de 1830, pelo Reitor da
Egreja de S. Nicolau, de Cortiços, Theotonio Joaquim da Ro-
cha.)
1 Foi governador de Angola, onde chegou em 1666, sendo me-
zes depois enviado preso para Lisboa por insurreição popular.
2 Nas genealogias de D. António de Aguiar e Freire de Mon-
tarroio, citadas por Camillo Castello Branco (obr. cit.) diz-se
que Francisco da Costa era creado de Tristão da Cunha o
Torto e que indo a Beja por meirinho de uma alçada alli ca-
111
Francisco Mendes fez morgado de uma proprie-
dade urbana que possuía na praça principal da ci-
dade, nomeando em primeira administradora sua
filha Leonor, e a esposa, sobrevivendo-lhe, consti-
tuiu também uma d'estas instituições pias chama-
das Capellas, vinculando o rendimento de um pré-
dio rural, — «um ferragial juncto ao poço do Coe-
lho extramuros», — ao pagamento de dez missas vo-
tivas por anno — «emquanto o mundo durar.» *
Francisco da Costa Alcoforado apparece-nos logo
nos primeiros annos da Restauração, n'uma situa-
ção distincta e influente, considerado fidalgo, e tra-
tando-se como tal, excellentemente relacionado, e
desempenhando commissões importantes de confian-
ça administractivo e politica.^
sara com Leonor Mendes, «filha de uma tendeira a quem cha-
mavam Maria Alves a Maricota.»
Entenda-se por tendeiros, o que então se entendia e os do-
cumentos illueidam : — «mercadores de revenda ou de porta
aberta, com loja» como hoje se diria.
1 A noticia da fundação d'elle, encontram ol-a n'um dos pa-
peis do sr. Azevedo, de Portalegre, que por curiosidade ex-
tractaremos nos Documentos, e a relativa a Maria Alves, está
registada como verba do testamento d'estan'uma certidão de
1778 pedida pelo syndico dos religiosos de S. Francisco de
Beja, copiada no Tombo Novo d'este convento, onde está o
registo do testamento de Francisco da Costa Alcoforado, que
allude á mesma fundação.
2 Os filhos de Francisco da Costa Alcoforado e os mais des-
cendentes d'elles mostraram-se muito ciosos da sua fidalguia
e dos serviços do fundador da Casa. Nos papeis do sr. Aze-
112
Desde então podemos seguil-o quasi anno a anno,
na sua vida publica.
Era evidentemente um homem intelligente, acti-
vo, enérgico, estimado.
De 163tí a 1640 fora já executor do almoxari-
vedo, de Portalegre, ha diversos requerimentos dos três filhos
de Francisco da Costa, em 1681, pedindo e obtendo certidões
dos serviços e cargos do pae.
Ha também differentes notas genealógicas e uma curiosa in-
quirição promovida por dois descendentes d'aquelle, para a
suecessão da fidalguia e morgado, que se intitula :
Instrumento de justificação | de Francisco da Costa Cunha
Alcoforado, \ Cappítuo refo7-maão do Regimento \ de Milícias
desta (jomarca, morador nesta cidade de Beja; e de Francis \ co
José da Cunha Alcoforado, Cap \ pitão reformado da Cavalla-
ria I de Torres Nouas \ tãobem morador \ nesta mesma cida-
de \
É a inquirição feita em 27 de julho de 1801, em Beja, nas
casas do sargento-mór Gaspar de Moraes Correia. São inqui-
ridos, este, de 70 annos, João Pessanha de Mendonça Furtado
Carcome Moreno, «uma das Pessoas principaes d'esta cidade»,
de 90 annos, e Francisco Coelho, capitão de ordenanças da
Ireguezia dos Quintos, de 80 annos que diz :
— *E sabe outro sim pello muito uso que tem tido de ver
e ler vários documentos antigos e pertencentes á Casa dos jus-
tificantes que Francisco da Costa Alcoforado foi fidalgo da
Casa.»
Que pena que este curioso erudito não nos deixasse umas
memorias de quanto vira e lera n'esses velhos papeis I . . .
Uma coisa que os Alcoforados nunca se lembraram de inqui-
rir foi da versão escandalosa dos amores da Freira, para a
desmentir. Deixaram-n'a sempre correr sem protesto. Exacta-
mente como Chamilly...
113
fado de Beja, cargo importante que parece ter des-
empenhado até 1656.
Em 30 de agosto de 1642 foi eleito procurador
ás cortes por aquella cidade.
Votara-se á causa da Independência, que dedica-
damente serviu até o fim.
Uma carta régia de 12 de novembro de 1644 fa-
zia-o coudel-mór na comarca de Beja, incumbindo-
Ihe que promovesse e superintendesse, com instante
solicitude, o recenseamento e creação de cavallos
para serviço da campanha.
Eleito novamente procurador ás cortes, em 28 de
outubro de 1645, sendo já «vereador mais velho,
e juiz de fora pela Ordenação», o que denunciava
certas habilitações litterarias, no mesmo dia da elei-
ção renunciava o mandato, que lhe era ainda uma
vez conferido em 3 de abril de 1649 ^
N'outra carta régia, em 14 de abril de 1646, que
encontrámos transcripta no Tombo Novo do Con-
vento da Conceição, — um magnifico códice, por si-
gnal, — é qualificado de — «cavalleiro fidalgo da Mi-
nha Casa, vereador mais antigo e juiz de Beja pela
Ordenação.»
Em 5 de dezembro de 1647, andando elle na
corte, e tendo corrido o respectivo processo de ha-
bilitação, que, infehzmente, não encontrámos na
1 Ainda era 1663 uma carta do infante D. Pedro o nomeia
novamente vereador para esse anno.
F.
ill
Torre do Tombo, um alvará régio manda-o armar
cavalleiro de Christo na própria capella real, ou na
egreja de Nossa Senhora da Conceição de Lisboa,
o que immediatamente se cumpre.
Outro diploma, de iO de janeiro de 1648, con-
signa-lhe a promessa de uma commenda da ordem
de Christo, com a respectiva pensão, e este docu-
mento é interessante por fazer uma resenha dos
serviços prestados por Alcoforado depois dos que
já lhe haviam merecido outras honras, como indica
o diploma, desde 1642.
Os serviços alludidos são os da maneira por que
cumpria as obrigações do officio, «de que é pro-
prietário», de executor do almoxarifado de Beja, e
também do de superintendente das coudelarias
d'aquella comarca, cargos ambos, n'aquella epocha
de guerra e de reconstituição administrativa, muito
importantes, e mais o de dirigir a conducção dos
trigos, o que lhe fora incumbido pelo Conselho da
Fazenda, e a beneficiação das farinhas e o lança-
mento e cobrança dos dízimos, de que o encarre-
gara a própria Junta dos Três Estados.
Citam-se depois alguns feitos e serviços propria-
mente militares: — um recontro junto de Moura,
com os hespanhoes, em que lhes arrancou uma
grossa presa de gado que levavam e lhes matou e
aprisionou alguma gente; a defeza, com dispêndio
próprio, d'aquella villa, durante seis mezes; a sua
cooperação na fortificação e defeza de Arronches,
Valença e Bomroy, etc.
415
Do seu testamento, feito em 30 de setembro de
4660, — que foi o primeiro e um dos mais precio-
sos documentos que na nossa investigação directa
podemos obter, — vê-se que possuia uma grande
casa, que a administrava com muito zelo, que diri-
gia uma larga laboração agrícola, e que ao mesmo
tempo tinha relações com alguns dos primeiros ho-
mens da época, como o conde de Castanhede, — o
celebre Marialva, — o marquez de Niza, nosso em-
baixador em Paris, etc.
Promovera zelosamente a instrucçâo dos filhos,
dando-lhes carreiras e coUocações distinctas, como
veremos.
É n'esse testamento que elle, com sua mulher,
institue o — «morgado dos Alcoforados», — impondo
á successão e herança d'elle algumas clausulas sob
mais de um aspecto curiosas. O successor juntará
sempre ao morgado «para que elle vá em augmen-
to», a terça da sua terça, e terá o appellido de Al-
camforado, perdendo o direito á successão desde
que não queira ou não possa cumprir qualquer d'es-
tas clausulas. Prohibe a successão em frades ou em
freiras, admittindo-a apenas na falta de filhos se-
culares, e em todo o caso mantendo-se sempre na
linha directa. Se algum successor commetter crime
de lesa-magestade divina ou humana, ou outro qual-
quer que implique confiscação de bens, entender-
se-ha que perdeu o direito e o morgado duas ho-
ras antes de commetter esse crime, disposição, se
bem nos lembramos, de tradição visigoda, que cor-
8#
116
robora a idéa de quanto Francisco Alcoforado de-
sejava assegurar a conservação e o augmento da
fundação a que vinculava o seu appellido. Não se
esquece, também, de recommendar que o enter-
rem vestido e armado como fidalgo e cavalleiro de
Ghristo, — «com um barreie vermelho, espada á
ilharga, borzeguins e esporas.»
Três annos depois de fazer este testamento ainda
Francisco da Gosta Alcoforado tinha vigor e popu-
laridade bastante para salvar Beja, do pânico que
a tomada de Évora por D. João d' Áustria produ-
zira, e para repellir intrepidamente as intimações
do invasor triumphante.
Contam-n'o um attestado do governador Bartho-
lomeu Lobo de Mello Freire, de 10 de maio de 1663
e uma carta do rei, de 21 de junho d' esse anno, di-
rigida ao «Juiz Vereador e procurador do Concelho
da Cidade de Beja,» que agradecendo e louvando
o procedimento da cidade, n'aquelle grave transe,
recommenda instantemente a fortificação d'ella.
Fora o caso que lendo D. João d'Auslria enviado
alli um «cartel» para que lhe fossem entregues «as
chaves da cidade», resolutamente se pozera Fran-
cisco da Cosia Alcoforado, — ainda «vereador mais
velho» e juiz de fora, — ao lado do governador, es-
timulando a população a resistir aos hespanhoes,
provendo á defeza, fortalecendo e disciplinando os
ânimos alvoroçados, e festejando depois, ruidosa-
mente, no meio ainda de evidente perigo, o malo-
gro da temerosa invasão na batalha do Ameixial.
117
Ainda n'aquelle anno é ordenada a formação de
uma Casa de Moeda em Beja, sendo enviados a
Francisco da Costa Alcoforado os regulamentos e
ordens para essa fundação, como «juiz do cunhos.
A casa solarenga de Francisco da Costa Alcofo-
rado existe ainda, posto que truncada e modificada.
É onde está hoje alojada a Assemblea Bejense, na
velha rua do Touro, que no tempo d'elle tinha já
este nome, — nem outro teve, naturalmente, — o que
lhe proveiu de umas pedras encravadas nas pare-
des com a esculptura de uma cabeça de touro, sym-
bolo agrícola que veiu a figurar no escudo da ci-
dade. D'estas pedras restam uma ou duas em pa-
redes visinhas, e outras se encontram em diversos
sitios. A casa era ainda propriedade do ultimo Al-
coforado, fallecido no nosso tempo, e que traspas-
sando-a ou vendendo-a, desejara, segundo o teste-
munho de muitas pessoas de Beja, que na repara-
ção da saia principal. — hoje sala de baile do Club, —
se pozesse o velho brazão da família. Este, porém,
desappareceu, e nem uma simples lapide recorda
que foi alli o solar dos Alcoforados ^
1 Não posso resistir a transcrever o trecho de um bello ar-
tigo com que Pedro Victor da Gosta Sequeira, o distincto
jornalista e engenheiro, que tão intimamenta conhece Beja,
sua pátria adoptiva, honrou a primeira edição da Soror :
— « . . . Demais, ninguém tinha em Beja, um verdadeiro es-
timulo para acclarar a questão, e pelo contrario havia um
certo desejo de a deixar no escuro. . .
«Vivia ainda o ultimo Alcoforado, que tinha regressado de
118
Já agora, outra nota curiosa. Não foi n'aquelia
casa que nasceu Marianna Alcoforado, mas em ou-
tra, na Praça, — lioje Praça de D. Manuel, — na fre-
guezia de Santa Maria da Feira em que foi bapti-
sada, e que inteiramente restaurada também, é egual-
mente o alojamento dum Club, — o Club artístico,
— segundo as indicações que temos podido colher.
Francisco da Costa Alcoforado morreu entre 1671,
em que o seu procurador Diogo Dias Seco, apre-
senta em juizo o testamento d'elle, e 1676, em que
faz o seu, ás grades do Convento da Conceição,
uma das filhas, sendo elle «já defunto».
Do termo da abertura do primeiro, e do próprio
texto dos documentos, parecera-nos poder deduzir,
França, quasi expulso de Paris por se ter recusado, no tempo
do cerco, a pegar em armas contra os Prussianos. . . Talvez
um resto da velha malquerença de família contra a pátria de
Chamilly? Este ultimo Alcoforado era um original, respeitado
e considerado ainda por todos como que em attençãe aos seus
ascendentes. As chronicas da terra dizem que fora gerado em
condições extraordinárias e que ferido talvez á nascença, com
um fatal vicio de origem, vegetou n'este mundo como um ser
extranho e extravagante, um degenerado, ora elevando-se pelo
brilho de uma intelligencia notável, ora esquecendo-se n'um
abandono parecido com o idiotismo. . . Destinada (a familia)
o extinguir-se na geração anterior, foi por um esforço da von-
tade do avó de Alexandre Lobo Alcoforado qtie se tentou, em
vão, dominar e vencer o destino. *
De feito, segundo a versão geral do soalheiro bejense, esse
avô, verificando a impotência do marido da filha que lhe ha-
via de continuar o nome e o morgado, substituira-se a elle.
Ii9
nas nossas primeiras investigações, que seria por
aquelle tempo, em 167i, que tivesse morrido Leo-
nor Mendes. N'este caso viviria ainda, como o ma-
rido, no tempo do episodio das Cartas, o que se nos
aíTigurou que uma allusão d'estas corroborava. Mas
essa allusão foi mal comprehendida, e documentos
posteriormente obtidos modificam a hypothese.
Da folha de partilhas a favor de um dos filhos.
Miguei da Cunha Alcoforado, da legitima que lhe
pertenceu por morte de sua mãe, vê-se que D. Leo-
nor Mendes era morta em 1664, — morrera nos pri-
meiro mezes d'esse anno ou nos últimos do ante-
rior,— pois que o inventario estava feito em 16 de
março e as partilhas julgadas por sentença em egual
na obsessão cl'aquella continuidade fidalga. Conhecemos casos
análogos na historia contemporânea da velha instituição.
O Dicc. Univ. Port. diz de Alexandre Lobo :
— «Dotado de um caracter integro e nobilíssimo, mas ex-
cêntrico, pretendeu pelos próprios recursos crear-se uma si-
tuação superior. Para esse fim estabeleceu residência em Pa-
ris onde seguiu por algum tempo o curso de medicina. Des-
ajudado da sorte, não pôde realizar o seu intento, e regressando
a Portugal, morreu pobre e esquecido no hospital de S. José,
encontrando unicamente nos seus últimos instantes a protec-
ção desinteressada do distincto medico dr. Eduardo Motta e
do padre António Rebello, hoje cura do hospital, que lhe fi-
zeram o enterro por impulso de amizade. A. de alguns traba-
lhos litterarios em cujo numero se contam A lei e o clero na
questão do casamento civil, 1866, O baptisado e a excommunhão,
1865, e uma serie de artigos de critica do poema D. Jaime, pu-
blicados no jornal humorístico, O Duende.»
120
dia de maio, d'esse anno *. Esta data e a de um ou-
tro facto também inédito que adeante registaremos
illucidam bastante a liistoria da Freira.
II
O silencio feito em volta dos fundadores da Casa
dos Alcoforados de Beja, na moderna genealogia,
hypocrita e cortezã, afundou-lhes a prole, aliás nu-
merosa, na mais completa obscuridade. A própria
nota encontrada por Camillo Castello Branco em pa-
peis de Aguiar e Montarroio é sobre incompleta,
inexacta.
1 Foi o sr. Azevedo, de Portalegre, quem me revelou esta
indicação preciosa e o respectivo documento. É a folha de
partilhas mandada passar pelo «Dr. Manoel Martins Pretto,
juis de fora dos orífaos desta cidade de Beja e sseu termo por
Sua Alteza», e extrahida de — «huns Autos de jnventario e par-
tilhas que neste dicto juiso dos orífaos se fisercão dos Bens e
fazenda assim Moveis como de Raiz que ficarão por Morte e
fallescimento de dona Leonor Molher que foi de Francisco da
Costa Alcofforado, cavaleiro professo na ordem de Cristo e
Morador que foj nesta Cidade». — Requereu-a Miguel da Cu-
nha Alcoforado, já então (167?) — «Mayor e casado e rece-
bido em face da igreja».
As partilhas foram feitas entre quatro filhos e coube a Mi-
guel 1:481)^524 réis.
121
No seu testamento, em 30 de setembro de 1660,
Francisco da Gosta Alcoforado denuncia seis filhos.
Teve oito, mas dos dois últimos, um tinha 5 annos
e o outro alguns dias apenas.
Dos citados, três são meninas, estando uma ca-
sada e as outras no convento da Conceição : — (.(Ma-
rianna que já é professa e Catharina que ainda o
não é.»
O filho mais velho foi José da Costa, cura de
Nossa Senhora das Neves, quando o pae fazia o tes-
tamento. Era, porém, natural este filho. Francisco
Alcoforado nomeia-o como um dos seus testamen-
teiros, recommenda-lhe a fiscalisação das suas dis-
posições pias, e consigna-lhe, do morgado que in-
stitue, a pensão vitalícia de 8;^000'réis.
Dos filhos legítimos, o mais velho é Balthazar Vaz
Alcoforado, como o próprio pae o declara n'aquelle
mesmo diploma, onde o nomeia também por seu
testamenteiro, «se ao tempo da minha morte, — ac-
crescenta, — tiver edade para o ser.» Não tinha, pois,
25 annos, em 1660.
D'este Balthazar, diz a nota citada pelos srs. Ca-
millo Castello Branco e Theophilo Braga, que fizera
«a celebre decima nas suas conclusões em Coimbra :
Culpa fuera Brites bella», etc, e que fora prior de
Beringel. O Diccionario Universal Portuguez dá-o co-
mo formado em theologia «e muito conhecido pelos
seus ditos facetos e joviaes.»
Confessamos á puridade que não o conhecemos
por esses ditos, que não temos a mais longínqua
i^
idêa da celebre decima, e que não nos achamos
dispostos a sahir, por agora, d'esta profunda igno-
rância. Que não era refractário ás lettras sabemol-o.
Na Bibliotiieca de Évora existe ainda um trabalho
d'elle, uma exposição relativa á diocese de Beja.
Prior de Beringel, antiga e privilegiada villa a 10
kilometros de Beja, ou prior da egreja de Santo
Estevão de Beringel, — priorado importante e fidal-
go, com direito de usar murça, e de que eram pa-
droeiros apresentantes os marquezes de Minas, —
sabemos também que era em 1716, como egual-
mente se deduz dos documentos da successão do
morgado, que era doutor. Antes, porém, que fosse
não só prior, mas clérigo, fora soldado aventuroso
e intrépido, — outro facto absolutamente inédito até
agora.
Quando em 1666 se fez a audaciosa invasão da
Andaluzia, Balthazar Vaz Alcoforado, acompanhando
o sargento-mór de batalha, geueral da artilheria do
Algarve, Diogo Gomes de Figueiredo, governador
de Beja, fez, segundo o testemunho doeste, prodí-
gios de bravura e de habilidade, principalmente na
tomada de Alçaria de la Puebla, á frente de qua-
renta cavallos, — «exposto ao diluvio das balas que
se tiravam do dito Castello e animando e exortando
as mangas avançadas e dando-lhes calor.»
Foi pois companheiro de Chamilly, — notemos já,
— pois que também o cavalleiro francez tomou parte
n'esta expedição e esteve na tomada de Alçaria, se-
gundo a sua própria folha de serviços.
123
É somente em 1669, — por curiosa coincidência:
no anno da primeira e ruidosa publicação das Car-
tas da Freira portugueza, — que o irmão de Marianna
Alcoforado troca a carreira das armas, tão brilhante-
mente auspiciada, pelo serviço de Deus, em que
obscura e resignadamente se afunda.
Moço, — pois que em 1660 era ainda menor, —
rico, intelligente e intrépido, volta as costas ás hon-
ras e ás riquezas mundanas e vae declarar perante
o tabellião de Beja, Manuel Martins da Fonseca, em
termo de 29 de agosto de 1669, que — «elle tinha
uontade de ser cleriguo e seruir A Deos nosso se-
nhor no estado ecleziastico e por quanto não podia
conseguir ho dito imt^nto sem primeiro ter dote
comveniente na forma do sagrado Concilio triden-
tino», — se dota com o que lhe pertencera no in-
ventario feito por morte de sua mãe. *
Grave devera ter sido a causa desconhecida que
levara aquelle homem a abandonar a carreira das
armas, em que se distinguira já, e a herança emi-
nente de uma situação prestigiosa e de uma casa
1 Traslado em 9 de janeiro de 1670, do mesmo tabellião,
em Beja, do termo de 29 de agosto de 1669. São testemunhas
o Padre Estevão de Faria, António de Oliveira e Manuel Jorge,
creado de Balthazar. (Papeis do sr. Azevedo, de Portalegre.)
O documento tem a seguinte rubrica no verso: — «dote de
meu yrmão Baltezar Vas Alcoforado (e rioutra lettra) feito a
si mesmo q."'° se quis ordenar, emportou o dote na forma qúe
lhe coube no inventario de sua may D. Leonor Mendes —
1:501^390..
124
rica e considerada, rompendo com as aspirações e
os planos do velho pae, e mallogrando-lhe descari-
nhosamente, á beira do tumulo, a piedosa institui-
ção em que elle quizera perpetuar o nome e a pro-
sápia dos Alcoforados.
Estas novas indicações documentaes, sobre as
quaes estamos refazendo a noticia da família de
Beja^ levam-nos irresistivelmente a ver no compa-
nheiro d'armas de Ghamilly, em 1066, — exacta-
mente quando devem ter começado as relações
d'este com Marianna, — e no valente e despreoccu-
pado moço que repentinamente desapparece n'uma
vida obscura e devota em 1669, — precisamente
quando se faz um grande ruido em volta das Car-
tas,— aquelle «irmão» que ellas revelam como in-
termediário, inconsciente talvez, mas não talvez in-
culpado, dos amores da pobre Freira portugueza.
Este deve ter sido, e não o outro irmão, — o Mi-
guel da Cunha Alcoforado, — como suppozeramos e
como antes de nós imaginara já Theophilo Braga.
Do processo da definitiva instituição do morgado
parece deduzir-se que Ballhazar, padre já, não se
mostrara muito disposto a assentir na piedosa re-
solução paterna, pondo mesmo as suas objecções
em juizo.
Só em 1716 é que essa instituição se consolida
e regista.
Segundo papeis da familia, elle teve filhos natu-
raes, entre os quaes uma D. Leonor, que parece
ter confiado á irmã, pois que foi freira, também, no
125
convento da Conceição. Deve ser a D. Leonor Ja-
coba da Cunha Alcoforado, escrivã do convento em
1709, que suppozeramos ser filiia do Miguel.
Este, — Miguel da Cunha Alcoforado, — segundo
filho legitimo de Francisco da Costa e de D. Leo-
nor Mendes, era menor ainda quando se fizeram as
partilhas por morte d'ella, em 1664.
Pequena parte deve ter tomado na guerra da Res-
tauração, mas honrou dignamente o nome depois.
De 15 de setembro de 1683 a 1702 foi capitão do
terço auxiliar de infanteria de Beja, e no ultimo
anno accrescentou ao posto o de mestre de campo,
que era ainda em 1707, segundo um diploma que
lhe memora os serviços prestados: — em 1703 ele-
vando, com grande zelo, a 1:0C0 homens aquelle
terço; em 1704 guarnecendo e defendendo Moura;
em 1703 e 1706 governando esta praça, fortifican-
do-a e combatendo. Em 17 de dezembro de 1707
era confirmado em fidalgo da casa real com a mo-
radia de fidalgo cavalleiro, como o pae.
O ultimo cargo, ou mais propriamente a ultima
mercê, que parece ter recebido foi a de Provedor
das CapeUas da infanta D. Brites, mãe de D. Ma-
nuel e fundadora do Convento da Conceição. *
1 Onde jaz, no claustro, junto á formosa capella de S. João
Baptista, em sepultura rasa, que tem em lapide de mármore
esta inseripção : i i 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 | 1 1 I a beatris ] fl.'" na
ERA 1506 didaIde de • 77 • annos. a capella, em mosaico,
tem no centro do arco a data — 1614 — da sua restauração e
da da sepultura, talvez.
126
Pela sua posição e influencia, os Alcoforados de
Beja naturalmente prestaram serviços importantes
ao infante D. Pedro, na questão delicada da regên-
cia d'este e da deposição do irmão. Sabe-se os re-
ceios que inspirou o exercito do Alemtejo antes que
Schomberg se resolvesse a acceitar a solução d'essa
formidável intriga politica, tão mal conhecida e jul-
gada ainda.
O que é certo é que tanto o Alcoforado pae como
os filhos eram estimados por D. Pedro que a Mi-
guel da Cunha ofí'ereceu uma jóia importante, ava-
liada, em 1716, em 800j$!000 réis.
Miguel era fallecido em 1727.
Foi elle quem recolheu e administrou a herança
paterna, e promoveu a consolidação e o engrande-
cimento da instituição fundada pelo pae, entenden-
do-se amigavelmente com os irmãos. Os bens mo-
veis e as dividas do casal que elle recebe são com-
putadas em 12:000 cruzados, somma que em 1716
entrega ao irmão mais velho, convertida em pro-
priedades a annexar ao morgado.
É elle também quem apresenta em juizo o tes-
tamento da irmã mais nova, que reforça com a sua
legitima aquella instituição.
De resto, pela ordenação de Balthazar Vaz, e se-
gundo as clausulas do testamento do pae, natural
era passar o morgado a Miguel da Cunha e á sua
descendência, como o primeiro o passou realmente
pouco depois.
Não se conservou muito lempo n'esta linha. Ga-
127
sando moço, — pouco depois da morte da mãe, —
com D. Brites da Costa Montes, filha de um abas-
tado lavrador de Beja, Estevão da Gosta Montes, e
de sua mulher D. Leonor da Fonseca, — Miguel da
Cunha teve só um filho varão e duas ou três filhas
que fez freiras, * escolhendo-lhes, porém, não o con-
vento das irmãs, mas outro, — o da Esperança, da
mesma cidade.
A Miguel da Cunha Alcoforado segue-se, se é que
não antecedia, Marianna Alcoforado, de quem espe-
cialmente fallaremos, — e a ella, outra filha, a quem
allude o testamento dos pães e que era já casada
então: — D. Anna Maria.
Casara esta com Rodrigo de Mello e Lobo, rece-
bendo de dote 12:000 cruzados, além do enxoval e
de valiosos donativos.
N'aquelle documento, por todos os titulos inte-
1 De duas filhas temos documento paterno; são dois reque-
rimentos em que Miguel expõe, — em 1695 e 1698, — que tendo
essas duas filhas: — Leonor eMicaela, — no convento daElspe-
rança (Beja) para professarem quando tiverem idade, tem con-
tractado com o convento «que se contente» com as quantias
que lhes dá em dote e «que não herde cousa alguma de sua
mãe e d'elle», e pede provisões para que a renuneiação seja
jurada, sem embargo da Ordenação em contrario. São -lhe con-
cedidas: uma em 27 de outubro de 169o, outra em H de no-
vembro de 1698. Ha inJieação duvidosa de terceira filha: —
Marianna Josepha. — Aquella freira Leonor, ou Leonor The-
reza, sempre veiu a herdar alguma coisa. Como succedia mui-
tas vezes, a morte corrigia os planos brutaes dos pães.
O filho de Miguel da Cunha chamou-se José da Costa Al-
128
ressantissimo, revela-se, a par do typo dúbio de
Rodrigo de Mello, a affeição de Leonor Mendes pe-
las filhas e o caracter severo e liso de Francisco Al-
coforado. Este quasi denuncia como ingrato e bur-
lão o genro.
Rodrigo de Mello e Lobo está no nome denun-
ciando prosápia genealógica, que não vale a pena
apurar. Francisco Alcoforado livera-o em casa, du-
rante cinco annos, em tratamento «de males enve-
lhecidos e tão rebeldes que se esgotou toda a me-
dicina para os desarreigar.» Depois, naturalmente,
é que lhe concedera a filha.
Como dissemos, o testamento de 1660 cita ainda
uma terceira filha, chamada Gatharina, que ao tempo
era noviça no convento da Conceição, onde estava
Marianna. O pae fizera contracto com o convento
sobre a dotação de ambas.
D'esta Catharina, porém, não encontramos mais
coforado. Um alvará régio de 1 de dezembro de 1703 continua-
Ihe, em attenção aos serviços do pae e do avô, o fôro e mo-
radia de fidalgo da Casa. Uma provisão de lo de setembro de
1727 continua-lhe o cargo de provedor das capellas da infanta
D. Brites.
Casando com D. Marianna Brites de Albuquerque, teve Joa-
quim Miguel da Cunha Alcoforado, que, por carta régia de 9
de agosto de 1757, foi confirmado no mesmo fôro e moradia
de fidalgo; casou este com D. Maria Clara Francisca Xavier de
Albuquerque, e morreu, sem descendência, em 2 de junho de
1768, pelo que o morgado passou ao herdeiro do terceiro fi-
lho do fundador.
129
noticias, não existindo já em 1664, quando se fa-
zem as partilhas por morte da mãe.
Falemos agora dos filhos de Francisco Alcoforado
que o testamento d'elle não cita.
São dois: — um que recebe o nome dO pae, e ou-
tro, Maria, depois Peregrina Maria.
O primeiro, — Francisco da Costa Alcoforado, —
foi baptisado em 26 de abril de 1655.
Seguiu a jurisprudência, foi juiz de fora em Be-
nevente, de 1684 a 1687, provedor dos orphãos e
capellas em Lisboa, e por Decreto de 10 de de-
zembro de 1715 e Carta de 3 de janeiro de 1716
nomeado Desembargador extravagante da Relação
do Porto, cargo de que tomou posse em 31 demarco
do ultimo anno. Em 1723 estava aposentado.
Casou com D. Catherina Arcangella da Cunha,
filha do tenente general de cavallaria Belchior de
Torres de Se^iueira o captivo. porque o havia sido
dos moiros, e que morreu em 170i em campanha.
Teve dois filhos varões, ao primeiro dos quaes,
— que tinha o nome do pae e do avô paterno — veiu
a pertencer o morgado dos Alcoforados por quebra
na linha de Miguel da Cunha. Teve também uma
filha que segundo o costume da familia e do tempo
foi freira.'
' Estes filhos foram:
— Francisco da Costa Alcoforado que casou com D. Maria
Lopes Pita, tendo d'ella Francisco da Cunha Alcoforado, que
era capitão reformado do regimento de milicias de Beja em
F. 9
130
Não é curioso, — se não é particularmente signi-
ficativo,— que todos estes Alcoforados, com todas
as suas varias descendências, com todas as múlti-
plas ostentações das suas prosapias, passassem até
hoje tão desapercebidos dos geneologistas e inves-
tigadores, e que apenas pela nota desdenhosa e en-
colhida da coUecção inédita de Aguiar e de Mon-
tarroio, revelada e superficialmente adoptada por
Camillo Castello-Branco, se começasse a desconfiar
de que poderia não ser perfeitamente phantasiosa
a indicação do exemplar de 1668, das Cartas, de-
nunciada por Boissonade?! . . .
III
Dos filhos de Francisco da Gosta e de D. Leonor
Mendes os que nos suggerem um maior interesse,
depois de Marianna, são necessariamente Balthazar
Vaz, — por ter sido o companheiro de armas de
1804 e casara com D. Cecília Joanna de Sousa Caldeira Bar-
reto Castello-Branco,
— D. Catherina Victoria, freira na Esperança (Beja).
— José da Cunha Alcoforado, que em 180i residia também
n'aquella cidade, sendo capitão reformado da cavallaria de
Torres Novas, e tendo casado com D. Úrsula Rosa Pereira de
Campos.
131
Chamilly, — e Peregrina Maria, — que foi compa-
nheira de convento, da irmã.
As Cartas não falam d'isto, é claro, como na ob-
sessão exclusivista que retratam, mal e raramente
alludem a qualquer termo alheio áquella situação
subjectiva, e também, muito naturalmente, porque
ao tempo em que ellas foram escriplas, Maria era
uma creança, ainda.
Cremos, comludo, digamol-o já como justificação
de nos demorarmos um pouco mais com esta Al-
coforado, que a sua existência, a sua creação, pelo
menos, embora nenhuma relação directa tenha com
as Cartas, não é talvez indifferente ao desenlace do
episodio ou da paixão funesta que as inspirou.
Além de que esta irmã de Marianna, creada por
ella desde a infância, como podemos descobrir, e
chegando a occupar os primeiros cargo no convento,
é citada, posto que muito incidentalmente, por um
ou por mais de um dos chronistas ecclesiasticos
que inteiramente calam o nome da perceptora. Tam-
bém não se dera por isto, e mais andava impres-
so!.. .
Fazendo o seu testamento em 2 de novembro de
1676 ás grades do Coiívento da Conceição, em que
é noviça e vae professar, Maria Alcoforado mos-
tra-se muito grata e previdente para com Marianna,
constitue-a herdeira dos rendimentos que para si
reserva e faz-lhe um legado especial em dinheiro
que deverá ser-lhe entregue logo que esteja liqui-
dada a herança paterna.
9*
132
Move-a a isto, — diz — «as muitas obrigações que
lhe deve pela haver creado de minina de três an-
nos.-»
Tinha pois uma certa importância saber quando
nascera. Nas nossas primeiras investigações fica-
ra-nos obscuro este ponto^, e essa obscuridade sug-
geria naturalmente duvidas e hypotheses que cau-
telosamente exposemos.
Uma só, das ultimas, nos pareceu segura, e essa
podemos hoje confirmal-a. É a de que logo aos três
annos entrara Maria Alcoforado para a clausura
conventual pois que o termo de óbito, que desco-
bríramos, lhe attribuia 82 annos em 1741, e em
1660, quando o pae fazia o seu testamento, era já
professa Marianna.
Mas além de que não podemos fiar-nos inteira-
mente na estimativa das edades Q'estes termos con-
ventuaes, — e o da própria irmã nos advertia de
como, n'uns casos, a vaga tradição oral, e n'outros,
o propósito de abreviar ou illudir as prescripções le-
gaes, tornavam precária aquella base de calculo, —
duas circumstancias poderiam objectar as datas de-
duzidas d'aquella indicação.
Era a primeira a de se dizer simplesmente n'esse
mesmo testamento que Maria Alcoforado quando o
fazia (1676) era «maior de 12 annos.» Antes de os
ter não poderia testar, é certo, mas poderia pro-
fessar aos 16 e mais cedo. Ha até nos próprios li-
vros do convento muitos exemplos de profissão em
menores edades, e tendo morrido os pães e tratan-
133
dose de liquidar a casa e de constituir, amigável
e definitivamente, o morgado, poderia bem sup-
pôr-se que se esperasse apenas pela edade legal
dos 12 annos e que se não deixasse approximar
muito a da profissão, para mover Maria Alcoforado
a fazer aquelle testamento pelo qual, em vez de
entregar os bens á instituição piedosa a que entre-
gava a existência, os declinava em beneficio da in-
stituição mundana que havia de sustentar a prosá-
pia do nome. . . e dos irmãos.
O próprio convento seria interessado em que ella
professasse cedo, e demais, mostrando-se tão viva-
mente empenhado o pae em consolidar o morgado
que fundara, não seria natural que levasse a filha
à desistência dos seus direitos se em vida d'elle ti-
vesse attingido a edade de testar, como teria, de-
certo, se tivesse realmente nascido quando o termo
obituário parecia indicar:— em 1659?
Depois, — e esta circumstancia não se nos aífigu-
rava menos importante, — ter-se-hia dado este facto
extraordinário de uma admissão conventual aos três
annos de edade.
E chamamos extraordinário o facto, sem querer-
mos dizer com isto que não acontecesse algumas
vezes serem entregues aos conventos de freiras,
creanças de edade inferior á que as Constituições
terminantemente estabeleciam.
Este monstruoso enterramento da infância na vida
claustral^ não seria até extremamente raro, con-
vindo notar que esses conventos eram os únicos es-
134
tabelecimentos de educação e instrucção femenina
que existiam então.
Mas aos três annosl. . .
Precisamente as Constituições do convento da Con-
ceição recommendavam muito expressamente que
não se dispensasse a edade de 12 annos para a
admissão — «se não ha caso tão grave que quasi
seja forçoso, pollos danos que se experimentão de
criar mininas em os Mosteiros. í>^
E preceituavam ainda: — «Se se receber algíia
minina menor de dose annos, não esteja debaixo da
Mestra das Nouiças, mas seja outra Religiosa depu-
1 Constitviçoens \ geraes, | para todas as freiras, e religiosas,
I sõjeitas â obediência da Ordem de N. P. S. Fran \ cisco em
esta familia Cismontana: \ de novo recopiladas das antigas,
e acrescentadas, com acordo, consentimento, & aprouação do
Capitulo Geral celebrado em Roma a onze de Junho do Anno
de Mil, seiscentos & trinta & noue etc. — Tradvzidas de espa-
nhol em portvgvez, & acrescençoens que se fizerão em os Ca-
pítulos Geraes, que se seguirão, por mandado do N. R. P. Fr.
Joseph Ximenes Samaniego, Ministro geral de toda a ordem :
E de nouo mandadas obseruar em o Capitulo Geral que se
celebrou em Roma, no Anno de i676. — Lisboa — ISa oíficina
de Miguel des Landes, — m.dc.lxxxi.
Exemplar abbadecial da Conceição. Estas Const. tinham sido
revistas e mandadas executar em capitulo geral, em Roma, em
1630. Novo capitulo geral em 167(5 recommenda a sua execu-
ção, e em 1681 foram vertidas do hespanhol para portuguez
recommendando-se novamente a sua execução em carta pa-
tente do provincial Fr. Manoel de S. Thiago. que lembrava
ás abbadessas a excommunhão maior latae sententia se não
trouxessem comsigo o código conventual.
135
tada para isto que a tenha A- ensine até que tenha
dose annos, porque desde então hade entrar em o
Nouiciado á- estar com as mais Nouiças, até que
professe.»
De que não seriam lettra morta aquelles precei-
tos, temos testemunlio no facto revelado por um
clironista, de ter sido preciso um breve pontifício
para que podesse ser admittida aos 7 annos, no
convento, uma das próprias companheiras de Ma-
ria Alcoforado.
No termo de óbito de outra, Josepha Maria de Je-
sus,— em junho de 1700, — conta-se também, jus-
tificando largamente o facto, que n'essa edade fora
admittida depois de varias deligencias e auctorisa-
ção superior, trinta annos antes.*
Não parecia tudo isto denunciar que um grave
caso, no dizer das Constituições, dera origem á en-
trada de Maria Alcoforado quando apenas — «me-
nina de três annos?»
Se ella tivesse nascido em 1659 esse caso deve-
1 — «. . . entrou no Conv.'" deydade de sete annos, o pay
empobreseu não teue p.* lhe dar todo o dote. . .»
Liv. das Religiosas defuntas ( o 1."), etc. MS. eit.
Mas de uma outra admissão aos 3 annos temos exemplo
n'este mesmo livro. É a de Rosa Maria do Rosário, que mor-
reu, de 19 annos, em 15 de dezembro de 1698, de quem diz
o respectivo termo: — «sendo criada no Cõuento dejdade de
três annos con hii breve de sua sãtidade q. lhe consedeu p.' q.
desta jdade viese e eixersitou os annos da minise em apren-
der a ler e cantar e estrumentos q. em tudo foy m.° sabedora».
136
ria ter-se dado em 1662. Nenhuns vestígios encon-
trávamos d'elle. Em 1662 o pae adoece e é só en-
tão, em 14 de outubro, que entrega ao official pu-
blico o testamento, feito em 1660.
Morreria por este tempo aquella filha Catharina
que estava para professar na Conceição?
Mas além de que o facto não explicaria bem a
immediata entrada da outra para a clausura, tão
nova e em vida da mãe, natural fora que qualquer
declaração emendasse a que no testamento se re-
feria á existência da malograda noviça e ao con-
tracto feito com o convento.
Um acontecimento explicaria tudo, observámos
então: — seria a morte da mãe.
Gomprehende-se que as circiimstancias do tempo
não permlttissem ao velho Alcoforado e aos filhos
cuidar da creação da creança, e que d'ella tomas-
sem conta as irmãs. Nem vale a pena discutir se
não seria mais natural que o fizesse antes a irmã
casada, do que a freira professa.
Mas quando publicávamos o nosso primeiro tra-
balho, não poderamos apurar a data da morte de
Leonor Mendes e o próprio testamento do marido
fazia suppor que esse acontecimento se dera em
1671, data da abertura d'aquelle diploma.
Podemos hoje resolver a questão.
Maria Alcoforado nasceu, não quando o indica o
termo d'obito conventual, nem muito depois como
poderia deduzir-se do seu próprio testamento, mas
em 1660, sendo em 3 de setembro baptisada na
137
igreja de S. João de Beja, pelo próprio irmão na-
tural José da Costa .Alcoforado, e servindo de pa-
drinho o outro irmão, Balthazar Vaz.
E «o caso tão grave que quasi seja forçoso», —
exigido pelas Constituições para a admissão e crea-
ção de «mininas em os Mosteiros», foi realmente a
morte da mãe nos fins de 1663 ou princípios de
1664, quando Maria Alcoforado tinha apenas os três
annos, como diz no seu testamento*. Fazendo este
em 1676, professou regularmente aos 16.
É fácil de ver que estes factos não podiam ser
indiíferentes ao nosso assumpto. Não o são, até, á
historia critica, diremos melhor: physiologica, do
episodio das Cartas.
Aquella existência infantil que subitamente se en-
laçava na da enclausurada e adolescente religiosa
de algum modo lhe havia de perturbar e interrom-
per o trabalho da absorpção mystica com o fer-
mento mundano de uma maternidade incompleta.
Seria como um raio de sol, realentador e fecun-
dante, cahindo a prumo nos vagos anceios de uma
opulenta mocidade que se estiolava e debatia na
1 Uma nova pesquiza nos livros findos, armazenados, mais
exactamente amontoados na Gamara ecelesiastica de Beja, deu-
nos a descoberta do novo termo baptismal. E a noticia da
data obituária de Leonor Mendes veiu dar-nos razão ao es-
crúpulo que exposemos na primeira edição, em aceitar a hy-
pothese seductora de que fosse a mãe de Marianna que pro-
curando um derivativo á obsessão amorosa d'ella lhe confiasse
a irmãsinha.
138
solitária e monótona fatalidade d'aquella sepultura
antecipada da clausura, Trazia-lhe a animar-lhe, a
eslimular-lhe os estos de um organismo e de uma
alma de mulher intelligente, moça, forte, — reagindo
contra os vagos e inanes deleites da «contemplação
e da oração mental», — um fermento novo de vida
e de expansão affectiva, sexual, positiva.
Devia ser este, certamente, um dos «damnos»
que segundo as Constituições, se experimentavam
em — «criar mininas em os Mosteiros».
Se nas Cartas não ha, — e perfeitamente se com-
prehende que não haja, — allusão expressa á irmã-
sinha de Marianna, — n'ellas se encontra mais de
uma vez o traço nitido d'este embate e sobreposi-
ção de sentimentos, tão natural e lógico, e exacta-
mente na ultima, quando a obsessão apaixonada en-
fraquece e desarma perante a realidade implacável,
se denuncia a retrogradação instinctiva da pobre
religiosa aos affectos de familia e a — «um estado
mais tranquillo», — como ella diz, que seria natural-
mente o da educação da pequena irmã. A própria
existência d'esta, em tão tenra edade, na clausura,
deveria proporcionar a Marianna uma vida mais
desafogada das estreitas imposições e vigilâncias
devotas, além de que Francisco da Costa Alcofo-
rado fizera então^ segundo denuncia o testamento
da futura freira, e como já dissemos,— «umas casas
no convento», — que as filhas habitariam um pouco
emancipadas da vida em commum.
Voltemos porém a Maria Alcoforada que profes-
139
sando, antepoz ao nome o de Peregrina, passando
a chamar-se e assignar-se invariavelmente Dona Pe-
regrina Maria Alcoforada.
É somente em 1 690 que a encontramos, de novo,
já então escrivã do mosteiro, cargo que exerce até
1696, pois que é de 5 de abril d'este anno o ul-
timo termo obituário por ella escripturado no Livro
das Religiozas defuntas do Beal Comiento da Con-
çeipção de Beja, livro que ella organisa e abre*.
Estes registos conventuaes, — sobretudo os de
freiras, — são um pouco menos áridos e formalistas
do que os nossos modernos registos officiaes. Por
assim dizer, sente-se mais a intelligencia, — e ás
vezes até o coração, — de quem os escreveu, atra-
vez da narrativa passiva e obrigada dos fados.
Peregrina Alcoforado excede mesmo o padrão
vulgar. Como que constrangida na secca e lacónica
redacção do termo, quando trata de registar os óbi-
tos das suas companheiras, expande as recordações
e a observação, uma ou outra vez, n"uma espécie
de esbocetos biographicos que não deixam de ser
interessantes.
Ha um até, muito interessante, — que occupa não
menos de 7 paginas do obituário e rompe no ex-
cesso de intitular-se: — « Vida e morte da m.^ Anna
M.^ de São francisco Relligioza neste Conu.^ de Nossa
1 Dissemos já que o primeiro livro das profissões desappa-
receu.
i40
Srã. da Conceição. É uma curiosa nota, directa-
mente surprehendida, da vida e do mysticismo claus-
tral, em que a escrivã se faz inconscientemente es-
criptora^ na ingénua expansão do seu saudoso res-
peito pela companheira e amiga.
São 16 os termos que encontramos feitos por
Maria Alcoforado, sendo o primeiro de 16 de agosto
de 1690 e o ultimo de 15 de abril de 1696*. Es-
criptos com uma certa despreoccupação original do
formulário sugerem o reparo do vizitador Fr. José
da Trindade, em 15 de novembro de 1694, fazen-
do-lhe recommendar— «á M.® Escrivã q acabe to-
dos os termos na forma do papel adjunto e q não
deixe folhas em branco, senão q sempre se conti-
nuem os termos com distincção de três dedos en-
tre huns e outros».
Se foi escrupulosamente seguida a medida, de-
veria ter os dedos elegantemente afilados a madre
escrivã.
Calligraphia e dicção, — mais correctas do que o
commum, — são nitidas e firmes, poderia mesmo di-
zer-se que tem um certo ar distincto, no longo cor-
tejo de escripturas banaes, confusas, desleixadas.
Evidentemente: Maria Alcoforado é intelligente e
1 Fecha esta parte com o termo de visitaçâío de Fr. Joseph
da Trindade, «ministro provincial-), em 19 de outubro de 1696.
O tenno que se Uie segue é de nova escrivã,— Soror Maria de
S. Francisco, — em o de abril de 1C97. Passara-S3. pois, ao que
parece, um anno em que não houvera óbitos a registar.
141
instruída. Escreve facilmente, com segurança, com
uma certa distincção até. Parece saber latim, escre-
vendo-o correctamente nas citações, tem uma tal
ou qual educação litteraria, revela uma individuali-
dade própria.
Já no testamento de 1076, se sente uma intelli-
gencia e uma vontade mais acentuada e segura,
mais pratica e mais senhoril do que poderia espe-
rar-se na edade, e sobretudo nas condições, da jo-
ven noviça.
Será muito aventuroso suppor ver n'esse curioso
documento, alguém que ostensivamente não assiste
ao acto, mas cuja intelligencia e educação deve ter
tido a principal influencia na formação da futura
freira?
Tendo sido esta creada por Marianna Alcoforado,
desde «menina de três annos», naturalmente nos
inclinamos a julgar um pouco da mestra e educa-
dora, pelas revelações intellectuaes da pupilla.
Convém notar tudo isto até por ser vulgar entre
nós, — ainda entre pessoas illustradas, entre litte-
ratos, até! — ^a absurda idéa de que os conventos
eram recessos de ignorância idiota e de que as mu-
lheres portuguezas só por excepção raríssima pode-
riam ter sido seres racionaes, alguns séculos atraz.
Manifestamente os filhos de Francisco Alcoforado
não eram refractários ás lettras. De Balthazar Vaz
notámas isto já. De outros dois temos também tes-
temunhos directos. E teremos occasião de nos re-
ferir a uma descoberta interessante: — a da exis-
142
tencia de uma pequena bibliotheca de 200 livros
francezes, na successão da família. *
D. Peregrina Maria apparece-nos como abbadessa
no triennio de 1730-1732. Embora nos antecipe-
mos um pouco, notemos já esta circumstancia de
que nunca o foi a irmã, sua iniciadora e mestra na
vida conventual, e então uma das mais antigas re-
ligiosas.
É mesmo no seu abbadessado que começa a escri-
pturar-se um dos mais formosos registos que ainda
encontrámos no convento: o livro segundo das «en-
tradas e profissões», elegantemente encadernado em
marroquim com tarjas douradas e fechos de me-
tal,— numerado e rubricado em 27 de setembro de
1732 por fr. Pedro das Chagas.^
1 Outra Alcoforado nos apparece escrivã da Conceição, pou-
cos annos depois, em 1709. É D. Leonor Jacoba da Cunha
Alcoforado que julgáramos filha de Miguel da Cunha e que
pode ser, antes, a de Balthazar Vaz. A uma outra sobrinha,
Caetana, allude Peregrina Maria no seu testamento, natural-
mente a filha da irman casada com R. de Mello, que nascera
no mesmo anno que ella, — em 12 de março de 16G0, — segundo
outro termo baptismal que encontrámos no mesmo livro em
que descobrimos o de Maria Alcoforado : — «Caiatana, filha de
Rui de Mello e D. Anna, padrino Bartholomeu Lobo.» Mais
tarde professa no convento uma D. Catharina Eufemia Queru-
bina da Cnnha Alcoforado, filha do doutor José da Cunha Al-
coforado e de D. Rosa Maria Raposa, «naturaes de Beja».
E diziam que não se encontravam Alcofo radas n'este vi-
veiro d'ellns ! . . .
2 Abre com este titulo : — Livro 2° 1 Das entradas no Rea
i43
O nome de Peregrina Maria, como abbadessa ap-
parece também n'uma chronica, extremamente in-
teressante, publicada em 1753, que poderia ter pou-
pado aos commentadores das Cartas a inútil exhu-
mação do pagem de Villa Viçosa para fundamenta-
Mosteiro de | Nossa Senhora da Conceição de Beja \ do dia 27
de setembro de 1132 até \ — no qual se accrescentarão, além do
seo Nu I mero correspondente em cada assento, dois | índices,
hum cronológico, que começa f. 121 \ e outro Alfabético, que prin-
cipia f. 126 I sendo Abbadessa a R. M. D. Maria Theotonia de
Santa Anna, \ e Escrivãa \ a M. D. Margarida Rosa Joaquina
do Carmo \ no 1795 \ —
NB. Neste mesmo Volume se contem o Livro \ 2.° das Profis-
sões, que começa f. 141 \
Vê-se que este titulo foi anteposto ao primitivo, escripto na
folha seguinte com moldura desenhada á penna e lettra cui-
dada '.-r- Livro das Entradas, e \ Profissões, que teve a M. R. M."
1 e senhora D. Peregrina Maria | Alcoforada Ab." deste Real
Conv.^° I de N. Snr.^ da Conceyção, \ sendo sua Escrivã | A M."
Ignez losozefa Bap.'" Pr.^ | na era de | 1732
A fs. 120 e ncão 12i começa o Catalogo cronológico das En-
tradas no Real Mosteiro de N. S.^ da Conceição de Beja, que vae
até fs. 123 verso, sommando os nomes 155, A fs. 126 começa
o Catalogo Alfabético, que vae até fs. 140.
Na folha 141 lê-se :
Proficons que ouve, feitto este | Livro de nouo^ pella M.^ \ Es-
crivam Ignez losepha \ Bap.^^ Pr.^, sendo Abb.^ | o. M. R. M.^ e
S." D. Pe I regrina M." Alcoforada | na Era de 1732 an." Sf |
E no verso d'essa mesma folha :
Livro 2." I Das profissões feitas no Real Mosteiro de | Nossa
Senhora da Conceição de Beja do \ dia 14 de outubro da 1732
ate I — no qual, alem do seo Numero correspondente \ em cada
assento, se acrestaraõ dois índices \ no fim hum cronolog ico, q,
m
rem a suspeita de que teriam existido Alcoforados
para os lados de Beja!*
Depois de a encontrarmos abbadessa do convento
da Conceição, só podemos tornar a encontrar Pere-
grina Maria Alcoforado, — e ainda n'um registo ini-
começa f. 252 \ e outro alfabético q. principia f. 258 \ sendo Ab-
badessa no 1795 a \ R. M- D. Maria Theotonia de S.'* Anna, \
e Escrivãa a | M. D. Margarida Rosa loaquina do Carmo \
0 catalogo chronologico acaba em fs. 255 e somma 142 pro-
lissões. A fs. 27â lese o seguinte termo: — «Satisfazendo ao
mandado e ordem do N. M. R. P.* Fr. Ant.° da Purificação,
Preg.°'' da Mad." e da Prov.'' de Portugal, e Prov.^' da dos Alg.''
numerei, e rubi-iquei este livro das entradas, e profissões, e
achei constar de duz.'-"" e setenta e duas folhas principiando
desde o pr.° Termo e entrada, e p." test." da verd.* me assigno
hoje 27 de settembro de 1732. — Fr. Pedro das Chagas. L.'""
lub." e Vig." do conven.*". O livro é formado por caderyios de
8 folhas de formato pequeno (8.°) encadernado em marroquim
com tarjas douradas e fechos de metal. O primeiro termo de
entrada é de 27 de setembro de 1732, sendo Abbadessa D. Pe-
regrina Maria Alcoforado. No anno seguinte, a 2 de maio, a
abbadessa é outra: — Soror Filipa Maria Evangelista.
É realmente deplorável que não se tenha procurado conser-
var estes livros conventuaes, alguns até sob o aspecto artístico,
extremamente curiosos. Este que acabamos de descrever está
perfeitamente conservado, e mais ums vez notaremos quanto
é extraordinário que tantas tentativas de investigação feitas
acerca das Alcoforados de Beja, não lograssem encontrar este
e os mais documentos que vamos citando, e que ainda hoje
se diga e se escreva que não existe em Beja e no convento da
Conceição, vestigio documental do simples nome da religiosa
das Cartas indicada pela nota de Boissonade.
1 Chron. seraf. etc. por Fr.J. de Belém. Lisboa, 1853.
145
ciado sob o seu abbadessaflo, — morta em 2 de no-
vembro de 1741, de «hua malina q durou três dias».
Soror Clara Isabel Baptista, a escrivã d'aquelle
anno, não se esquece de accrescentar que a muito
reverenda madre dera a alma ao Creador «com si-
gnaes de predestinada» e informa, como dissemos
já, que linha 82 annos de edade.
Tinha 81, e 78 de clausura!
Forte e resistente raça, a d'estes Alcoforados!
Setenta e oito annos, corpo e alma de mulher
meridional, evidentemente vigorosa e sã, formosa
talvez, intelligente e amoravel, sem duvida, — se-
questrados entre as grades e as paredes d'aquella
enorme prisão, — sempre a mesma! — girando con-
stantemente no mesmo pequenino meio de obses-
sões idiotas e de devoções obrigadas!
Desde «menina de três annos»!...
E comtudo muitos mais amios se agarraram outras
áquella vida e áquella masmoi ra que um chronista en-
thusiasta chama «um paraíso de flores odoríferas».
Em 1736, por exemplo, fallecera uma compa-
nheira de Pei'egrina Alcoforado, com 120 annos.
A essa, quando já tão resequida pelo tempo que
não tinha, como no convento, de «castigar as re-
beldias da carne», segundo a piedosa e auctorisada
revelação do outro historiador franciscano, deixa-
ram-n'a ao menos ir aquecer os ossos ao sol da li-
berdade e no conchego da familia. *
1 Chron. seraf. etc. por Fr. J. de Belém.
F. 10
i46
Se é que tinha uma família que a reconhecesse
e amasse a pobre múmia inútil!
IV
Como vimos, Marianna Alcoforado nascera alguns
mezes antes de estalar a revolução nacional de 1640,
cujo fermento, no Alemtejo, se fizera sentir, com
inilludivel nitidez, nos tumultos de Évora, de 1637
e 1638.
É claro que não seria agora occasião de esboçar
aquelle formidável e dramático acontecimento que
levou mais de um quarto de século a representar
nos campos de batalha e nos gabinetes da intriga
politica, — atravez dos quaes,— de uns e de outros,
— passou triumphante, como era necessário e justo,
a Independência Portugueza.
Não precisamos tão pouco, demorar-nos, por mais
forte que seja a seducção, no estudo da epocha ou
dos successos de que as Cartas casualmente sahi-
ram trazendo já cortadas as suas ligações propria-
mente históricas pelo caracter absorvente e exclu-
sivo do episodio que se espelha e retrata n'ellas.
■ É certo, comtudo, que em volta do berço da fu-
tura freira, aquelles successos haviam de fazer logo
um grande alvoroço confuso de enthusiasmos e af-
fliccões.
147
A vida em Beja não tardaria em tornar-se pouco
tranquilla e segura, e na Casa dos Alcoforados ha-
viam de sobejar os cuidados, para que a educação
das filhas podesse fazer-se com esmero no meio
d'aquella azáfama bellicosa que logo seguiu a re-
volução.
D'aqui veiu, naturalmente, abreviar-se a entrada
no convento, de Marianna e de Catharina, as duas
irmãs e companheiras do testamento de 1660.
O pae lançara-se intrepidamente na incerta aven-
tura.
Corria a fronteira, — administrador e soldado, —
reunindo dinheiro^ gente, viveres, cavallos ; escara-
muçando com os hespanhoes; preparando a resis-
tência à invasão eminente; organisando a adminis-
tração para os grandes esforços de uma lucta des-
esperada.
A guerra ia desdobrar- se feroz, e o futuro era
duvidoso e escuro.
O Alemtejo tinha de ser o theatro dos maiores
movimentos bellicos.
Sempre por alli nos vibrara o castelhano os gol-
pes mais certeiros e terríveis da sua velha ambi-
ção. Quasi sempre, travada a lucta entre as duas
nações peninsulares, rompíamos nós pela Galliza
adentro e os hespanhoes invadiam-nos pelo Alem-
tejo.
Tínhamos, é certo, d'este lado sentinellas valen-
tes:— Olivença, Moura, Estremoz, Campo Maior,
Arronches, etc. — mas, coitadas, o abutre da domi-
10*
148
nação hespanliola, que duraíite sessenta annos rião
se fartara de sugar-nos todos os recursos e todas
forças, tinha-as desarmado e enfraquecido também.
Beja, mesmo, não poderia considerar-se segura
quando as forças inimigas que corriam á fronteira,
a rompessem impetuosamente do lado da Andaluzia.
E Beja, pela sua situação central e pelos seus es-
peciaes recursos, teria, em todo o caso, de desem-
penhar um papel importante na organisação e no
aprovisionamento da defeza nacional, d'aquelle lado.
Só mais tarde, porém, quando a lucta, depois de
arrastar-se longa e incertamente, começa a assumir
um caracter mais decisivo, e que o velho e ator-
mentado leão ibérico, vexado pela resistência dos
portuguezes, ensaia, furioso, o salto fatal, é que pa-
rece pensar-se mais seriamente na situação e na
utilidade estratégica de Beja.
Por um Nicolau de Langres, o conde do Prado
fizera levantar a planta da cidade. Em 'íO de julho
de 1660 o Supremo Conselho de Guerra adverte
que em Beja «está muito dinheiro para a fortifica-
ção d'ella, de que convém tratar sem dilação.» Logo
quatro dias depois, em 24 d'aquelle mez, resolve-
se que a planta «approvada pelos mais engenhei-
ros» se remetia ao conde de Athouguia, então ge-
neral das armas do Alemtejo, para que este incumba
a execução das fortificações projectadas a uma junta
1 Does. do Conselho de guerra, no Arch. Nac.
149
composta do governador de Beja, do provedor e
corregedor respectivos, e dos officiaes da camará.*
Este Langres parece ter sido um dos primeiros
aventureiros, — e quasi todos estes primeiros foram
de má espécie, — que se oíTereceram a Portugal.
Pouco depois bandeava-se para o serviço de Gas-
tella, pois que um curioso impresso de 1663 diz
d'elle o seguinte ':— «Era general de artilheria ad
honorem Monseur de Langres que ao soldo Portu-
guez veiu aprender o qne vae ensinar aos nossos
inimigos pois que não trasendo mais que a cazaca
de hum pobre forasteiro d- a sciencia de hum igno-
rante riscador. cõ o nosso dispêndio, não conhe-
cendo as obrigações a quem lhe deu o ser, como
quem tinha poucas serve ao partido contrario.»
Outras preoccupações e necessidades da guerra
parecem ter feito addiar a execução d'aquellas or-
dens, pois que ainda em 1665, em 2o de novem-
bro, sendo nomeado governador da praça e cidade
de Beja o sargento-mór da batalha Diogo Gomes de
Figueiredo, se lhe recommenda que trate das for-
tificações.
Gomtudo Beja tornara-se o centro de um grande
movimento mihtar, uma espécie de grande deposito
e aquartelamento do exercito do Alemtejo.
Alli se reuniam e organisavam algumas das for-
ças que tinham de ir servir na fronteira e alli vi-
1 Campanha de PoríV'gal pella provinda de Alemtejo na pri-
mavera do anno de 1663.
i50
nham aquartelar-se parte d'ellas quando os ardo-
res do verão apertavam, interrompendo a campa-
nha, como as neves e as chuvas interrompiam n'ou-
tros paizes as operações mihtares.
Alguma coisa grave se passara em 1662, pois
que a 6 de fevereiro d'esse anno se mandava abrir
devassa contra o governador da cidade.
Em 1663 Beja era agitada pelo pânico da capi-
tulação de Évora e por um tumulto succedido com
soldados inglezes, sobre o qual se instaurava tam-
bém inquérito official.
Era já então muito considerável o numero dos
auxiliares estrangeiros, — gente aventureira de va-
rias naturalidades e de diíTicil disciplina que prin-
cipalmente se accumulava no exercito do Alemtejo.
Habilmente organisada e distribuída em corpos, tanto
quanto possível homogéneos, batendo-se valente-
mente, essa gente não era naturalmente um modelo
de costumes polidos e honestos.
Uma narração da defeza de Villa Viçosa e da ba-
talha de Montes-Claros, não regateando louvores à
valentia e aos bons serviços d'estes estrangeiros,
mas narrando também as violências e desacatos que
elles commettiam particularmente nas egrejas e nos
conventos, diz que ás queixas que se dirigiam ao
Marquez General (Marialva) este respondia: — «Que
hei de fazer, com tão barbaras nações como as que
compõem este exercito?» '
«Quexaron-se los Religiosos desto, y de niuchas afretas
151
Desde o começo da campanha, o governo portu-
guez procurara, á custa de todas as difficuldades
que lhe creavam a politica e a influencia do inimigo,
alliciar o elemento estrangeiro para supprir a quasi
annullação das nossas forças militares durante o
longo dominio hespanhol.
Foi, porém, com a expedição preparada e condu-
zida pelo nosso hábil diplomata, conde de Soure, e
pelo celebre conde de Schomberg, — que aquelle,
auxiliado por Turenne, contractou, — que os auxi-
liares estrangeiros começaram a valorisar-se mais
distinctamente nos nossos exércitos, não só pela
sua força numérica, que ainda assim nunca passou
de 4:000 a o:000 homens, francezes, inglezes, al-
lemães e italianos, mas pela sua organisação, qua-
al Marquez General, que a semejantes quexas solia respon-
der:— Que he hazer a tan barbaras Jiaciones como las de que
se foi-ma este exercito?. . .
O nosso exercito compunha-se, segundo o mesmo chronista,
de: — Infanteria : portugueza 13:000 homens, franceza (em
dois terços) 1:200, ingleza 1:000. Cavallaria: portugueza
4:600, franceza 900 (em quatro regimentos, além da compa-
nhia do conde de Schomberg), ingleza 300. Artilheria: 20 pe-
ças. Haviam outras forças avulsas auxiliares.
«La caualleria estrãgera, generosamête nos emulaua, el re-
gimento Franeez dei conde de Schomberg gouernado por el
Teniente colonel Sausé, parecia recopilar los brios de su na-
cion . . .
Relacion verdadera y poiUval de la gloriosisma victoria que
€H la famosa batalla de Montes Claros alcanço el exercito del-
Rei de Portugal^ etc. (17 de junho de 1665.) — Lisboa, 1G65.
152
lidade e effectiva cooperação militar. O próprio nome
de Schomberg aítrahiu ao nosso serviço muitos dos
que liaviam combatido com elle ou sob o seu com-
mando.
Diversos escriptores portuguezes e estrangeiros
dizem que o heroe das Cartas, o conde de Chamilly,
viera com elle para Portugal.
Não é verdade.
Schomberg veiu em 1660, e já que está por fa-
zer, ou que anda tão deficiente e erradamente feita,
a biographia d'este vulto profundamente sympalhi-
co, permiltam-nos os leitores que deixemos regis-
tadas aqui algumas datas e diplomas pouco conhe-
cidos.
Um decreto real de 17 de dezembro de 1660
manda passar a Schomberg a patente de mestre de
campo general da província do Alemtejo, cargo que
se fez vagar pela promoção a governador das ar-
mas da mesma província, do conde de Athouguia,
sob o commando do qual passou a servir com mil
cruzados de soldo mensal, na forma do contracto.
Outro decreto de 24 de janeiro de 1661 nomeia-o
a elle e ao conde de Athouguia conselheiros de
guerra, isto é, membros do supremo conselho de
guerra, no qual residia então a direcção dos negó-
cios militares.
É só em 23 de novembro de 1663 que Schom-
berg é elevado a governador das armas do Alem-
tejo.
Terminada a campanha recebe o titulo de «conde
i53
da villa de Mertola», em 31 de março de 1668, para
elle e seus descendentes, com a respectiva pensão,
que foi como que a lemlwança com que, em phra-
ses extremamente elogiosas, o presenteou na des-
pedida o governo portuguez.
Schomberg trouxera comsigo dois filhos, Frede-
rico e Maynard, conde e barão de Schomberg, a
cada um dos quaes, em 24 de janeiro de 1661, um
diploma régio manda abonar a gratificação de mil
cruzados, emquanto não tivessem posto no exercito
do Alemtejo, para onde acompanharam o pae. Um,
o 2.° conde de Schomberg, é feito capitão de ca-
vallaria no regimento do pae, com 32^000 réis de
soldo, por diploma de 2 de outubro de 1661 ; o ou-
tro, o barão de Schomberg, tendo sido mandado,
por decreto real de 18 de janeiro de 1663, ao con-
selho de guerra, que o propozesse para egual posto,
recebe este na primeira vaga, por diploma de 8 de
fevereiro do mesmo anno.
A titulo de curiosidade daremos o seguinte elo-
gio que faz, do illustre aventureiro, uma narração
portugueza, raríssima, de 1661:
— «Mestre de Campo General o conde de Schom-
berg que para este logar veio a este Reino por de-
ligencias do Conde de Soure e persuações dos con-
fidentes desta Coroa, sem outro interesse mais que
o da honra e o da reputação, pois deixando os gros-
sos soldos que na paz vencia na França, veio bus-
car a guerra onde ardia com mais duvidoso fim.
espirito realmente generoso que não quiz entorpe-
154
cer no ócio da paz. Do seu valor, experiências e
candidesa Aleman com que serve esta Coroa se
promete aos Portugueses grandes victorias.»
Voltemos, porém, ao nosso assumpto.
Nos fins de 1660, quando Schomberg chegara já
a Portugal, Chamilly assistia ao casamento do irmão
mais velho, Herard Bouton, nomeado em 15 dezem-
bro d'esse anno governador do Castello de Dijon,
em favor do qual fazia uma doação importante, a
dos senhorios de Saint-Aubin, de Gamay, e outros
bens que lhe legara, em fidei-comisso, um tio.
É a este irmão e á cunhada, — Catharina Le Gomte
de Nonant, filha do tenente-general do governo da
Normandia, Jacques Le Gomte, que deve referir-se
uma passagem das Gartas da religiosa portugueza,
como veremos.
Só em 18 de abril de 1661, pelo hcenceamento
da companhia que commandava, é que Ghamilly se
achou sem emprego militar em França, e foi em
1663, segundo o seu processo de marechal, que
veiu para Portugal, naturalmente patrocinado por
Turenne, e com alguma das expedições que n'esse
anno e no começo do seguinte chegaram a Lisboa,
455
muito provavelmente com a do regimento organi-
sado por Briquemault.
«Foi provavelmente attrahido d'este lado, — diz
Beauvois, — «pela reputação de Schomberg com quem
a sua família tivera porventura relações de boa vi-
zinhança quando este fora governador de Verdun-
sur-le-Doubs, e com o qual., sem duvida, fizera co-
nhecimento durante a campanha de Flandres, ten-
do-se achado com elle no cerco de Valenciennes,
(1656), na batalha das Dumas e nos cercos de Ber-
gues dOrdenarde e Ypes (1658).
Era o 11.° filho dos qualorze que tivera um Ni-
colau Bouton, da casa dos Bouton, senhor de Gha-
milly, de Charangeroux, e mais tarde de Sainl-Lé-
ger, senhorios de modesta importância no Chalon-
nez e na Borgonha.
Beferindo se á nomeação de cavalleiros do Saint-
Esprit, em 1705, Saint Simon observa:
— aChamiliy chamava-se Bouton; era de boa no-
breza da Borgonha, anterior a 1400: camaristas
dos duques de Borgonha e bailios de Dôle. Taes
empregos não se davam n'aquelle tempo senão a
pessoas distinctas. Este nome bastante ridículo de
Bouton fel-o passar, mal a propósito, pour peu cho-
se.D
A mãe chamava-se Maria de Cirey.
Nicolau Bouton, e Hérard Bouton, o outro filho
a que já alludimos, adquiriram uma certa celebri-
dade durante a Fronda.
Em quanto elles se batiam intrepidamente por
156
Luiz Bourbon, príncipe de Conde, Noel entrava no
serviço militar do rei, ao qual se conservava fiel.
Nascera em 6 de abril de 1636, e em 8 de feve-
reiro de 1658 era feito capitão, sob o nome de conde
fie Chamilly, no regimento de cavallaria de Maza-
rin, commandado então por La Fueillade.
A paz dos Pyreneus, — aquella mesma paz a que
a má politica de Mazarin e da rainha mãe nos sa-
crificou,— reuniu a familia Chamilly, apenas osten-
sivamente separada pelas contendas e dissenções
politicas.
O pae morria em 1662, tendo feito testamento
em 22 de junho de 1661. no qual institue por prin-
cipal herdeiro seu filho mais velho Hérard — o-aii-
jourdluii en tel estat quil poiírra estre l'appui) et
advancemenf de ces frèrcs, comme il a desia fait, —
•etc.
Noel Bouton já cerceado na sua fortuna pessoal
pela entrega ao irmão do fidei-commisso do tio,
perdeu n'esse testamento o senhorio de Montaigu,
que fazia parte do condado de Chamilly, condado
conslituiilo por cartas régias de 1614 pela reunião
das baronias de Nantoux, Montaigu, etc. Em com-
pensação recebeu os senhorios de Saint-Léger, Den-
nevy et Saint-Gilles, que o pae herdara de um ir-
mão.
Uma irmã de Noel,— Carlota, — professara em
16i4 n'um convento benedictino de Chalon-sur-Saô-
ne, onde foi abbadessa em 1684. Outras duas fo-
ram e^ualmente religiosas, uma, Antonnieta, na ab -
157
badia de Juvigny, junto a Stenay, e a outra, Anua
Francisca, que á morte do pae aguardava no mos-
teiro do Lanchare, em companhia da irmã, a edade
canónica para professar.
Extravagantes coincidências da vida ! — por aqueila
mesma epoclia a filha mais nova dos Alcoforados
de Beja ia esperar, também, no convento da irmã,
Marianna Alcoforado, como a irmã mais nova de
ChamiUy, a edade legal da profissão.
O sr. Beauvois transcreve do processo de «re-
prise de fief et dénombrement des terres et seigneu-
ries de Saint-Léger et Dmnevy, par Messire Nod
Boulon en 1670^) a descripção das duas principaes
propriedades de ChamiUy:— dois velhos castellos,
— «encios de murailles et fosseysy), que embora lhe
aguentassem as prosapias, não deviam garantir-lhe
desafogadamente a existência.
Chegando a Portugal em 1663 ou princípios de
1664, provavelmente recommendado a Schomberg,
este, «considerando o valor, experiência e capaci-
dade de M. le Comte de ChamiUy- Saint-Léger, de
que elle deu provas nas guerras de França», no-
meia-o capitão no regimento de cavallaria de Bri-
quemault, ou Marco Francisco de Briquemault, — o
Briquimont de alguns nossos chronistas, — por pro-
visão datada de Estremoz em 30 de abril de 1664,
segundo Palliot, citado pelo sr. Beauvois.
É curioso que a esta nomeação corresponde ou-
tra egual, na mesma data, pelo rei de França, —
«sem duvida para conservar a Noel Bouton, — diz
158
o sr. Beauvois, — o seu posto e os direitos de an-
tiguidade no exercito francez, que elle certamente
abandonara com a connivencia do governo.»
Em 7 de dezembro de 1665 Chamilly é promo-
vido por Schomberg a mestre de campo e capitão
da primeira companhia de um regimento de caval-
laria a organisar, e repete-se o mesmo facto.
«Ainda aqui, — diz o sr. Beauvois, — temos diplo-
mas em partida dobrada, porque, dois annos mais
tarde, Luiz xiv ratifica a promoção do marquez de
Chamilly, nomeando-o por sua vez mestre de campo
de um regimento de cavallaria a organisar e capi-
tão da primeira companhia composta de 80 caval-
leiros não comprehendendo os oíiiciaes. Na commis-
são, datada de Saint-Germain-au-Laye (o mez ficou
em branco) no anno da graça de mdclxvii, o titular
é chamado marquez de Chamilly.-»
Mas doesta vez o facto tem manifestamente uma
importância maior. Revela a idéa de collocar Cha-
milly na situação de abandonar Portugal e o serviço
portuguez, quando lhe convenha, como official ex-
pressamente incumbido de uma commissão especial
do governo do seu paiz. Suggere a presumpção de
que, ou o moço capitão preparava, ou os seus pro-
tectores, e naturalmente seu irmão, o governador
de Dijon, promoviam, a retirada d'elle, embora a
guerra em Portugal não estivesse terminada e a
França procurasse vivamente fazel-a protrahir. É
particularmente significativa a lacuna a preencher
na data do diploma.
459
Este incidente approxima-nos já do episodio das
Cartas, se é que não entra na própria historia
d'elle.
VI
Como succede com Marianna Alcoforado, o nome
e a memoria do conde de Chamilly não apparece
nos nossos archivos e chronistas dos successos do
tempo.
Foram infructuosas todas as investigações a que
procedemos, amavelmente auxiliados por um estu-
dioso, particularmente auctorisado, o sr. general
Chaby, e pelo sr. Basto, do Archivo Nacional, nos
registos e mais documentos que restam do antigo
conselho de guerra.
Pode dizer-se que a estada e serviços de Cha-
milly em Portugal, desde 1663 até aos fins de 1667,
nos são apenas revelados pelos documentos e his-
toriadores francezes, e não é muito, ainda assim, o
que ehes nos revelam.
Chega a ser extraordinária e suspeita esta des-
apparição, ou esta falta de vestígios, da passagem
do illustre oíBcial por Portugal, quando a cada mo-
mento encontramos referencias, noticias e documen-
tos de tantos outros estrangeiros, da mais modesta
condição, que estiveram ao nosso serviço.
160
Devemos observar, comtudo, que uma graiKle
parte dos nosos documentos militares d'aquella epo-
clia, — incluindo a correspondência de Schomberg,
— parece ter desapparecido na devastação e no
abandono geral dos archivos, e na venda dos do-
cumentos accumulados em muitas casas herdeiras
de alguns dos principaes personagens do século
xvn.
Não poderá, certamente, attribuir-se a uma es-
pécie de ciúme nacional, este silencio acerca dos
serviços e feitos de Chamilly, se taes feitos e ser-
viços foram realmente distinctos, e se o capitão
francez conseguiu, — o que temos por duvidoso, —
adquirir uma situação brilhante e saliente entre os
seus companheiros de armas.
Se é perfeitamente injusto e absurdo attribuir
aos nossos auxiliares estrangeiros toda a gloria ou
todo o êxito da longa campanha, não seria menos
injusto inquinar de ingratos ou ciosos os nossos es-
criptores e os nossos generaes, para com esses au-
xiliares, dos quaes falam, geralmente, não só com
leal franqueza, mas até com mal retribuída gene-
rosidade.
Desde Schomberg, o hábil e dedicado general
que chega a obter uma enthusiaslica popularidade,
entre nós, até um simples corneta do corpo de Gui-
jardier, — um Monsieur Beauberry que em batalha
tomou um estandarte hespanhol, ou até Francisco
Salamão, o bravo capitão francez de cavallaria que
se fez matar, em 1606, em Paymogo, — os estran-
161
geiros que se distinguem pelos seus serviços á causa
porlugueza e que se batem intrepidamente por ella,
encontram nos nossos diplomas oíTiciaes e nas nar-
rativas e noticias dos nossos escriptores do tempo
um applauso franco e caloroso, perfeitamente isenta
de estreitas preoccupações ciumentas.
Comtudo, nem nas narrativas impressas que sãa
muitas, e algumas d'ellas vão acompanhando miuda-
mente os successos da campanha, — como o Mercú-
rio porltif/uez, — nem nos registos inéditos e officiaes
que formam ainda uma preciosa e abundante col-
lecção, podemos encontrar até o simples nome de
Chamilly, em qualquer das suas variantes. O seu
próprio genealogista P. Palliot é extremamente la-
cónico acerca dos feitos d"elle em Portugal, como
confessa o sr. Beauvois que não se esquece de ex-
plicar o facto pelo «desinteresse e modéstia que
impediram Noel Bouton de aproveitar as occasiões
de fazer-se valer.» Mas pelos seus «états de servi-
ce», reproduzidos por Pinard, sabe-se que o futuro
marechal esteve:
no cerco de Valença de Alcântara (15-24 de
junho de 1664).
na derrota dos hespanhoes em Castello Ro-
drigo (6 para 7 de julho do mesmo anno).
na batalha de Villa Viçosa, aliás Montes Cla-
ros (17 de junho de 1665).
no combate do rio Xevora (outubro 1665).
na tomada de Benses, Guardiã, Villa de Alça-
ria, Paymogo e San Lucar.
F. H
162
e que, finalmente, em setembro de 1667, to-
mara parte na investida do chamado Cas-
tello de Ferreira.
Pois em nenhuma das notícias contemporâneas
d'estas acções o encontramos citado!
É certo que n'ellas se encontram frequentes elo-
gios ás tropas e officiaes estrangeiros^ e particu-
larmente aosfrancezes, e confessando-o, o sr. Beau-
vois faz a seguinte observação que poderiamos con-
siderar um pouco imprudente: — «O titulo e patente
que Noel Bouton ganhou n'esta campanha, mostram
suíTicientemente que tinha parte n'estas homena-
gens. Merecera menos elogios sendo verdade que fosse
o triste heroe das Cartas portuguezas.y>
Se quizeramos dar á observação o valor de um
argumento, com quanta mais razão poderiamos con-
cluir o contrario, do silencio completo acerca de
Chamilly, quando calorosamente se elogiam os seus
companheiros de armas, citando-os a cada passo,
pelos seus nomes?!
A allusão a um titulo ganho por este official, de-
riva da supposição infundada, do sr. Beauvois, de
que elle recebesse do rei de Portugal o titulo de
marquez de Chamilly que apparece na sua nomea-
ção franceza de 1667, titulo pelo qual também o
sr. Beauvois erradamente affirma que «elle é co-
nhecido na historia.» E é tanto mais extranha a sup-
posição de que o governo portuguez fizesse mar-
quez o capitão de cavallaria, que o illustre escri-
ptor logo em seguida observa que o general Schom-
163
berg recebera d'esse governo, apenas o titulo de
conde de Mertola.
Em quanto ás patentes observaremos também
que, por auctorisações especiaes, os nossos gene-
raes, e por conseguinte Schomberg desde que com-
mandava em chefe, poderiam concedel-as em cam-
panha, mas que ellas poderiam também não ser
confirmadas pelo governo, e que a regra era, pro-
por o general e nomear o governo, como ainda em
4 de janeiro de 1666 se ordenava ao próprio Schom-
berg que propozesse capitães para algumas compa-
nhias que estavam sem elles.
Em lodo o caso, nomeação, ou confirmação por
parte do governo portuguez, não a encontramos em
relação a Chamilly, o que de resto importa pouco
para o caso, e pode explicar-se pela situação creada
a alguns officiaes francezes, nos últimos tempos da
campanha, de serem considerados em serviço do
rei de França, ou, pelo menos, como continuando
a pertencer ao exercito francez, o que o nosso go-
verno, aliás, contrariava. É esta situação que natu-
ralmente explica a repetição ou a confirmação das
nomeações de Chamilly, por Luiz xiv, a que atraz
nos referimos.
É muito provável que fosse só depois de ser no-
meado, em 7 de novembro de 1665, mestre de
campo e capitão da 1.^ companhia de um regimento
de cavallaria a organisar, — <í...qiiil leva», — diz
talvez um pouco precipitadamente o seu genealo-
gista,— que Chamilly fosse estacionar em Beja.
11*
164
Se na extensa província do Alemtejo a lucta se
concentrava ao norte, e do lado de Badajoz rompia
mais persistente e atrevida a invasão hespanhola, a
fronteira do sul não deixava de ser thealro de re-
nhidos encontros, e o baixo Alemtejo e o próprio
Algarve de sentir-se opprimidos e ameaçados pelas
forças inimigas accumuladas na Andaluzia. Um sen-
timento entre cavalleiroso e cortezão poupara esta
a um ataque vigoroso da nossa parte: — uma certa
deferência pelo parentesco da nascente dynastia
portugueza com a casa dos Medina-Sidonia, cujos
domínios se estendiam até ao Guadiana e formavam
d'aquelle lado o condado de Niebla.
Mas para essa região se voltavam, frequente e
previdentemente, as attenções dos generaes portu-
guezes, e Schomberg sabia bem que por alli pode-
ria ferir seriamente o inimigo e operar uma diver-
são eíTicaz.
Já em 1663 se formara o projecto de ir tomar
Ayamonte, e Schomberg fora então a Beja confe-
renciar com Gil Vaz Lobo, enviado expressamente
de Lisboa, e que deveria commandar a força naval
destinada a reforçar no Guadiana o ataque.
A victoria de Montes-Claros estimulava-nos cer-
tamente a tomar uma decisiva oíTensiva.
A ameaça crescente de forças inimigas na fron-
teira de Andaluzia, completando o cerco que os hes-
panhoes faziam a todo o Portugal, e a expedição pre-
parada em Cadiz pelo renegado duque de Aveiro,
para secundar a invasão do marquez de Caracena
165
mallograda n'aquella batalha, desarmaram as absur-
das contemplações para com as terras e vassallos
dos Medina-Sidonia.
Uma campanha oíTensiva d'aquelle lado ficou re-
solvida, e Schomberg foi para ella dispondo insen-
sivelmente todas as prevenções convenientes, como
diz o conde de Ericeira K
Addiou o projecto, a necessidade de reforçar o
exercito do conde de Prado, na fronteira d'Entre
Douro e Minho, contra os Ímpetos novos dos hes-
panhoes, ao norte, e para alli partiu em 1665
Schomberg, com três regimentos de infanteria eum
de cavallaria franceza. N'este, — que era certamente
o de Briquemoult, — foi Chamilly, pois que o vemos
na invasão da Galliza e na tomada de Guardiã.
Antes do fim do anno a expedição de Schomberg
estava de volta ao Alemtejo, e preparava elle a que
devia invadir a Andaluzia. Beja era naturalmente
indicada para ponto de concentração e aprivisiona-
mento de uma campanha, d'aquelle lado, e assim o
entendeu Schomberg mandando «convocar áquella
cidade», segundo aphrase do conde da Ericeira, «os
terços e companhias de cavallos)-> que julgou neces-
sários.
Em 1665, como já dissemos, fora para aUi no-
meado novo governador com ordens terminantes de
apressar as fortificações, e foi ainda nos fins d'este
anno que Chamilly recebeu de Schomberg a com-
Portiigal restaurado, etc.
166
missão de mestre de campo e de capitão de um re-
gimento de cavallaria a organisar. A 21 de feve-
reiro de 1666, reunido em Serpa, a 30kilometros
de Beja e 4 além Guadiana, todo o corpo expedi-
cionário, composto de 2:000 homens de cavallo e
outros tantos de infanteria,punha-se rapidamente em
marcha, e penetrando pela Andaluzia espalhava o pâ-
nico até Alçaria de la Puebla, que occupava, vindo
depois tomar Payraogo e recolhendo logo em seguida
a Serpa com muitos despojos e prisioneiros. Como
já vimos, n'esta expedição tomaram parte Chamilly
e Balthazar Vaz Alcoforado, e parte brilhante este,
á frente de um troço de cavallaria, como o attesta
o governador de Beja, um dos generaes.
lia poucos dias, ainda, por um bello dia assoa-
lado e alegre, viamos nós, da estrada de Serpa a
Beja, encostados a um sohtario cruzeiro erguido em
1612,* negrejar com singular nitidez no monte de
casarias da cidade, que corta o horizonte, uma certa
janella do convento da Conceição, — ajanella de Mer-
tola,— aponde naturalmente um olhar amante sau-
daria o regresso dos dois moços cavalleiros, da aven-
turosa expedição.
Paymogo, posição forte e estratégica, ficara guar-
necida, e alH ficara Salomão, — «o valoroso francez.»
^ Próximo á ermida de S. Pedro, tendo no pedestal esta
inscripção: — Desmolas se fez 1612. — D'atii tirou o nosso bom
amigo e notável artista, J. Camacho, um bello panorama pho-
tographico.
167
Tendo de ir a Exlremoz. Schomberg mandava
preparar em Beja nova expedição, e em 24 de maio
voltava a esta cidade, tomava o commando de 3:000
infantes e de 1:200 cavallos, e marchando com a
rapidez costumada ia cahir sobre San Lucar do
Guadiana, que em 29 de maio capitulava.
Outro general portuguez, D. Luiz da Costa, rom-
pia ao sul pelo condado de Niebla, e juntas as duas
expedições tomavam Gibraleon, Cartaya e Lepe, na
ria do Odiei, ameaçando Ayamonte e Huelva, a pe-
quena distancia. D'esta vez o pânico chegou até Se-
vilha, que se suppoz próxima de um ataque.
Retirando a quartéis de verão, estas forças não
podiam arredar-se muito da froQteira do baixo Alem-
tejo. Schomberg não deixaria de contar com um mo-
vimento de reacção por parte dos hespanhoes, cuja
linha, e não já de invasão, mas de defeza, se achava
cortada e ameaçada d'aquelle lado. Em 16G7 os hes-
panhoes tentavam vigorosamente retomar S. Lucar
e Paymogo, e ainda n'esse anno se emprehendia
nova investida portugueza em que também tomava
parte Chamilly.
Beja continuou pois a ser um centro importante
de movimento e de concentração militar.
Inesperadamente, compulsando os escassos res-
tos do archivo municipal d'aquella cidade, — em que
se encontram ainda alguns registos relativos á guerra
da Restauração, — topámos com um pequeno inci-
dente que não nos parece insignificativo para o
nosso assumpto.
168
É uma carta do infante, depois rei D. Pedro, ao
juiz e vereadores de Beja, que se refere e dá sa-
tisfação ás queixas d'elles «sobre a oppressão que
a cavallaria franceza continuava nesse povo.» É de
4o de junho de 1667.
Já por queixas idênticas se ordenara a Schom-
bergque aquelia cavallaria sahisse d'alli, indo aquar-
telar-se n'outro ponto. Duas companhias foram alo-
jar-se em Cuba, a 18 kilometros de Beja, não se
dando comtudo por satisfeitos os vereadores, e a
isto responde nova carta do Infante, em o de agos-
to, do mesmo anno, acompanhada de uma para o
próprio Schomberg insistindo na ordem real para
que a cavallaria franceza se arredasse de Beja e
seu termo.
Schomberg contrariava estas exigências, natural-
mente porque tal afastamento lhe prejudicava os
projectos e as necessidades da campanha. Retiran-
do-se do condado de Niebla, acordara com Aífonso
Furtado, general da cavallaria do Alemtejo atacarem
o castello de Ferreira, — «presidio de que todos os
povos d'aquelle districto recebiam grande prejuízo,»
— diz o conde da Ericeira, — e realmente em se-
tembro de 1667 aquelia posição hespanhola era
atacada e tomada, fazendo parte da expedição Cha-
milly.
Ora c tempo de notar que precisamente entre
1665 e fins de 1667, — em que não pode duvidar-
se da existência de Chamilly, em Beja, — é que de-
vem ter succedido os amores da religiosa portu-
169
gueza com o capitão francez de cavallaria, e que é
até em 1667 que o escândalo d'esses amores deve
ter attingido maiores proporções, coincidindo ou
terminando, não só com o afastamento da cavallaria
franceza, mas com a brusca retirada de Chamilly
para França, á volta da expedição de Ferreira.
Entraria n'aquella insistência vivíssima do juiz e
vereadores de Beja por que fosse arredada d'ahi,
não quaesquer outras outras forças, mas determina-
damente a cavallaria franceza, a influencia incon-
testavelmente grande da familia Alcoforado ? Nas suas
deligencias junto de Schomberg em favor d'aquelle
afastamento, o Infante procuraria obtemperar aos
desejos d'essa familia influente e poderosa que po-
deria ser-lhe útil na revolução palaciana eminente
e a um dos filhos da qual, — Miguel da Costa Al-
coforado,— elle offereceu quando Rei, um valioso
presente?
Em que poderiam consistir aquella «oppressões»
allegadas pelos vereadores, exclusivamente contra
a cavallaria franceza, n'uma cidade importante e
n'um districto em que a administração estava re-
gular e fortemente organisada?
Terá, em summa, o incidente alguma relação
com o episodio amoroso das Cartas, que profunda-
mente devia affligir e aíTrontar, como era natural
e como ellas próprias revellam, a familia da reli-
giosa e os sentimentos dos bons burguezes de Beja?
A situação especial do capitão francez, a protec-
ção de Schomberg, o interesse em não aggravar o
170
escândalo, o perigo, para a própria religiosa, na
adopção de outros meios violentos, deveriam natu-
ralmente aconselhar a que se afastasse d'alli para
longe aquelle official. Elle mesmo não devia sentir-se
muito tranquillo e seguro. Voltando da expedição de
Ferreira, Chamilly pouco tempo pode ter-se demo-
rado em Portugal, pois que em 9 de fevereiro de
1668 estava. . . no Franche Comté, tomando parte
na repentina invasão d'elle, por Luiz xiv, do lado de
Dijon onde o irmão, Hérard Bouton, era como dis-
semos, governador.
Schomberg e os mais officiaes e soldados fran-
cezes só partiam em junho de 1668, chegando á
Rochella em 13 d'esse mez.
Logo veremos como as allusões das Cartas con-
tinuam a coincidir implacavelmente com as datas e
circumstancias da vida de Chamilly.
II
os AMORES DA RELIGIOSA
E como das historias a alma he
a verdade, eu para melhor
descobrir esta, a fui buscar ao
Convento . . .
Desposorios do espirito ce-
lebr. entre o D. Amãte,
& sua Amada Esposa a
V. M. Soror Marianna do
Rosário, etc. — Fr. Ant.
d'Alm.— Lisboa.— 1094.
o convento da Conceição de Beja, ou mais pro-
priamente o Real Mosteiro de Nossa Senhora da
Conceição, da Ordem de Santa Clara e jurisdicção
franciscana, foi fundado em 1467 pelos infantes D.
Fernando e D. Brites, pães do rei D. Manuel, junto
dos seus Paços que n'e]Ies vieram a encorporar-se
e com os quaes communicava por um passadiço co-
berto, que subsiste, sobre a estreita rua dos Infantes.
Dá esse passadiço para o Coro de cima do conven-
to, e diz a tradição que de uma espécie de tribuna
ou janella saliente na sua juncção com elle, hoje
emparedada, e mascarada pela implacável caiadura
alemtejana, apparecia e falava (sic) ao povo a pie-
dosa princeza.
Successivamente acariciado e favorecido pela de-
voção realenga e particular, chegou a ser uma das
instituições mais grandiosas e ricas do seu género
entre nós.
174
O edifièio, muito arruinado, e habitado, apenas,
por duas religiosas, uma das quaes entrevada, e
algumas educandas e recolhidas, é vastíssimo e bas-
tante irregular, como quasi todos o são, por accres-
centamentos successivos á primeira traça.
A egreja ampla e formosa conserva na fachada
o aspecto primitivo destacando-se, soberbo e triste,
da estúpida caiação moderna^ n'uma porta ogival
magestosa e elegante, no rendilhado friso e nas fi-
guras e brazões da sua fidalga origem. A porta do
convento fica ao lado da egreja, na rua da Concei-
ção que desce do largo de S. João e da velha rua
do Touro, na próxima esquina da qual era o solar
dos Alcoforados. É uma bella porta manuelina, a
que roubaram, apenas^ por emquanto, as espheras
armillares que aliás se multiplicam interna e exter-
namente no enorme edifício, e accrescentaram, no
século xvn, umas lapides de inscripção devota, muito
em moda então e que egualmente se repete, de
louvor ao Santíssimo Sacramento e á Immaculada
Conceição da Virgem — «concebida sem peccado ori-
ginal.»
Dá esta porta para uma pequena casa pouco me-
nos que lobrega, de paredes e abobodas pintadas
com varias figuras, — entre ellas as dos fundado-
res,— e ao fundo da qual ficam as pequenas grades
e a roda de serviço commum. Á esquerda, duas
escadas, das quaes uma relativamente moderna,
conduzem aos locutórios de grades duplas, bastante
largas e illuminadas, e á direita uma porta construída
175
ou restaurada em 1742 abre para a pequena sala
da porteira, também de restauração moderna (1803)>
que é hoje o verdadeiro locutório e que dá imme-
diatamente para o claustro.
Este, e o Capitulo que abre também para elle,
são notavelmente originaes e pittorescos, de feição
manuelina que se consorcia formosamente com a
tradição árabe, architectural e decorativa, tão pro-
nunciada em muitas construcções d'além Tejo. Como
é natural, predomina o azulejo e o tijollo. Sob a ar-
cada ha diversas capellas, algumas muito alindadas
e ricas, e a aboboda e os intervallos das paredes
estão cobertos de arabescos e episódios em pintura
graciosa e quente. Toda esta decoração que cobre
alegremente muitos restos da architectura primitiva
é do século xvn e tem um certo ar feminilmente
elegante e artístico que não é vulgar n'estes edifí-
cios. Uma das alas da arcada, ou mais exactamente
a sua decoração é de 1057. A Capella do Evange-
lista é de 1601. A do Baptista, — a do «grande Ba-
ptista», como diziam as freiras, é de 1GÍ4. Tudo isto
existia pois no tempo de Marianna Alcoforado, e
tudo isto é gracioso, intelligente, quasi mundano.
O Capitulo foi reconstruído em 1657 e renovado
em 1727*. Limpo e cuidado, com a sua Capella do
1 Sobre a porta, por baixo das armas reaes sustidas por
dois anjos lê-se : — Anno 1657, — ena juncção da colurana
central com os artesoados da aboboda ha a seguinte legenda:
■ — Esta obra sefes \ no seg. triénio da M.^" R.'^^ Snrã. D."^ Ber
176
Christo Crucificado ao fundo, cheio de sombras e
scintillações phantasticas, parece aguardar teimo-
samente, n'uma grande tranquilidade mystica, as
suas queridas religiosos.
N'aquella Capella, conta um chronista que se met-
tera em 1724 Anna Maria de Santa Theresa, dor-
mindo no chão, aos pés da grande figura terrivel-
mente macerada e fria do Nazareno, flagelando-se
frequentemente, e comendo apenas um pão que to-
dos os dias lhe dava pelas grades D. Peregrina Ma-
ria Alcoforado, a irmã de Marianna*.
Alguma d'aquellas desgraçadas que procuravam
na therapeutica das disciplinas e dos jejuns apagar
os «incêndios da carne» de que falam, com tanto
horror como indiscreto conhecimento, os piedosos
chronistas ! . . .
O antigo refeitório, que começou por ser dormi-
tório lambem, segundo uma inscripção que diz tel-o
mandado fazer D. Manuel, em 1506, foi, segundo
outra, que alli existe, refeito «de aboboda na era
de 1629, sendo abbadeça Madre Dona Marianna
Henriques.»"^ É um vasto salão térreo, á entrada
do convento, a um dos lados do claustro, que foi
modernamente apphcado a celeiro. A porta ogival
é formosíssima.
I «.» An.'^ Lobo. de Tor | eio. e apinivra. a sua costa. Era
1727.
1 Chr. Seraj. pelo P. Fr. Jcronymo de Bellem. — Lisboa.
1753, p. 2.^
~ !.■'' inscripção; — «Era de 1.5.0.0 se fez esta esta de refei-
177
Impressão análoga á do Capitulo, produzem os
Coros.
São dois, como de ordinário, um ao nivel do pa-
vimento da egreja, outro por cima, a meia altura
d'ella.
Alli, aquella impressão é mais viva ainda, por-
que os livros de orações das educandas e recolhi-
das actuaes, espalhados sobre os bancos, as grandes
estantes do cantochão, os lampadários accesos, um
certo ar de vida que nos envolve e penetra, pare-
cem avocar-nos aquelles tempos em que, no dizer
de outro chronista, «raramente se passará meio
quarto de hora^ posto que seja na maior profundi-
dade da noite, que o Coro não esteja acompanhado
e assistido de gente desvelada nas contemplações
da Bemaventurança.»*
Feito o devido desconto á rhetorica e ao tempo,
pode dizer- se que um e outro coro estão ainda co-
mo os descrevia em 1753, Fr. Jeronymo de Bellem:
— «Nos dois coros, alto e baixo, se admira o maior
asseio e perfeição em riquesa e ornato, com sin-
gulares pinturas, que em tudo parecem á vista dois
retratos do Ceu.»
Falta, no de cima, reconstruído em 1741, — o Ba-
ptista, citado pelo imaginoso frade, ou a informa-
toyro e dormitório p. mandado dei rey Dom manuel nosso se-
nhor E teve carego de vedor delle ruj piz. . .»
2.* inscripção : — «/. H. S. Este refeitório se fez dabohoda
na era de 1629 sendo abbaa. Madre dona Marianna Enriqves.
1 Hist. Seraf. & por Fr. F. da Soledade, 170o.
F. 1-2
178
ção d'elle confundiu com a figura do Precursor a
do Christo resurrecto, serai-nua e vigorosa, alan-
do-se do sepulchro cerrado, e empunhando o guião
vermelho da Boa Nova, ao passo que em volta sol-
dados romanos de fortes carnaduras, acordam em
movimentos de assombro.* É um enorme quadro,
feito por aquelle tempo, sobreposto ás grades do
coro, que pouco vale como pintura, mas que sé
destaca fortemente como uma grande mancha de
vida, no meio dos outros pastiches escuros e mor-
tos, e que os raptos contemplativos das pobres ra-
parigas enclausuradas não deixariam de vestir de-
votamente de todas «as celestiaes formosuras» que
lhes segredavam os livros e algumas vezes. . . o diabo.
Ao subir uma pequena escada sombria, ferira-
nos já a attenção, outra figura, quasi escondida a
um lado: — uma madona bastante debotada pelo
tempo, dando um seio rosado e túrgido aos lábios
frescos do Menino.
Extraordinária contradição, a d"estas glorificações
plásticas da Carne e da Maternidade, offerecidas ás
«deleitaç(5es contemplativas» das Esposas- Virgens
do Summo Espirito, votadas á perpetua Castidade I
Ha pouco surprehendeu-nos no celebre mosteiro
de Oaivellas uma contradição mais brutal, bem mais
picaresca, pelo menos.
1 Emsndemos também a confusão que se introduzira nas
recordações da nossa primeira e rápida visita, sob a impres-
são da noticia de Fr. Jeronymo.
179
N'um largo revestimento de azulejo da parte in-
ferior das paredes de uma pequena cella, — e de
uma das que se alinham de um e de outro lado
nos vastos dormitórios antigos, — não nas que foram
aposentos privativos e independentes, não, por exem-
plo, nos da celebre Madre Paula,— desenhavam se
brincando e enleando-se em suspeitas folias, a Am-
philrite e Neptuno, Galatea e Sileno, vários satyros
barbudos e nymphas de formas opulentas, audacio-
samente traçadas a amarello em aguas e bosques
multicores do mais pagão eíTeito. Na Conceição^
como em todos os mais conventos, existiam as duas
espécies de alojamentos a que acabamos de alludir:
— a dos dormitórios communs em pequenas cellas
construídas a um e outro lado de um longo salão,
com ou sem tectos próprios, pois que não chegavam
ao grande recinto, — e a dos quartos ou cellas em
grupos formando alojamentos independentes e pri-
vativos que eram os que as freiras do século xvii
chamavam as suas casas.
A primeira espécie era a que auctorizavam as
Constituições. As da Conceição, por exemplo, di-
ziam:— «Porém sempre se farão os Dormitórios e
Cellas ... em tal disposição que a Abbadessa com
uma ou duas portas os feche de noite. E lerá em
seu poder as chaves.» Temos encontrado este cui-
dado das chaves muito significativamente recom-
mendado n'outros conventos:— ainda ha pouco no
livro das visitações do convento da Esperança, (Lis-
boa) alludindo ao pretexto de irem tratar das suas
12*
i80
hortas, que parece allegavam as religiosas para sahi-
rem de noite á cerca.
Mas á parte as causas e influencias mundanas,
facilmente apreciáveis que fariam illudir e abando-
nar a regra geral, o simples crescimento da popu-
lação monástica bastaria para ir çreando novos alo-
jamentos fora dos dormitórios regulamentares.
Um termo de visitação ao convento de Odivellas,
reprehende asperamente a relaxação de dormirem
as freiras nas suas Casas que lhe são permittidas
somente para n'ellas estarem e trabalharem de dia.
Mas de que o costume era corrente e assente na
Conceição, temos prova nos próprios termos con-
vcntuaes, sem que a tal respeito façam objecção os
visitadores. No do óbito de uma das companheiras
das Alcoforados, por exemplo, se narra, louvando-
Ihe a piedosa constância, que «assistia de dia e de
noite em hua casa pequena» que mandara fazer
n'um terreiro do convento, junto de uma capella
que egualmente fizera, «e da qual só sahia para o
coro e matinas da meya noite e para assistir ás en-
fermas.» Por signal que tivera bulhas, por causa
d'estas edificações, com outra religiosa que alli ti-
nha também «as suas casas», — e a quem parece
que não convinha a visinhança, aliás tão devota.
É claro que estes alojamentos eram geralmente
feitos pelas freiras mais ricas ou pelas suas famí-
lias, e sabemos já que para as filhas mandara tam-
bém fazer no convento — «umas casas», — Francisco
da Costa Alcoforado, onde Marianna viviria já ao-
181
tempo do episodio das Cartas. Deveriam ficar, até,
na parte posterior do edifício, do lado da rua da
Conceição e das portas de Mertola que é para onde
se foi accrescentando, evidentemente, o edifício, no
século xvn.
Grande era então a população conventual, e não
podia corresponder a ella, o numero das cellas dos
dormitórios, que ainda hoje pode approximadamente
computar-se.
Diz uma chronica que em 1617 havia alli 120
freiras professas e mais de 20 noviças. E em docu-
mento de um processo extractado no Tombo do
convento, e terminado por uma sentença real da
Casa da Supplicação, em 14 de abril de 1640,
diz-se que haviam — «de portas a dentro dusentas
e onze mulheres entre freyras e servidoras, e cinco
frades com seus moços de serviço e muitas mulhe-
res que servem de portas a fora, e outros ofíiciaes
da casa a quem sustentam.» Mas este recencea-
menlo refere-se a alguns annos atraz, a 1628, e a
população conventual devia ter augmentado muito
depois de 1640 e durante a guerra. Imagine-se esta
multidão femenil apertada entre as sombrias pare-
des do devoto recinto em meio de uma cidade agi-
tada pelos alvoroços da campanha fronteiriça, cheia
de soldados, aventureiros e extranhos. . .
Está claro que esta dispersão das religiosas, e es-
tes alojamentos privativos e independentes de mui-
tas d'ellas, creavam facilidades que poderiam con-
trariar, em mais de um ponto, a regra conventual
182
e illudir a \igilancia e fiscalização tão vivamente re-
commendadas nas Constituições, apezar de todas
as severas precauções estabelecidas nellas.
Mas não é d'isto que tratamos agora, e apenas
accrescentaremos ainda que a titulo de devoção ou
de penitencia especial, se chegava a construir edi-
fícios isolados^ no próprio recinto dos conventos
para onde uma ou mais religiosas iam viver, muito
tempo, apartadas do convívio das outras, quando
«aspiravam á heróica empreza de viverem só com o
seu Amado, totalmente abstrahidas do commercio
das Creaturas», — como explica, nos arrojos rheto-
ricos do seu devoto enlhusiasmo, Fr. Caetano do
Vencimento, na Vida da celebre beata Madre Ma-
rianna da Purificação K A isto se chamava o deserto.
Situado n'uma elevação hoje quasi central, mas
em tempo no extremo sul da cidade que para aquelle
1 Fragmentos da prodigiosa vida da muito favorecida, e amada
Esposa de Jesus Christo, a Venerável Madre Marianna da Pu-
rificação Religiosa Carmelita Calçada do Seminário de almas
Santas, o Reformadissimo Convento da Esperança da Cidade
de Reja. &. Pelo M. R. P. M. Fr. Caetano do Vencimento. &.
—Lisboa &.— 1747.
Este Livro é o quadro mais extraordinário e completo que
conhecemos como revelador do sensualismo mystico dos con-
ventos.
Temos á mão um outro, e é curioso que trata também de
uma Soror Marianna, contemporânea da nossa, e freira n'um
convento do Alemtejo, egualmente. É este: — Desposorios do
espirito, celebrados entre o divino Amãte, cS: sua Amada Es-
posa a venerável Madre Soror Marianna do Rosário, religiosa
183
lado se foi alongando; próximo das antigas mura-
lhas e sobranceiro ás portas d'ellas chamadas ainda
de Mertola: — o Mosteiro da Conceição não tem cerca
e os seus elevados muros dão immediatamente so-
bre as ruas que o limitam n'um vasto e irregular
polygono: — a da Conceição, a dos Infantes, e a da
Fabrica.
Descrevendo esta posição do mosteiro um chro-
nista franciscano esmera-se em insinuar uma pe-
quena circumstancia em que poderá ver-se apenas
o requinte devoto no elogio do recolhimento con-
ventual, se não fosse o facto d'esse chronista ser
contemporâneo do episodio das Cartas^ escrever
quando já diversas edições corriam mundo, e a re-
ferencia parecer habilmente ensaiada para afastar
do Convento da Conceição a indicação indiscreta da
Religiosa. Em uma das Cartas, Marianna allude ao
de veo branco no convento do Salvador da Cidade de Évora.
Offerece-os, etc. Frey António d'Almeida, etc. — Lisboa, etc.
1694.
Sobre aquelle mesmo thema, do retiro devoto, diz :
— « . . . recolhida todo o tempo que possivel lhe tra em o
retiro, «Sc refugio da sua cella, ali passava naquella ditosa so-
lidão sem estar só, porque nunca está só quem busca a Deos.
Tão grandes erão os regalos que neste doce retiro lograva seit
espirito com a presença do Celeste Esposo, que desejosa de
lograr sempre aquelles amorosos allivios, quasi lhe causava
já tédio a lida, & commonicação das creaturas, «& desejava li-
vrarse de todas ellas, indo-se com o seu Amado para hum
deserto. >
i84
miradouro, ao halcon, como traduz Guilleraques,
«donde se vê Mertola» e de onde ella viu pela pri-
meira vez o capitão de cavallos. Logo veremos o
valor da allusão.
Publicando em 1705 a sua interessante Chronica,
fr. Fernando da Soledade ^ diz, referindo-se ao con-
vento onde Marianna Alcoforado, que elle não cita,
vivia ainda; — «Não lhe deu commodidade para hor-
tas, pomares ou jardins a visinhança das ruas, mas
a grandeza da casa repartida para diíTerentes usos
em quartos multiplicados e todos muito perfeitos,
representa um paraíso alegre, no qual recreando-se
os olhos, respiram juntamente os corações aperta-
dos . . . Ainda nos tempos presentes, segundo nos
afjirmam pessoas de inteiro credito, manifesta o que
foi sempre, na forma dos locutórios, na cautella em
todas as partes publicas, nas Matinas á meia noite,
e nas mais obrigações que satisfazem como devem.
Estando toda a Casa cercada de muros altos, sem
hortas, nem cerca em que se possam divertir com
algum desafogo, sempre fizeram capricho de não con-
sentir que se edificasse um miradouro d' onde os olhos
vaguemido pelas cousas terrenas, talvez poderiam des-
viar as almas das delicias celestes )■>.
Haja ou não reservada idéa, o rhetorico frade ou
foi audaciosamente iiludido ou mente.
A simples inspecção externa do edifício imme-
1 Chron. Seráfica, etc.
185
dialamente destroe a elogiosa ou intencional affir-
mação, á qual a mais rápida visita d'elie não per-
mitte sequer o recurso de poder suppor-se que no
tempo do frade ou do episodio das Carias não exis-
tissem os miradouros que lá se encontram ainda.
Pode dizer-se que em todas as direcções pode-
riam as piedosas creaturas descançar e espairecer
a vista em «cousas terrenas», — além das que lá
dentro naturalmente as preoccupavam. Melhor gosto
e senso do que o seu pomposo chronista, mostra-
vam as pobres senhoras em não julgarem necessá-
rio sequestrar os olhos aos bellos panoramas e lar-
gos horizontes que mais intelligivelmente do que os
latins dos breviários e as lendas dos agiologios lhes
narrariam a gloria e o poder do Eterno: — Cceli
enarrant gloriam Dei.
Miradouro, é uma expressão genérica e archaica
que comprehende os eirados, as alpenduradas, as
varandas, os mirantes, os balcões, todas as varias
canstrucções accessorias d'esta natureza ou parti-
cularmente destinadas a espairecer, e recrear a vis-
ta, a receber o ar livre dos campos, etc.
No Alemtejo é a varanda ou o eirado.
Serve isto já de nota á nossa traducção das Car-
tas.
Quasi todos, e cremos que poderíamos dizer to-
dos, os nossos conventos, particularmente os de
freiras, possuíam taes construcções. Facilmente se
comprehende que no Alemtejo, onde pelas próprias
condições do clima ellas são vulgarissimas, não dei-
186
xassem de as ter as casas monásticas, sobretudo as
que, como a da Conceição, alojavam uma população
considerável e estavam cercadas «de muros altos,
sem hortas nem cerca em que as religiosas se pos-
sam divertir com algum desafogo».
Exactamente, a varanda suppria a cerca.
Á parte, pois, as janellas ou gelosias exteriores,
collocadas a diversas alturas, aquelle mosteiro ti-
nha excellentes «miradores», e dois, pelo menos,
existem ainda, em que a vista podesse recrear-se,
e por horas próprias mitigarem as pobres freiras
as calmas do verão alemtejano.
Um d'elles dá até immediatamente sobre a cida-
de, em forma accentuada e franca de mirante.
O outro, em que por uma circumstancia feliz, a
construcção antiga, original, do respectivo lanço dos
muros se accentua e impõe irrecusavelmente . . .
Ah, o outro, era o que nós procurávamos de ha
muito, com tão pouco respeito pela pia fraude de
fr. Fernando da Soledade que até. a affirmação d'elle
mais nos fazia desconfiar de que realmente exis-
tira I . . .
II
Percorrendo o enorme e quasi deserto edifício,
n'um d'aquel[es dias límpidos e ardentes do Alem-
tejo, como que sentíamos ir-se refazendo e acompa-
187
nhando-nos, nas sombras dos casarões nus, que
succediam bruscamente á luz quente e ampla dos
claustros, o episodio lancinante das Cartas.
A vida e tradição conventual que, á parte as va-
riantes mais ou menos severas e formalistas da Re-
gra, pouco deferia, no século xvn, de uma para ou-
tra clausura de mulheres, recompunha-se e resur-
gia no nosso espirito com uma nitidez estranha,
irrecusável.
Aquella grande solidão absorvente, desolada, de
um convento abandonado, faz irresistivelmente sen-
tir a inanidade, o vácuo, a obsessão, a grande con-
tradicção mystica, da vida claustral: — o silencio —
ftchave da alma e culto da justiça, formosura e or-
nato das Casas de Religião», — como o recommen-
davam as Constituições; — a contenção de lodosos
Ímpetos do sangue e da mocidade; a vida girando
monotonamente entre a Cella e o Coro; a sensibi-
lidade, a intelligencia, a vontade batalhando noite
e dia no vago dos «celestes favores» e das «doces
violências da Graça»; o i espiritual recolhimento»,
a ascese «contemplativa» torturando o coração e o
espirito com terrores mortaes ou malogradas volú-
pias; a clausura perpetua, a perpetua mutilação da
natureza, o perpetuo sacrifício incomprehensivel, fa-
tal, irrevogável*.
1 «Entrou com a consideração a ponderar o que em si via
& parecendo-llie que estava já no Ceu, tirou por consequên-
cia, que devia já ser morta para o mundo. O tiabito contiecia
188
E por baixo de tudo isto: — a pequena intriga e
o tédio inilludivel de muitas creaturas encarceradas
no mesmo destino e na mesma casa; a hypocrisia
permanente, os rigores absurdos, a emulação de-
vota em que não raro se esconderiam os pequenos
ciúmes e antagonismos femininos*; emfim os esti-
mulos e as seduções do mundo segredados nas pa-
lestras dos locutórios, nos olhares trocados atravez
das rejas, nas próprias revelações recebidas atra-
vez das rotulas dos confessionários, — que era «mui-
ta a liberdade das grades n'aquelle miserável tem-
po», como ingenuamente diz o venerável bispo do
Gram Pará . . .
Quando não fosse alguma coisa peor, alguma
d'estas terríveis monstruosidades de organismo ou
de sentimento que a natureza ou o diabo atiravam
ás vezes, n'uma revindicta cruel, para o meio das
populações claustraes, como, por exemplo, a reve-
ser mortalha, o Convento a sepultura, a deixação do mundo
o testamento, & finalmente o sacrifisar a vontade, a morte.»
Isto diz frei António de Almada, de Marianna do Rosário,
quando esta toma o habito, menina e moça de 11 annos! {Desp.
do espirito, ete.).
1 «Nenhua particularidade ha que se livre nas Communidades
de ser notada : he pensão esta, a que se expõem o qoe se faz
em presença de muitos olhos, & de diversas condições; &i as-
sim a Esposa do Senhor não foi muito experimentasse no seu
Convento diversos juizos sobre o tracto, & caridade particular
com que trattava a sua espiritual filha Soror Flena.» {Desp. do
espirito, etc).
189
lada por uma grave e piedosa sentença episcopal,
que temos deante de nós, mandando expulsar de
um convento de Villa Viçosa uma pobre freira por
se demonstrar, ao fim de muitos annos, «que não
era mulher mas homem».
Alguém quiz já irmanar a Conceição de Beja com
o mosteiro de Odivellas, na lenda galante que tão
celebre tornou este ultimo entre os nossos littera-
tos.
Por outro lado é vulgar, quando se fala da vida
conventual no século xvn, caracterisal-a por uma
grande relaxação das relações e dos costumes mo-
násticos, em parte estimulada pelo moUnismo.
Arredemos os dois themas que em absoluto con-
sideramos menos exactos e seguros. Á parte a ce-
lebridade derivada dos nomes ou das circumstan-
cias que pozeram em casual relevo certos factos
e não poucas invenções, e independentemente de
quaesquer influencias concorrentes do espirito do
tempo ou do desabuso dos espíritos, — cremos que
o fundo da lenda galante dos conventos de freiras
não cabe na simples historia de uma ou de outra
clausura religiosa, mas que se alarga necessaria-
mente pela de todas, e não partence a um movi-
mento particular de doutrina ou de escola, mas tem
uma explicação mais physiologica do que histórica,
sobretudo mais natural do que litteraria.
Nada, porém, auctoriza a singuiarisar o convento
da Conceição nos costumes e no espirito monástico
do século XVII, e coisa alguma nos parece haver na
190
episodio das Cartas que razoavelmente possa attri-
biiir-se, não já apenas a um modo de ser especial
da vida interior d'aquelle mosteiro, mas a uma fei-
ção exclusiva, característica, da epocha, menos ainda
á influencia molinista pouco consoante com a direc-
ção espiritual dos franciscanos. Exactamente, ainda
no tempo de Marianna Alcoforado, se inicia na Con-
ceição o movimento de recrudescência ou de reac-
ção beata, chamado da reforma, não sem resistên-
cia e protesto que vae até ao motim e á guerra
entre as freiras. Naturalmente o periodo revolucio-
nário e bellicoso da Restauração accrescentaria por
diversos modos o afrouxamento da disciplina e da
moralidade claustral. D'ahi, aquella reacção.
Mas independentemente d"isto, Marianna, em
1668, sente e fala, do fundo da sua triste clausura
como Ileloisa, séculos antes, abbadessa do Para-
cleto.
Por um ou outro d'estes dramas Íntimos que en-
contraram n*uma iutelligencia mais fina ou mais
culta a expressão exacta, communicativa, das pai-
xões que os teceram, quantos outros, semelhantes,
se afundaram obscuramente na corrente das intitui-
ções e dos tempos! A quem não terá succedido ao
folhear as grossas chronicas conventuaes, sentir re-
pentinam.ente vibrar, atravez das pompas e das ve-
ladas revelações da rhetorica beata, o drama ob-
curo, anonymo, de uma alma de mulher despeda-
çada na lucta feroz da natureza com a instituição
mystica?
191
A vida e a sociedade do Convento da Conceição
de Beja, na epocha que particularmente nos inte-
ressa, não se destaca nas chronicas mais próximas
6 auctorizadas, da monótona redundância dos casos
miraculosos e da glorificação devota com que os
historiadores monásticos costumam encher os seus
grossos volumes. Apenas nos termos conventuaes,
— nos que conhecemos, de Í690, em deante, — uma
ou outra vez se faz discreta allusão ás — «levianda-
des de moça», — de alguma pobre religiosa, para
lhe exalçar a predestinação que á força de cilícios
e jejuns a reconduziu á vida — ou á morte — «vir-
tuosa» e santa.
— «Em um paraiso de flores odoríferas, qual é
este mosteiro, na exemplaridade das virtudes», —
diz pomposamente um chronista, — «não podiam fal-
tar esmaltes preciosos que o enobrecessem, nem
religiosas santas que o esmaltassem com venerável
memoria de uma vida innocente.»^
E cada qual põe-se devotamente a contar as par-
ticulares devoções ou as milagrosas occorrencias da
vida de varias religiosas que desfilam deante de
nós como personagens de um mundo extranho, ape-
nas uma ou outra vez relacionadas com o nosso
por ligeiras referencias á vida real ou por uma ou
outra indicação beata que não raramente nos fere
e surprehende na sua ingénua rudeza. São, com
pequenas variantes, os mesmos casos succedidos
1 Hist. Seraf. chron., tom. ni, Lisboa, 170o.
19S
em todas as clausuras, de extraordinárias peniten-
cias illurainadas pela Graça, de particulares bene-
fícios e caprichosas preferencias do Divino Esposo
por uma ou outra religiosa, de grandes actos de
humilhação e de sacrifício, de raptos e visões que
devassam todo o mundo do mysticismo desde a ve-
luptuosidade perenne da Summa Gloria até aos hor-
rores da Eterna Damnação; — emfim, de assaltos
formidáveis ou de perfídias complicadas do Inimigo,
de rebeldias e tentações continuas da Carne. . .
Este ultimo thema é a cada pagina atacado e re-
solvido pelos devotos chronistas com uma intrepi-
dez, e por vezes com uma precisão de minúcias,
que espanta, realmente.
Falando, por exemplo, d'aquella pobre freira, —
companheira de Marianna e de Peregrina Alcofo-
rado,— que atraz dissemos ter entrado aos 7 annos
no convento, Fr. Jeronymo de Beliem, observa com
galante delicadeza: — «Da castidade só sentiu o que
faz mais meritória esta virtude, 'mas sentindo nunca
consentio, pois ao mesmo tempo em que se via con-
vidada ao appetite, na resistência encontrava alli-
vio, com créditos de merecimentos. Fazia muito por
suprimir os incêndios com rigorosas penitencias, e
castigava as rebeldias da carne própria e as faltas
da miséria alheia que a tanto chegava sua ardente
caridade.»*
1 O sr. Th. Bragca referindo-se evidentemente a este trecho
diz : — «Em uma Chroniea monástica, falando das freiras ce-
193
De outra, falada em todas as chronicas que se
referem á Conceição, — proclama também o minu-
cioso frade: — «Na virtude da castidade parecia ter
puresa de Anjo, porque nunca a tentação se atre-
veu a uma carne que lograva privilegio de espi-
rito.»*
Não se pode ser mais finamente delicado na in-
sinuação de como não eram raros aquelles incên-
dios, nem coisa que por banal devesse passar sem
lebres da Conceição de Beja, diz-se, alhulindo vagamente aos
amores de Marianna, que ella «sentira e não consentira». Por
aqui se vê que a tradição amorosa da Religiosa era conhecida
em Portugal, mesmo antes da entrada das Cartas.
Que o nosso illustre amigo nos perdoe: — não se vé tal,
nem precisamos phantasiar coisa alguma parecida. jN'aquelle
trecho não só não se allude vagamente aos amores de Marianna,
mas fala-se de Soror Marianna da Conceição, que não é Ma-
rianna Alcoforado, e sim uma sua companheira que morreu
em 1736 com 120 annos, tendo entrado aos 7 no convento,
por Breve Pontifício. De resto, a allusão seria tola. O chro-
nista sabia muito provavelmente que a sua contemporânea
Marianna Alcoforado, não somente sentira, mas consentira, e
por isso, talvez, não fala n'ella. {Chr. Seraf., Lisboa, 1753,
2.^ p.).
1 Da Marianna, dos Desposar ios do Espirito, não se esquece
também Ffcí ylntonio d'Almada de explicar largamente como
«a amada Soror. . . trazia tãto em os olhos da alma, qne era
por obrigação do seu estado Esposa deste Senhor, para des-
empenhar seu affecto em devida correspondência, fiel sempre
a seu castissimo thalamo, como a Esposo & como a Amado,
lhe guardava, óc resguardava com todo o recato a joya de sua
puresa.»
F. 13
194
elogiosa homenagem, o resistir firmemente . . . á
combustão.
N'estes registos, mais ou menos longos, das pre-
destinações conventuaes, vemos passar muitas das
companheiras de Marianna Alcoforado, sem que o
nome d'esta, já no começo do século xvni aureo-
lado entre ellas, pelos clarões da redempção peni-
tencial, uma só vez appareça: — são Catharina de
Aragão, — a da citação que acabámos de fazer; —
Marianna da Conceição, — a «que sentindo nunca
consentiu»;— Anna Maria de Santa Thereza, — a
que se flagellava na capella do Capitulo; — Guio-
mar de Jesus, — «solitária contemplativa sempre ele-
vada na contemplação da celestial formosura»; —
Ignez de Christo, — «tão silenciosa que ninguém sem
urgente necessidade lhe ouvia falar»; — Leonor dos
Martyres, — muito dada a ver extraordinárias coisas,
chegando a ver um dia no coro «um homem com
outro ás costas», visão perfeitamente explicada pela
mystica conventual; — Maria de Jesus, — cheia de
«toques e moções interiores»; — uma abbadessa, que
por nome não perca, que oppondo-se á construcção
de uma capella do Baptista, indo ás três horas da
madrugada para o coro, encontrou, nem mais nem
menos, do que «um homem venerando, vestido de
pelles ...»
Com animo varonil a boa freira exclamou: —
«Quem sois? Homens no Mosteiro a estas horas!?))
Entraram em explicações. Era o próprio Baptista
que estava alli expressamente para recommendar
i95
á intrépida freira que não continuasse a oppor-se
a que se lhe fizesse uma capella mais. Gonvieram
n'isto.
Caso mais extraordinário, — mais duradouro, pelo
menos, — succedia com outra religiosa, Soror Mi-
«haela dos Anjos, que, por signal, morreu em 23
de outubro de 1713, com 60 annos de edade.
O Menino Jesus, em pessoa, vinha regularmente
ajudal-a na sua cella, a fazer as flores e os ramos
para os altares.
É piedosamente encantador o registo de Fr. Jero-
nymo de Bellem. — « . . . e com curimdade de Frei-
ras, ellas a tinham de vigial-a para verem e admi-
rarem o que fasia, mas nunca puderam ouvir mais
que a sua voz . . . Por veses lhe fazia suas peças o
Menino e como recreando-se na presença da sua
amante Esposa, lhe misturava os materiaes das suas
flores para ouvir-lhe as queixas, como succedeu um
dia em que ella com a humildade de serva e privi-
legio de Esposa lhe dice: — «Aquietae-vos, como
estaes travesso! — Nesta forma trabalhavam ambos,
o Menino regalando a sua Esposa, e esta com os fa-
vores das visitas se adiantava no merecimento e no
serviço para o culto dos seus altares.»
Estranha ingenuidade a d'este dizer I
Caso tanto mais glorioso que devia servir para
contrapor aos piedosos desvanecimentos das carme-
litas do convento da Esperança, — d'alli a dois pas-
sos,— a quem o Menino-Deus, pouco mais ou me-
nos por aquelle tempo, visitava também com «par-
13 #
196
ticulares favores», na pessoa da Venerável Madre
Marianna da Purificação.
N'esta, os requintes da ascese mystica attingem
proporções realistas verdadeiramente entontecedo-
ras. A narrativa devota desce vertiginosamente a
pormenores e denuncias extraordinárias.
Como a pobre Marianna das Cartas, cujo coração
parece ás vezes «forcejar por desprender-se d'ella»
e ir para o do capitão francez, — a beata da Espe-
rança,— perdoe-se-nos a impiedade do parallelo,—
sente a cada momento taes «baques e abalos que o
coração me dá no peito, — diz ella própria, — que o
ouço com os ouvidos corporaes e desejo abrir o peito
com as minhas próprias mãos, e deixal-o voar para
onde elle quer e deseja tanto, mostrando que não
quer viver em mim senão no seu centro que é o
meu Divino Esposo.»
Este, então, estreita-a amorosamente nos braços,
acompanha-a, com graciosos galanteios, á dobadoi-
ra, brinca com ella, como menino folião, nas rezas
do coro, aconchega-a e alimenta-a ao «seu Santis-
simo Lado», mette-se com ella na cama. . .
— «E muitas vezes, — conta ella ao grave e pie-
doso confessor que veiu revelal-o ao mundo, — me
succede passar toda a noite n'esta união com meu
Divino Esposo, muito mimosa e regalada, que para
algumas vezes me poder levantar é necessário que
Vossa Paternidade me mande chamar, que sò ou-
vindo nomear Vossa Paternidade me posso apartar
do que estou logrando, que é tal a força do amor
197
d'aquelles suaves e amorosos laços em que me vejo
presa e enlaçada ...» *
Ainda como a apaixonada religiosa das Cartas, —
perdoe-se-nos a impiedosa reincidência, — que não
se importa que todos saibam, que quer mesmo que
todos conheçam o seu espantoso amor, — a santa
carmelita, á mesa da Sagrada Communhão, sente
«taes anciãs e desejos que, — diz ella ainda, — não
cabia em mim nem podia com tanta força de amor e
desejava ir apregoar este amor por todo o mundo...»
Felizmente, «applacou-me meu Esposo estas cham-
mas dando-me lugar para o meu retiro acnde logo
me recolhi ao coração do meu Esposo, logrando os
favores e regalos que não me atrevo nem sei dar a
Vossa Paternidade a mínima noticia. y>
Convém sempre accrescentar, como de casos se-
melhantes observa prudentemente o nosso Manuel
Bernardes, <íque tudo isto se entende mysticamente e
í Casos análogos aconteciam á outra Marianna, a dos Des-
posorios do Espirito. De um conta ella: — «Todo este tempo
estive vendo cousas que a língua humana não pode declarar.
Eu bem me sentia, mas não podia sahir daquillo, & se algúa
pessoa fora falar-me não podéra responder. Vi nesta occasião
a meu Senhor como húa pessoa que está muito saudosa de ou-
tra, abrindome os braços, & apertandome com muito amor. . .
Sahi daquella fogueira divina como quem sahe de um fogo ar-
dente : isto tudo foi desde o jantar até que forão nove horas
da noite, a qual não pude dormir, porque não se acabou o
fogo divino; quem o pudera imprimir em todo o género hu-
mano I o
198
não de distancias materiaes, senão de conjuncçãa
amorosa. i> *
Não é só, porém, d'estas obsessões da hysteria
beata alimentada e cultivada carinhosamente pela
clausura, — é ainda dos episódios mais humanos e
comprehensiveis da vida conventual, que o extra-
ordinário livro de Fr. Caetano do Vencimento nos
offerece, melhor do que os chronistas geraes, uma
idéa ou uma pintura soffrivelmente realista.
Atravez das monótonas pompas do estylo e das
subtilezas irritantes da erudição mystica, sentem-se
6 vibram as reluctancias desesperadas das pobres
raparigas sadias e fortes que preferem o suicidio á
profissão;— segredam outras as suas correspondên-
cias de amor e as suas «amisades illicitas»; — lavra
o tédio e a intriga, rebentando ás vezes em verda-
deiras revoltas, na legião devota;— assalta as gra-
des a curiosidade e a seducção mundana; — enfei-
tam-se e decotam-se garridamente as Yirgens-Es-
posas do Senhor. . .
O escândalo chega a termos de obrigar a vene-
rável beata da Esperança a ter uma serie de raptos
pavorosos em que vê «as religiosas de todas as re-
hgiões em uma caverna escura, e nella estavam os .
Demónios atormentando-as, e com varas de ferro
em brasa lhes queimavam os decotados^ outros com
carqueija já lhes abrasavam os cahellos, outros pu-
1 Pam partido em pequeninos, etc, pelo P. Manuel Bernar-
des, etc. — Lisboa, 1708. — 2.^ p.
199
xando-lhes pelos toucados as arrastavam e lhes fa-
siam outros muitos tormentos e despresos.»
De uma vez foi temporariamente eíTicaz a lição,
observa o chronista: — «E vendo a Venerável M. Ma-
rianna bem dispostos aquelles brandos corações,
abrasada no Divino zelo pegou em uma Imagem de
Christo crucificado, e com tal fervor lhe fez uma
persuasiva pratica que ali mesmo se congraçaram
todas aquellas que viviam em nfinados ódios; outras
tirando os toucados e enfeites os arrojavam com des-
preso, espedaçando aquelles falsos Ídolos da sua
vaidade; prostadas outras e com verdadeiros sinaes
de verdadeira contricção, pediam a Deus perdão das
suas culpas e á Gommunidade, do escândalo que cau-
savam com as suas relaxadas vidas ...»
Citamos o caso da Esperança porque logrou mais
desenvolvida chronica. Mas na Conceição acontece
o mesmo. A própria Peregrina Alcoforado, — a irmã
de Marianna e no tempo d'esla, — nos denuncia, por
conta da sua biographada e companheira, Anna de
S. Francisco, a visão do demónio sob a figura de
um grande pássaro negro adejando sobre as frei-
ras amotinadas por causa da reforma. Contra o par-
tido d'esta ultima batalhara asperamente, por muito
tempo, aquella religiosa, até que um dia a fizera
bandear uma advertência divina, e desde então não
houve mais severa propugnadora do recolhimento,
da abstinência, e das «deleitações» mysticas.
Não podendo contar sempre com estes effeitos
extraordinários de inspiração superior e de expon-
200
tanea correcção casual, as Constituições recommen-
davam uma therapeutica minuciosa, menos espiri-
tual certamente, que nas suas próprias severidades
6 precauções está a cada momento revelando os pe-
rigos e fraquezas que salteavam a clausura.
Tratando da admissão a ella, as Constituições,
em vigor na Conceição, começam por ordenar que
— «a que houver de ser recebida para Freira seja
bem nascida, virtuosa, de boa fama, san em o corpo,
disposta para levar os trabalhos da Religião, de ne-
nhuma maneira seja recebida a que tiver enfermi-
dade contagiosa. Tenha animo prompto e seja livre
de condição, e de idade ao menos de dose annos».
A esta cabecinha reflexiva e certeira de 12 annos,
muito gravemente recommendavam que antes de
entrar na devota carreira «fosse dada a noticia da
Regra e de todas as asperesas e exercícios da Re-
ligião para que com madura deliberação julgue se lhe
wnvem tomar o hahitoy>\ Jà mais tarde não teria de
queixar-se d'essas asperesas. . .
— «A religiosa que fôr negligente em acudir ao
Coro e Officio divino, pela primeira vez dirá a culpa
em o Refeitório, á segunda fará penitencia de pão
e agua, e á terceira se lhe dará uma disciplina. E
se fòr incorrigível se lhe tirará o veo e não poderá
chegar d roda e locutório em quanto se não emen-
dar».
O silencio, dissemos já como as Constituições o
definem: — «chave d'alma e culto da justiça», — por
isso também exortam — «que em todo o tempo e lu-
201
gar as Religiosas procurem guardar silencio», — or-
denando que pelo menos — «desde que toquem á
prima (hora) da noute a recolher, ate, que no outro
dia despertem á prima, guardem silencio».
De uma sua companheira, Marianna da Cunha,
morta em 1692, diz ainda Peregrina Alcoforado que
«a sua vida era hu continuo silencio».
Ás cautellas com os dormitórios e cellas, alludi-
mos já, e em relação aos trajos, a lei é de uma me-
ticulosa previdência: — devem ser pobres, é claro,
• — «de pouca roda e largura, e de nenhuma maneira
arrastem». Mas a garridice femenina d'estas mes-
mas austeras precauções sabia tirar pretexto: — no
termo de visitação de um convento de Lisboa re-
prehende-se o facto de algumas freiras encurtarem
tanto os vestidos que se lhes viam os pés, — certa-
mente as que os tinham bonitos, — de mais a mais
calçados em vistosas botinas!
Contra as tentações e fraquezas que poderiam de-
rivar-se das relações externas, as Constituições, ex-
hortam e mandam «a todas as religiosas que se
apartem e abstenham de ter amisades e tratos par-
ticulares, pena de privação de voz activa e passiva
por dois annos». Á primeira vista e para quem não
conhecer a subtil gradação criminal e penal dos có-
digos ecclesiasticos, esta espécie de simples «sus-
pensão de direitos civis e politicos», poderá pare-
cer relativamente suave.
— «E sendo incorrigíveis, — continua o texto, —
serão postas em a Casa da disciplina por quatro
202
mezes. Item mandamos ás Abbadessas, pena de
privação de seus oflicios por Ires meses, que não
consintam que as Religiosas teniiam correspondên-
cias, visitas nem conversações continuadas, em que
entreveiiha continuação de escrever^ mandar ou rece-
ber presentes, nem dem locutório a Religiosa alguma
de cuja condição presumam que não estará nelle
com modéstia, exemplo e compostura que se deve».
E aquellas «continuações destes princípios», — de
que fala, mais saudosa do que arrependida, a reli-
giosa da Conceição, lá estavam também prudente e
inutilmente comminadas na regra, até com mal dis-
farçada e escandalosa desconfiança na casta isenção
e firmeza das pobres freiras ao encontrarem-se a
sós com um homem.
— «A religiosa que sahir da Clausura ainda que
seja por pouco tempo ha de ser absolta da excomu-
nhão (em que ipso facto incorria) em plena commu-
nidade, e só se se lhe provar que esteve com algum
homem só ou fechada em alguma parte será encar-
cerada por dez annos e privada perpetuamente dos
actos legítimos, e de chegar a grades, roda e porta:
E as mesmas penas se darão, á que dentro da Clau-
sura esteve só fechada com elle ainda que seja dos
nfficiaes que entram, a trabalhar ou a outros minis-
térios do mosteiroy>.
Depois de tantas outras divagações a que nos le-
varam os factos e as circumstancias que se accumu-
lam e rodeiam o episodio das Cartas, e que nem
todas poderão com justiça parecer indifferentes ao
203
único processo que pode adoptar-se para a verifica-
ção critica d'esse monumento, estes traços da vida
conventual completam, por dizer assim, o fundo,
rápido, imperfeito, mas necessário, em que aquelle
episodio e os personagens d'elle se desenham e re-
velam ao nosso espirito como uma verdade não só
histórica, mas physiologica, não apenas provável,
mas evidente.
III
Subindo alguns degraus, a um canto e ao fundo
da varanda interior do claustro,— aberta uma pe-
quena porta arruinada, achámo-nos inesperadamente
n'uma espécie de vasto eirado em que o sol do meio
dia cahia a pino, e que a parede que continua da
parte inferior do edifício fecha do todos os lados á
altura de alguns metros.
Em frente, a um angulo d'essa parede, abre-se
uma larga janella gradeada.
Para que seja verdadeiramente o balcão, a va-
randa, n'uma das suas formas vulgares e sobretudo
conventuaes, falta hoje, simplesmente, áquelle ei-
rado a cobertura mais ou menos ligeira. Teve-a, e
até, ha poucos annos, é que ella foi apeada ou cahiu.
Nova e mais demorada inspecção d'esta parte do
edifício, habilitam-nos a ampliar a descripção da
204
nossa primeira visita. Alli se construiu realmente,
no século xvni, á custa de uma companheira das
Alcoforados, o chamado dormitório novo que algu-
mas das actuaes habitantes do convento conheceram
ainda, Foi naturalmente a ruina e a fria incommo-
didade do enorme dormitório velho, que fica pró-
ximo, a oeste, sobre a sombria rua da Conceição,
que moveu á construcção nova, no lanço sul, fran-
camente aquecida pelo sol, de manhã ao occaso, e
podendo abrir ou conservar para os campos, duas
grandes janellas, uma ao fundo e a leste, e a ou-
tra, a um angulo, evidentemente mais antiga, e que
conserva ainda, com a tradição galante, o nome de
janella de Mertola.
Na cimeira da porta do recinto pode ler-se que
«esta obra fez a M.° li.^ Madre Brites Angélica na
era de 17?0».
Não é curioso que exactamente, alli, nos appareça
este nome de Brites recordando-nos uma das refe-
rencias das Cartas: a da D. Brites que insiste com
Marianna para ir espairecer ao balcão?. . .
Faria a reverenda senhora o dormitório, a capella
ou o altar, á direita, de que restara vestígios e onde
parece que houve um retábulo da Senhora da En-
carnação. Faria a porta e as cellas que na linha do
sul deixaram desafogada e livre a janella tradicio-
nal; apropriaria, emfim, ao novo destino, o mira-
dourOj o recinto, ou fecharia este do lado interior,
cobrindo-o.
Mas o que não fez foi a muralha exterior do
203
convento, com os seus gigantes de construcção pri-
mitiva que adelgaçando-se, como de costume, á al-
tura do terreno elevado que sustentam e sobre o
qual se abrem os pequenos quintaes do convento,
continuam a acompanhar a parede do que foi dor-
mitório novo.
A obra de Madre Brites, posterior ao episodio das
Cartas, foi como eram geralmente estas obras de
freiras, um simples trabalho de adaptação.
A própria e anterior galeria que lhe dá accesso,
communicando immediatamente com o dormitório
velho e outros interiores, está indicando a preexis-
tência do terraço ou eirado aberto d'aquelle lado
para onde se foram estendendo as construcções no-
vas, entre as quaes, já o dissemos, «as casas» que
Francisco da Costa Alcoforado fizera ás filhas.
A bem dizer a ruina da cobertura, que não re-
sistiu, como o resto da construcção e como a da
outro dormitório, denunciando a sua natureza de
adaptação barata, restituiu ao sitio a feição primi-
tiva de largo eirado ou varanda destinada á recrea-
ção, ao passeio, ao desafogo da população enclau-
surada do século xvn.
Adaptando-o a dormitório, conservou-se a cha-
mada janella de Mertola ou transformou-se n'ella
um rasgão do muro, que pouco elevado do pavi-
mento interior parece attestar ainda o seu primeiro
destino de vulgar miradouro.
E o que é também curioso é que ella, fechada por
largas grades de ferro, recentemente reforçadas por
206
estreita reja de madeira, e dando para o que pode
chamar-se agora o Chiado de Beja, tem conservado
não somente a sua tradição . . . mas a sua applica-
ção enamorada.
Entrando n'aquelle recinto e approximando-nos
da janella descripta, a allusão da pobre Marianna
ao «balcão d'onde se vê Mertola», e d'onde os olhos
e a alma se lhe foram prender um dia, — «dia fatal!»
— no gentil capitão francez, impoz-se-nos viva e ru-
demente como um documento decisivo.
A phrase original não era evidentemente aquella.
Mertola não se vê d'alli, nem de nenhum outro
ponto de Beja, não por causa da distancia, — 54 ki-
lometros para o sudoeste, — mas pela configuração
do terreno. Quem não soubesse isto, quem forjasse
as Cartas, evitaria uma referencia, além de tudo des-
necessária, que desde logo poderá prejudicar-lhe o
intento, em vez de o servir.
Mas o que se via, e o que se vê ainda, o que
fica aUi em frente, a dois passos, são os restos, os
severos bastiões das antigas portas de Mertola, de
todo o tempo, como hoje, conhecidas por este nome
pela simples razão de ficarem do lado d'aquella villa
e darem para os campos e estrada entre ella e Beja.
É como a outras quatro das sete portas que tinha
Beja se chamava e chama: — portas de Évora, de
Aviz, de Moura, de Aljustrel. Sabe-se quanto são
vulgares estas denominações nas nossas antigas ci-
dades muradas.
Para além serpea, atravez dos ferragiaes e dos
207
montes, a estrada de Mertola, e lá ao longe, afun-
dando-se à vista e logo ondulando de novo no hori-
zonte, esbate-se o território da phenicia Myrtilis.
A religiosa teria escripto: — «á varanda d'onde
se vêem as portas de Mertola», ou «ao miradouro
de MertolaiD , — e o traductor tomando naturalmente
estas portas pelas da própria villa, ou dispensan-
do-se de alongar a referencia, perfeitamente indif-
ferente para o leitor francez, traduziria singela-
mente:— (de balcon d'ou Von voit Mertolay>.
Justa e intelligente fora a inspiração de pôr alli
aquelle «miradouro», e o panorama que devassa não
poderia ser mais digno de que n'elle se embebes-
sem, sem perigo, em horas de repouso e de folga,
€S olhos educados na contemplação da gloria e do
poder do Eterno.
A cidade não se expandira, como modernamente.
ii"aquella direcção, a ponto de ultrapassar os velhos
muros e de affrontar o devoto recolhimento das
freiras.
Adivinham-se ainda, lá em baixo, os campos pla-
nos e assoalhados em que ha 220 annos, n'aquelle
«dia fatal», se exercitavam os soldados de Chamilly
ou este galopava, cheio de mocidade e de petulan-,
cia, á frente da sua companhia. D'aquelle lado vol-
tara elle, talvez, alegre e triumphante, da expedi-
ção do S. Lucar. D'ain veriam as pobres raparigas
enclausuradas manobrar os terços com os seus uni-
formes variados e scintillantes ; — escarlates uns,
verdes outros, alguns cobertos de passamanes mui-
208
licores, outros ostentando os br azoes heralticos dos
generaes*, — e caracolando em volta, e exercitan-
do-se nas cargas impetuosas, e desnovelando-se
como longas serpes reluzentes, as companhias de
cavallos, com os seus bellos oíTiciaes, moços quasi
todos, mais ou menos fidalgos todos, cujos olhares
atrevidos e cúpidos iriam por vezes alvoroçar extra-
nhamente, atravez das rejas do balcão,— se é que
as tinha já, — o bando das pombas do Senhor.
Este turbilhão de força, de vida, de audácia; esta
onda de paixões fortes, vibrantes, encandescentes;
a guerra em toda a sua belleza e sem nenhum dos
seus horrores; o mundo, a sociedade, o homem em
toda a sua grandeza : — devia ser realmente um ex-
traordinário e allucinador espectáculo para as po-
bres creaturas cuja mocidade confrangia e estiolava
monotonamente na fria e «solitária contemplação»
das coisas intangíveis e na contenção permanente,
desnaturai, tyrannica, de toda a sentimentalidade
objectiva 2.
1 O Mercúrio Portuguez.
2 Por curiosidade daremos os nomes de algumas compa-
nheiras de Marianna n'aquella epocha, computando-lhes as
idades pelas indicações dos termos conventuaes: — D. Leonor
de Vilhena, que teria 20 annos, Ignez de S. José, de 17, en-
trada menina no convento e que «na mocidade estava sempre
doente», — Maria dos Serafins, de 34 que foi muito devota de
S. Francisco do Carmo e «ficava em oração mental até quasi
amanhecer;» — D. Francisca d'Almeida «inuy próxima para
todas,» — diz Peregrina Alcoforado; — D. Francisca Freire.
Si
i).
\ ,1.
5 )^*4\;|i^'v|%''^>-'yí
iítSI
^t\^'
209
Marianna Alcoforado tinha já então 25 annos.
Era uma mulher moça, provavelmente formosa, na
plena maturação do organismo, do temperamento,
da inteliigencia; filha de uma raça forte e sadia,
de sentimentos e prosapias fidalgas; nascida e crea-
da no meio do bulicio da guerra ; respirando desde
o berço a atmosphera de poderosa actividade e de
incontestável prestigio do pae.
Vô-se bem quanto estamos longe das recompo-
siç(3es litterarias que se teem tentado, da religiosa'
portugueza.
— «Imagine-se sempre, — diz por exemplo, o nos-
so erudito amigo sr. Theophilo Braga, — uma rapa-
riga de 13 annos.»
«tendo o eoraçào de pomba," — Luisa Maria de Jesus, de 18,
(jue disilludida dizia depois que «no Coro achava todas as
suavidades que o mundo podia dar», D. Brites Magdalena,
de 23, «sempre doente e esmoler», a rica Seraphina Pinheira
de Bulhão, de 24, D. Michaella dos Anjos, da mesma edade,
(jue se arruinou com abstinências e tanto era uma predesti-
nada authentica que os religiosos .que lhe assistiram á morte
verificaram em «repetidas experiências» que o corpo lhe fi-
cara tlexivel e suava, — D. Brites Maria de Resende, uma vo-
cação musical :—« desde minina cantou» e foi grande sabe-
dora de canto ds orgam» perdendo a vista á força de estu-
dar;— Ignez dos Seraphins, que — «na meninise teue algumas
leuiandades mas nestas sempre Ds. a chamou,» — como ou-
tra, a pequena Constança Evangelista que na vida espiritual
buscou emenda «a algumas leuiandades de moça;» — D. Bri-
tes de Brito, que foi abadessa e teve uma «gloriosa morte,'»
— Isabel do Espirito Santo que passou a vida «a ensinar la-
tim,»— Guiomar de Jesus, que a passou a «ensinar assim a
F. 14
210
r. Foi exactamente o que nunca podemos imaginar,
lendo as Cartas, e foi até o contrario disto que co-
meçámos por estabelecer como assente e seguro
quando decidimos avenlurar-nos á descoberta di-
recta, documental da mysteriosa freira. Por uma
inducção physiologica longamente meditada e dis-
cutida, que nos parece irrecusável, e que, pelo me-
nos o êxito confirmou, estabelecemos que as Cartas
não podiam ter sido escriptas e sentidas, ou não
poderiam ter sido sentidas como foram escriptas,
por uma mulher de menos de vinte ou de mais de
trinta annos, approximadamente.
E d'isto mesmo teve o instincto o illustre escri-
ptor observando que as Cartas, «ditadas por um
ler como de tudo o mais, e foi igrande sabedora de canto-
cham 6 de órgão,» — a ríspida Brites dos Serafins, que gas-
tava no culto a sua bella tensa de 30|í000 réis, — Maria de
Santiago que «deo de si grande exemplo livrando-se de toda
a correspondência prejudicial,» — outra Brites, que devemos
notar por ter a idade de Marianna, — D. Brites Francisca de
Noronha, que «viveo sempre com grandissimo temor de Deus,»
foi abbadessa e fez a tribuna do Santissimo Sacramento, na
egreja, — Arehangella Baptista, grande musica e cantora, — D.
Marianna da Cunha, que fez grandes penitencias, — D. Luiza
Freire, que «sendo pelo seu nascimento illustre nunca nella
se experimentou o menor indicio de soberba,» — Maria da As-
sumpção, já então, como a anterior, entrada nos 40, bastante
rica, «religiosa de muita austeridade» e que conservou até aos
92 annos, uma «singular memoria das cousas antigas do con-
vento», não nos contando nenhumas, — Josepha d'01iveira, que
morreu com 100 annos, em 1720, tendo «a imagem de N. S. da
Ous cãs Costas q. vae na procissão por sua conta,» etc.
211
temperamento peninsular, tem a paixão dos 30 ân-
uos.»
É geralmeote n'aquelle período, feito o devido
desconto a certas variantes conhecidas, que se rea-
lisa o que poderemos chamar a crise da maturação
physlologica; é n'elle que se expande, completa e
vigorosa, esta evolução simultânea e harmónica das
forças moraes, do corpo e do espirito, chamada a
adolescência, que é, como observa Miiller, «a edade
das dedicações affeclivas.»
— «Abre-se-nos em face um horizonte immenso,
— accrescenta o grande physiologista, — não se co-
nhecem limites ás próprias capacidades, o amor é
o centro dos mais nobres sentimentos, porque es-
tando terminado o desenvolvimento intellectual, o
excesso de vida orgânica precipita-se sobre os no-
vos productos da geração. » *
Faltava-nos, porém, fixar uma data, surprehen-
der a do episodio das Cartas. As indicações chro-
nologicas que nos offereciam os comraentadores não
eram conformes e firmes, algumas eram perfeita-
mente phantasticas.
Foi nas próprias Cartas que procurámos e achá-
mos essa data, indicada com uma certa precisão
que parece impossível ter passado desapercebida.
Na que se considera a segunda, regista- se a no-
ticia de que «a paz de França estava feita». Não é
necessário uma grande investigação histórica para
1 Man. de Phys., par J. Miiller, etc. 2.* ed. r. par Littré.
14*
2i2
v«r que essa paz era a que terminou rapidamente a
guerra da devolução, pelo tratado de Aix-le-Chapelle,
em 2 de maio de 1668.
É sabido que o episodio decisivo d'essa guerra
fora a busca e rápida invasão, em pleno inverno
(fevereiro 1668), de Luiz xiv no Franche Comté, em
que já tomou parte Ghamilly, que pouco antes che-
gara a Portugal.
Quando o nosso enviado Duarte Ribeiro de Ma-
cedo, que partira de Lisboa em 13 de fevereiro com
a noticia de termos assignado n'esse dia o tratado
com a Hespanha, chegou a Paris em 1 de março,
Luiz XIV estava já de volta em St. Germain, e a
paz podia considerar-se assegurada *.
A noticia devia ter chegado aos francezes do
exercito do Alemtejo em abril ou maio. Havia seis
mezes segundo a Carta da religiosa que esta ne-
nhuma recebera do seu amado capitão. Este teria
partido, pois, nos fins de 1667. Nem poderia ter
partido muito antes pois que outra carta, que nas
coUecções impressas vem depois d'aquella, mas que
nos parece ser evidentemente um pouco anterior,
— o que não importa por agora, — allude a «uma
confidencia molesta» que elle fizera á rehgiosa.
«cinco ou seis meses antes», estando ainda em Por-
tugal.
N'esta ultima carta ha ainda outra indicação pre-
* Obras do dr. D. R. de Macedo, etc. Lisboa, 1743.
213
ciosa: — a de que «vae por estes dias fazer um an-
uo» que Marianna se entregara ao amante. Deve
ter sido no começo de 1667, e este anno e o de
1666 constituem, pois, o perido de desenvolvimento
d'aquella funesta paixão.
Convém recordar que é exactamente n'este pe-
ríodo que Chamilly nos apparece no Baixo-Alemtejo
fazendo as campanhas de que Beja é o ponto de
partida e.de organisação central. Nomeado capitão
da primeira companhia de um regimento a orga-
nisar, em dezembro de 1665, no anno seguinte faz
parte das expedições da Andaluzia, com Balthazar
Vaz Alcoforado: da de Paymogo, em junho, e da
de S. Lucar, em agosto, preparada e constituída
em Beja, como notámos já. Das próprias Cartas vê-
se que o capitão francez sahira d'alli para varias
expedições.
Nada tem pois de aventuroso, antes pode com
regular segurança fixar-se o começo d'esses amo-
res em 1666, e em abril d'esse anno Marianna de-
via completar 26 annos.
Fora entregue em creança á clausura, — dizem-n'o
as Cartas e provam-n'o os nossos documentos. Pro-
fessara provavelmente aos 16 annos, se é que não
antecipara a edade canónica, viciando a verdadeira,
como a que lhe é computada no termo de óbito pode
fazer suspeitar.
Fizera-se mulher alli, abandonada n'aquelle mun-
do extranho, frio, hostil á expansibilidade e á com-
municação affectiva da adolescência. •
214
Haviam-lhe dado a companhia de uma irmã, —
creança também, — que lhe seria pungente recor-
dação da família e da infância. Outra, a companheira
dos seus brinquedos e das suas aspirações infantis,
casara. Marianna fora provavelmente a confidente
dos seus amores.
Os irmãos andavam no campo ou nos estudos:
—só lhe trariam ás grades os deslumbramentos de
uma juventude florente, aventurosa.
A mocidade delia, recalcada e entorpecida, dia
em dia, na perpetua monotonia d'aquella morte an-
tecipada, chegava tristemente ao seu termo. Quan-
do a malaventurada ia talvez afundar- se, como tan-
tas outras, na hysteria beata, e apagar «os incên-
dios» de que falam os doutores mysticos, no sen-
sualismo solitário da visão, appareceu-lhe a rece-
ber-lhe e a fixar-lhe os vagos e tumultuosos impul-
sos da sua exuberância aífectiva, a figura forte,
moça, petulante de um homem extranho, aureolado
pelo prestigio da guerra e do nome, que a distin-
guia entre todas as companheiras, que lhe segre-
dava que era formosa e que a amava, que lhe lan-
çava aos pés, cortezão e apaixonado, toda a sua
grandeza, a sua vida, o seu futuro.
— «Eu era moça, era crédula, tinham-me encer-
rado desde creança n'este convento, não vira senão
gente desagradável, nunca ouvira as lisonjas que o
Sr. constantemente me disia; parecia-me dever-lhe
os attractivos e a bellesa que me achava e em que
me fazia reparar; ouvira diser bem de si, toda a
215
gente me fallava em seu abono. . . e o senhor tudo
fasia para me despertar amor.»
Nada mais natural e simples.
IV
É claro que não podemos nem queremos recon-
struir a historia intima d'estes amores. Além de
que fora uma triste pretençlío a de tentar recom-
por litterariamente o breve idylio que redivive nas
Cartas com toda a vibrante e encantadora natura-
lidade da sua singeleza, — independente d'ellas, esse
episodio que nada tem realmente de extraordiná-
rio, sumiu-se e desappareceu como muitos outros,
certamente, no pequeno meio, além de tudo agitado
por tantos successos e preoccupações absorventes,
em que succedeu. Se não deixou de dar pasto e
escândalo ás palestras e á maledicência d'esse meio,
nem pela sua natureza, nem pelas circumstancias
do tempo, fora natural e fácil que deixasse de si
circumstanciado registo.
Os chronistas conventuaes isolando-se nos lou-
vores e no piedoso archivo dos casos e devoções
beatas, parecem segregar inteiramente as institui-
ções de que falam a todo o movimento exterior.
Raramente, e apenas em rápidas referencias, allu-
216
dem aos successos do mundo e do século, como
que procurando sistematicamente esconder e cor-
tar todas as relações, as mais naturaes e necessá-
rias até, entre a sociedade claustral e a historia
profana.
Facilmente se comprehende, porém, que a situa-
ção de uma cidade fronteiriça, constituída em grande
centro de uma renhida e aventurosa campanha, cheia
de movimento bellico, e partilhando, em summa, da
profunda agitação social e politica que assoberbava
todo o paiz, não poderia deixar de fazer-se sentir,
forte e continuamente, por todos os modos, n'essas
sociedades claustraes.
Todo aquelle buUcio; a novidade dos sucessos,
das gentes, e dos costumes; as preoccupações e al-
voroços da guerra em que andavam os parentes e
conhecidos; o espirito desabusado da multidão ad-
ventícia; as novas relações das famihas: tudo isso
havia de desordenar um pouco, de encrespar, mais
ou menos intensamente, a severa disciplina da vida
conventual, — suppondo que ella fosse já muito se-
vera,— fazendo vibrar os sentimentos e alargar as
communicações mundanas que a ascese devota mal
enfreava e continha.
Aquella «liberdade das grades», de que fala de-
soladamente um prelado, não seria então que mais
se apertaria^ nem «as conversações e visitas, os tra-
tos e correspondências continuadas» tão prudente
quanto inutilmente prohibidas pelas Constituições,
haviam de afrouxar e cobrir-se com maior rigor
217
quando uma situação extraordinária mais as esti-
mulava e permittia. E que não era, prova-o o pró-
prio movimento de reacção moralisadora ou beata,
que se seguiu, sob o nome de reforma.
Chamilly desempenhando uma comraissão e um
posto importante, ostentando um nome fidalgo, pro-
tegido pelo general governador da provinda, natu-
ralmente se relacionou com as principaes famílias
de Beja, e uma d'ellas e das mais estreitamente li-
gadas ás coisas e aos personagens militares, era,
certo, a dos Alcoforados. Um d"estes, irmão de
Marianna, vimol-o já occupar uma commissão im-
portante, a de capitão de cavallos, como Chamil-
ly, nas forças do Baixo Alemtejo, e tomar parte
nas operações realisadas d'aquelle lado. Uma allu-
são das Cartas parece denunciar quaesquer rela-
ções entre o capitão francez e um irmão de Ma-
rianna.
Outras referencias indicam que os amores d'esta
foram percebidos e vivamente contrariados, como
era natural, pela familia da religiosa, que comtudo
só muito tarde saberia,— se é que chegou a saber,
— toda a verdade d'esses amores.
Está-nos revelando o desgosto e o escândalo do-
mestico o silencio que se faz nos papeis e relações
da familia, acerca de Marianna, — silencio apenas in-
terrompido pela grata e carinhosa lembrança do
testamento da irmã; — a circumstancia do segundo
irmão lhe não confiar as filhas, preferindo para ellas
outro convento; — a súbita resolução do irmão mais
218
velho, do que fora camarada de Chamilly, em aban-
donar fortuna e honras para se afundar na obscu-
ridade da cleresia sertaneja, no próprio anno da
apparição ruidosa das Cartas, quando as primeiras
edições d'ellas poderiam chegar ao Alemtejo.
No próprio convento é natural que embora co-
nhecida a paixão da religiosa, se conservasse por
algum tempo ignorada toda a crua verdade d'esses
amores.
Um dia, no auge do desespero, reprehendida na
sua mundana desolação pela «Mae», — diz ella, —
«a principio com severidade, depois com meigui-
ce»,— Marianna revela-lhe talvez essa terrível ver-
dade.
— «Parece-me que tudo lhe confessei í . . . »
Essa «Mãe» sabemos já agora que não era Leo-
nor Mendes que tivera a fortuna de morrer muito
antes, e que na nossa primeira edição nos esqueceu
que morrera para Marianna, — era n'isto justo, ao
menos, o espirito e a lettra da instituição, — desde
o dia em que entregara a íilha á perpetua clau-
sura.
A «Mãe» era a Madre, a Abbadeça, a velha e
severa Prelada da Ordem, a que as rehgiosas ti-
nham de reconhecer e chamavam Mãe, a única que
muitas d'ellas, entrando creanças na clausura, como
as Alcoforados, conheceriam por tal, a que tinha
o direito de as punir, de as aconselhar nos mais
Íntimos movimentos dos seus corações e das suas
vidas; aquella com quem na hora da morte haviam
219
de «desapropriar-se», — segundo a linguagem con-
ventual *.
A ella confessaria a desolada freira, que o capitão
francez se introduzia no convento, que a elle «toda
se entregara sem escrúpulo», sacrilegamente...
— «Parece-me que tudo lhe confessei!. . .»
Estava já bem longe o desalmado amante 1
Para este, soldado aventureiro, em terra extra-
nha, de rapaz educado na vida desabusada da cam-
panha, aquelles amores deviam ser pouco menos
do que uma aventura nova, uma empreza galante,
em que os impulsos sensuaes e os ócios aborreci-
dos dos longos aquartellamentos em pequena terra
provinciana, desempenhariam naturalmente o prin-
cipal papel.
Tinha 30 annos, apenas, mais quatro do que Ma-
rianna, era um rapaz robusto e intrépido, intelli-
gencia pouco culta e coração pouco affeito a com-
phcadas paixões; fizera-se homem na guerra como
1 Ja nos causara estranheza a singularidade da maiúscula
com que logo as primeiras edições accentuavam a palavra;
— «ma Mère» — , escrevem invariavelmente. Mas de um mais
reflectido exame do texto e do movimento psychieo que elle
espelha, salta o sentido lógico e natural d'elle. A referencia
ao incidente da confissão de Marianna á «Mãe», inclue-se na
allusão aos juizos e carinhosas impertinências do meio em que
ella se acha, da familia claustral. Da outra, da do século, fa-
lou antes, e então falou apenas «dos parentes e conhecidos>'.
A mãe natural morrera, e o velho pae nada saberia. Pouco
mais tempo viveu.
220
a freira que um dia lhe despertou o apetite, se fi-
zera muliíer na clausura.
Aos 22 annos era já capitão de um regimento de
cavallaria, e interrompida a sua carreira militar pela
paz dos Pyreneus e pelo licenceamento da compa-
nhia que commandava, a campanha de Portugal fôra
para elie um incidente, uma espécie de destaca-
mento de serviço que lhe podia assegurar uma pro-
moção mais rápida, que lhe offerecia, pelo menos,
uma occupação mais activa e consoante com os seus
hábitos e com o seu destino.
A simples correspondência apaixonada, as doces
palestras do locutório, os requebros e delicadezas
de um galanteio innocente, deviam satisfazel-o me-
diocramente, como observa Saint-Simon, no caso
de outro oííicial francez que se desenfadava do ser
viço de guarnição ensinando musica a uma fidalga
abbadeça de convento provinciano.
O que elle queria, o que elle incutia no espirito
alvoroçado da pobre enclausurada, como o supremo
enlevo de dois corações amantes, — conta-o ella pró-
pria,— era «achar-se a sós com ella.y>
Absorta, deslumbrada, subjugada por aquella ex-
traordinária aurora que se abrira subitamente na
humildade e na tristeza do seu destino, a desgra-
çada cedeu.
Foi talvez n'algum d'aquelles grandes «Ímpetos
de amor» que abrazavam irresistivelmente as suas
homonymas da Esperança e do Salvador, — narra-os
quasi pelas mesmas palavras; — foi talvez n'algum
221
d'aquelles «incêndios» extraordinários em ique, no
dizer encantador do padre Manuel Bernardes, a glo-
riosa Virgem Santa Gertrudes querendo unir-se com
o Senhor que lhe apparecia em figura de menino
achava que o espirito se lhe embaraçava na cami-
zinha d'elle, «porque anceava a união mais imme-
diata».
Seria de mau gosto a impiedosa referencia se a
intenção não fosse simplesmente procurar reerguer
o facto á altura d'aquella sentimentalidade ardente,
mas ingénua; impetuosa e doida, mas profunda-
mente idealista, delicada, honesta, que chora c vi-
bra extranhamente nas Cartas.
Ah, aquelles Ímpetos irresistíveis da pobre vir-
gem enclausurada, aquella vontade violenta, fatal,
que toda a abrazava ás vezes no desejo insano de
recolher-se «ao coração do Divino Esposo»*, —
aquella necessidade de amar e de ser amada, mas
sobretudo de amar, que forma o fundo da lenda
áurea das Predestinadas e das Santas da Clausura,
é alguma coisa bem mais simples e bem mais sé-
ria do que os requintes e subtilezas da mystica e
da rhetorica dos doutores beatos que se contorcem
e dementam por fugir á implacável verdade da na-
tureza e da vida ! . . .
Não; se quizeramos apenas offerecer estimulo e
pasto ao espirito de maledicência superficial e bruta
^ Frag. da vida da M. R. M. Marianna da Purificação^ etc.
Despos. do Espirito^ de Soror Marianna do Rosário, etc.
222
que pretende fazer da historia dos conventos sim-
plesmente uma historia de torpezas e de artifícios
hypocritas, nâo precisaríamos ir profanar as hyste-
ricas beatitudes que ficaram registadas nas chroni-
cas da devoção; — que n'estas, mesmo, na tradição
e na historia, nas próprias Constituições conven-
tuaes, teriamos revelações de sobejo de como a clau-
sura fácil e frequentemente se abria a irrupções e
desordens bem menos explicáveis ou bem mais es-
candalosas do que a denunciada nas Cartas!
Marianna teve uma confidente d'estes amores, e
é claro que nos não esquecemos de procural-a. Ci-
tam-n'a as Cartas com o nome de Dona Brites, desde
a primeira edição, assim escripto muito correcta e
portuguezmente.
Teve realmente Marianna Alcoforado umas pou-
cas de companheiras d'aquelle nome, e uma d'ellas,
até, que positivamente se nos revela da mesma edade
quasi. É, não a que indigitámos na nossa primeira
investigação, cuja edade não podemos descobrir,
mas Dona Brites Francisca de Noronha, que mor-
reu em 8 de março de 1712 com «70 e tantos an-
nos», quando Marianna devia ter 72. Segundo o
respectivo termo obituário «viveo sempre com gran-
díssimo temor de D.% foi abbadeça, e com a maior
disposição governou, tanto no temporal como no
espiritual.» Além de intelligente, rica, foi ella que
fez a tribuna do Santíssimo, na egreja, conservando
a administração da obra, além do seu abbadessado.
Sendo fortemente atacada de «dores geraes», — diz
223
0 termo, — «foi ás Caldas e veio sem melhoria»,
poucos annos antes de morrer.
Mas houve mais:
D. Brites de Brito, que morreu em 27 de de-
zembro de 1693, e de quem D. Peregrina Alcofo-
rado escreve que foi também abbadessa, e «sem-
pre m.° denota do SS.™" Sacram.'° a q se atrebue
a glorioza morte q teue por q dia do Snr. São ioão
evang.'^ logo de manhã se aparelhou p.^ morrer
com tal dispocição q a todos admirou.»
D. Brites da Magdalena, que morreu em 1 de se-
tembro de 1714, com 60 annos, e D. Brites Maria
de Rezende, «muito sabedora de canto de orgam»,
morta em 18 de julho de 1700, com 50 e tantos:
— ambas, pois, bastante mais novas que Marianna.
E ainda outras duas, sem dom, — Brites dos Se-
rafins, que morreu em 23 de janeiro de 1700, — «já
de m.^^ jdade», e que «sendo de condiçam rispida
e q paresia soberba nosa Snrã lha mudou q se foy
emmendando»; — e Brites da Encarnação morta em
1 de março de 1696, — «que sendo velhíssima*, —
conta ainda D. Peregrina Alcoforado, — «esteue the
a ultima ora com o seu iuizo e sentidos perfeitos
aiudando a cantar o tantum ergo q.*^" comungou e'
os salmos peneteciaes q.^" lhe derão a S/^ un-
ção.»
Outra citámos já, — Brites Angélica, — mas d'essa
só encontrámos o nome sobre a porta, — curiosa
coincidencial — da que devera ser o miradouro, a
varanda, «o balcão das portas de Mertola», conver-
224
tido por ella em dormitório novo. Companheira das
Alcoforados foi, de certo, também, pois que profes-
sara antes de 1732.
Em 1667 a guerra com a Hespanha começara a
afrouxar, e desde 1665 o governo de Madrid en-
saiava, por intermediação da Inglaterra, negocia-
ções de paz, reconhecendo que não lograria ven-
cer a independência portugueza, e crescentemente
embaraçado por novas diíTiculdades internas.
Os amores da religiosa, chegados ao período cri-
tico do seu fatal desenvolvimento, teriam assumido
uma certa notoriedade escandalosa, e o capitão fran-
cez, passados os primeiros encantos da aventura,
deveria realmente ter começado a sentir os perigos
de a protrahir, tanto mais vivamente quanto a cega
e ardente paixão da pobre Marianna lhe não per-
mittia contar com um desenlace fácil, tranquillo,
banal.
Esses perigos não eram apenas da natureza
d'aquelles que o capitão podesse aíírontar com a
sua reconhecida intrepidez e com a destreza da sua
espada. Se fosse surprehendido na clausura, se
fosse denunciado como violador d'ella e seductor
22o
de uma religiosa, além de tudo filha de uma famí-
lia considerada, influente, em excellentes relações
com o novo soberano portuguez, não lhe valeria de
muito, provavelmente, a sua condição de ofíicial fran-
cez nem o patrocínio de Schomberg, quando exa-
ctamente uma e outro iam perder bastante da sua
importância com a approximação da paz.
No começo da segunda metade de 1667 vimos já
que se pedia com singular insistência o afastamento
de Beja, da cavallaria franceza, e ao terminar esse
anno, segundo as indicações das Cartas, o amante
da freira sahia bruscamente de Portugal, pretex-
tando ir servir o seu rei n'uma nova campanha e
ter recebido uma carta da família.
— «Um navio partia . . escrevera-te a família. . .
a honra obrigava-te a abandonar-me . . . Devias ir
servir o teu rei. . . » — conta a religiosa.
Esta família, segundo outra referencia, era um
irmão e uma cunhada.
Realmente a família de Chamilly podia então con-
siderar-se reduzida ao irmão mais velho, Hérard
Bouton, governador do castello de Dijon, onde Cha-
milly nos apparece em seguida, e á cunhada, mu-
lher doeste Bouton, Carlota Le Conte.
A nova campanha vimos já qual era. A morte de
Fllippe IV, a situação em que elle deixara a velha
monarchia hespanhola, o pretexto da devolução do
domínio dos Paizes Baixos aos filhos do primeiro
leito, por consequência á mulher de Luiz xiv, in-
terrompiam e trancavam definitivamente aquella
F. 13
226-
paz, nunca perfeitamente consolidada, que a poli-
tica vangloriosa e demasiado italiana de Mazarin
suppunha ter perpetuado. Em 1667 Luiz xiv e Tu-
renne invadiam triumphantemente o Flandres.
A occasião era excellente para fazer reentrar o
nosso capitão nos quadros do exercito francez, li-
vrando-o do escândalo e dos perigos da aventura
amorosa em que se embarcara. Comtudo elle não
parte logo. Manifestamente a urgência que depois
allegava não se impozera tão fortemente ainda.
Em setembro, e muito provavelmente em outu-
bro, Chamilly conserva-se em Portugal, posto «o seu
rei» se batesse já em Flandres.
Feita, porém, a primeira incursão; quando o in-
verno interrompera a campanha, e o governador
hespanhol confiado n'elle recusara arrogantemente
o armistício "proposto; quando, como conta Voltaire,
a corte se divertia em Saint-Germain e as tropas
tinham recolhido aos seus aquartelamentos, — Luiz
xív preparava no maior segredo a surpreza d'aquella
espécie de passeio militar que lhe entregou Besan-
çon^ Salins, Dole, todo o Franche-Gomté. Um dos
homens que indubitavelmente entraram no segredo
d'essa investida foi o irmão de Chamilly, governa-
dor de Dijon, ponto escolhido para a reunião e par-
tida da nova expedição.
É só então que Chamilly deixa o nosso paiz, e é
permittido suppor que o deixa um pouco clandes-
tinamente, pois não se encontra noticia ou registo,
como de outros officiaes francezes, antes e depois,
227.
apparece, de. que solicitasse e obtivesse auctoriza-;
çâo ou vénia do governo portuguez.
Deixa a sua companhia, e parte, muito provavel-
mente, nos fins de 1667. É duvidoso até que viesse
embarcar em Lisboa.
Recordemos ainda esta circumstancia curiosa: —
um diploma firmado por Luiz xiv em Saint-Germain-
en-Laye, n'este mesmo anno de 1067, inas em que
o logar do mez se conserva em branco, nomeia Noel
Bouton, designando-o pela primeira vez por «mar-
quez de Chamilly, mestre de campo de um regi-
mento de cavallaria a organisar e capitão da pri-
meira companhia constituída por 80 maitres non
compris les officiers.y)
No começo de fevereiro de 1668, quando Luiz
xiv partindo subitamente de Saint Germain acom-
panhado do duque de Enghien, o filho de Conde,
se coUoca á frente da expedição secretamente reu-
nida em DijoU;, Chamilly está já alli, com o irmão
e toma parte na rápida campanha que determina
inesperadamente «a paz da França» a que se re-
fere a reUgiosa.
É forçoso confessar que se o capitão das Cartas ,
não fosse realmente Noel Bouton, teria sido ... a
sua sombra.
Como é sabido,. as Cartas são todas escriptas de-
pois que o capitão francez sahiu de Portugal.
Exprimem os pesares da ausência, as afflicções
do abandono da pobre freira, os desesperos e os
terrores, as lancinantes saudades e angustiosas quei-
io *
228
xas de Marianna em lucta com a terrivel verdade
da sua situação. Lucta extraordinária em que se
sente o espirito e o coração da desgraçada apegan-
do-se desesperadamente ás esperanças que se des*
fazem, ás recordações que os ferem, á própria ob-
sessão apaixonada que se dissolve e esvae, afun-
dando-os rapidamente na consciência do trope ma-
logro que os surprehendeu e trahiu.
Pouco depois da partida do capitão, a guerra de-
clina, annuncia-se a paz com a Hespanha, os auxi-
liares estrangeiros dispõem-se a deixar o paiz.
Em 13 de fevereiro de 1668 a paz estava feita,,
a 8 de maio os quatro regimentos de cavallaria
franceza tinham entregado os seus cavallos, e pouco
depois toda a tropa estrangeira sob o commando
de Schomberg partia de Portugal chegando á Ro-
chella a 13 de junho.
Estava perdida para a pobre religiosa toda a es-
perança no regresso do amante. Elle próprio se en-
carregara de desilludil-a completamente. Depois de
quaesquer pequenas missivas, — frias e rápidas, se-
gundo ella conta, — escriptas muito provavelmente
antes de deixar para sempre Portugal, não voltara
a escrever-lhe. Terminada a expedição do Franche-
Comté, longe de pensar em volver aos braços da
desolada religiosa, resolveu talvez pôr termo áquella
importuna correspondência d' ella, áquella obsessão
para elle certamente incomprehensivel e incommo-
da, fazendo perceber á apaixonada freira, cortez
mas claramente, a situação.
229
Foi isto naturalmente que o moveu a escrever-
Ihe as cartas a que responde a ultima de Marian-
na, esta enviada provavelmente por mão de algum
d'aquelles ofSciaes francezes confidentes dos amo-
res do capitão e da religiosa, a que ella allude.
Cremos pois que podemos fixar entre dezembro
de 1667 e princípios de junho de 1668 o periodo
d'esta correspondência.
A vida de Chamilly, depois da sua estada em
Portugal, é conhecida. Terminada a guerra da de-
volução, ficara n'uma situação análoga á que de-
pois da paz dos Pyrenéos o movera a vir tomar
parte na campanha de Portugal. A guerra tinha de
ser o seu officio e o seu futuro.
Em 20 de setembro de 1668 partia com a ex-
pedição de Cândia, segundo documento indicado por
Asse, sob o titulo de «marquez de Saint-Léger», e
como ((marechal des logís» da companhia de mos-
queteiros commandada por Maupertis. N'esse anno,
segundo o sr. Beauvois, recebia elle com o nome
de «marquez de Chamilly» a ordem cretense do
Santo Anjo da Guarda.
As Cartas da religiosa eram já conhecidas ou cir-
culavam traduzidas e em copia, como diz Barbin,
pois que este pedia e obtinha, no mez seguinte, em
28 de outubro d'aquelle anno, privilegio régio para
a sua publicação.
Publicava-as quando o heroe reentrava em França.
Chamilly demorou-se pouco em Cândia; — «ficou
n'esla ilha, — diz o sr. Beauvois, — até 19 de janeiro
â30
de 1669, á volta foi juntar-se a seu irmão Hérard,
tjue commandava um corpo de exercito no ducado
de Luxemburgo, era nomeado coronel do regimento
■de Borgonha (8 julho 1669), e ia fazer guarnição
em Dunkerque.»
Não nos alongaremos mais na sua biographia.
Recordaremos apenas que em 1677 casava com uma
filha de João Jacques de Bouchet, senhor de Ville-
fix; que em 1703 era feito marechal de França, e
que morria em 8 de janeiro de 1715 com 79 annos
de edade e pouco menos do que imbecil, segundo
conta Saint-Simon. Este que o conheceu de perto
e que a elle se refere muitas vezes, fecha-lhe a
biographia como expozemos atraz. Por occasião da
elevação d'elle a marechal de França, diz:
— «Entre muitos commandos que teve durante
a guerra da Hollanda, o governo de Graves illus-
trou-o por aquella admirável defeza (1674) de mais
de quatro mezes, que custou 16:000 homens ao
príncipe de Orange, pelo que mereceu elogios, ele.
— Era um homem alto e grosso, o melhor homem
do mundo, o mais bravo, o mais cheio de honra,
mas tão estúpido e pesado que não se comprehende
como podesse ter algum talento para a guerra.»
É escusado lembrar que Saint-Simon, como Du-
elos, outro contemporâneo, — dizem, como coisa sa-
bida e corrente, — e Saint-Simon, particularmente,
.deveria sabel-o do próprio Chamilly, — que fora este
o capitão dos amores e das Cartas da religiosa por-
tugueza.
231
VI
Sobre a desolada Marianna é que depois do amo-
roso episodio, como antes d'elle, tem continuado a
pesar a mais completa obscuridade, que, insistimos
em dizer, mãos estranhas procuraram systematica-
mente tornar irreductivel á curiosidade indiscreta,
e também, como continuaremos a ver, pouco pre-
sistente, dos investigadores.
Mas uma vez entrados no caminho que só uma
sentimentalidade indolente ou piegas pode taxar de
impiedosa e inútil profanação, não desistimos de
arrancar a essa obscuridade injusta toda aquella
existência mallograda de mulher intelligente e
amante.
É claro que mais de uma vez tivemos de pôr de
parte certas preoccupações e preconceitos littera-
rios.
Como naturalmente nos teria acontecido não en-
contrarmos o nascimento de Marianna se a tivésse-
mos imaginado ampriina e moça» de 15 annos, le-
ríamos de desistir de acertar com ella no obituário
conventual, «morta de amor» logo depois d^aquella
funesta paixão, como reclamaria a lenda romanesca
tantas vezes contrariada e desmentida pela physio-
logia e pelos factos.
232
Foi ainda a leitura meditada das Cartas que d'esta
vez também nos guiou um pouco.
Certo, a idéa do suicidio relampea uma vez no
espirito altribulado da religiosa. Outra indicação
mais séria era a das «muitas enfermidades» que ella
dizia soíTrer, a da «pouca saúde que lhe restava.»
Curiosa coincidência: — fomos mais tarde encontrar
confirmada essa indicação, como vae ver-se, preci-
samente no termo de óbito da desgraçada.
Mas outras revelações nos offereciam as Cartas
que nos estimulavam a não desistir da investigação,
deante da falta de obituários conventuaes anterio-
res a 1690, e de quaesquer documentos dos annos
próximos a 1668, em que podessemos encontrar a
religiosa. Eram, por exemplo, a própria energia in-
tensa e persistente que ella revela no seu amor; —
a profunda espiritualidade, deixem-nos exprimir as-
sim, que a envolve e levanta até nas situações e nas
recordações mais escabrosas, como quando allude
aos momentos passados nos braços do amante; —
era ainda a influencia do meio, tão pronunciada já
que até na phrase, na maneira de pintar os enle-
vos e Ímpetos do seu enamorado espirito, a Ma-
rianna da Conceição se exprime frequentemente
como a sua homonyma da Esperança, quando esta
descreve ingénua e singellamente ao confessor os
raptos e volúpias da ascese mystica;— era final-
mente a ultima Carta, que^ ainda descontada a con-
tenção intencional, a cada momento interrompida,
traduz com soffrivel nitidez que uma grande revo-
233
lução se operou, vae feita e quasi triumphante no
espirito, talvez no orgulho, na dignidade profunda-
mente offendida d'aquella mulher, e que uma von-
tade firme, resoluta, vae recalcar, se não puder ex-
tinguir, a funesta e mallograda paixão.
O testamento da irmã, Maria Alcoforado, veiu de-
nunciar-nos que Marianna vivia ainda em 1676, oito
annos depois da ultima carta, quando Chamilly ia
fazer em França o seu casamento de conveniência,
que, melhor do que a defeza de Graves, e do que
as campanhas de Portugal, de Cândia, da Hollanda,
o havia de conduzir aos mais altos postos.
Segundo as Cartas, Marianna fora feita porteira,
ou, mais propriamente, uma das porteiras do con-
vento, nos principios de 1668. Porventura procura-
vam distrahil-a, arrancal-a á escandalosa obsessão,
com as occupações, com as responsabilidades, um
pouco também com as liberdades do cargo.
É curioso, — parece-nos até particularmente si-
gnificativo,— que Marianna, filha de uma das prin-
cipaes e mais influentes famílias em Beja e no con-
vento da Conceição, uma das mais antigas religio-
sas d'elle, não nos appareça depois desempenhando
algum cargo mais elevado e propriamente de elei-
ção canónica e geral, quando vemos a irmã mais
nova, escrivã e abbadessa, e as sobrinhas gradua-
das n'outras commissões conventuaes.
Comtudo o nome de Marianna Alcoforado appa-
rece-nos em 1709, n'uma eleição abbadessial, renhi-
damente contraposto ao de outra freira, 9 annos
Í234
mais moça, — D. Joanna Vellosa de Bulhão, — que
só por poucos votos mais consegue ser proclamada
abbadessa por Fr. Diogo de S. João Baptista, «se-
cretario n'esta eleição.»
Adivinha-se uma d'aquellas luctas, como que uma
recalcada revolta,— tão vulgares nos conventos. — E
de que as houve na Conceição, temos o testemu-
nho da própria Peregrina Alcoforado, que nos fala
do «mutim das grades» e das «alterações do coro»,
por causa da reforma.
O acto tem uma certa solemnidade imponente.
Passa-se em 30 de julho de 1709. Preside por de-
legação do reverendo padre provincial, o pregador
e secretario da Província franciscana, e assistem
como testemunhas dois leitores de theologia e qua-
lificadores do Santo Officio, o vigário do mosteiro,
outro pregador, e o guardião do convento de S.
Francisco, de Beja. C©lhem-se cento e nove votos,
sendo um o do presidente e os mais das freiras
professas. Recahe um em... Nossa Senhora da
Conceição. Marianna Alcoforado obtém 48 e a sua
competidora consegue apenas mais 10. *
No triennio anterior, ou em 1706, um só voto se
atrevera a lembrar Marianna para abbadessa.
Depois d'isto não conseguimos encontrar o nome
(la pobre religiosa senão no termo da sua morte,
1 D. Joanna Velloso morreu em 25 de outubro de 1719,
com 70 annos. Diz o termo: — «foi seis annos Abb.* fasendo
a sua obrigasão com grande zelo, padeseo repetidas infrinii-
dades q toleraua com grande pasiensia ...»
235
mas esse documento pode dizer-se que nos recom-
põe a vida d'ella depois do episodio das Cartas.
Profundamente abalada na saúde, soffrendo aquei-
las «continuas infermidades» a que as Cartas allu-
dem já, e cuja historia physiologica talvez não fosse
muito aventuroso suppor, — Marianna acabou por
afundar-se na ascese devota, entregando-se a gran-
des penitencias, menos porventura na esperança de
conquistar o Céo, do que para recalcar e extinguir
o brazeiro da sua funesta paixão.
A resistência vital dos Alcoforados fel-a vegetar
longamente.
No primeiro livro Das religiosas defuntas do Real
Convento da Conceição de Beja, começado em 1692
e cujo ultimo termo é de 1732, a madre escrivã D.
Antónia Sophia Baptista d' Almeida regista summa-
riamente a vida e a morte de aMadre Dona Ma-
rianna Alcanforada^ .
Morreu em 28 de julho de 1723, de edade, diz
erradamente o termo, de 87 annos. Tinha 83, e pelo
menos 60 e tantos de freira.
E a piedosa escrivã accrescenta, que — «todos gas-
tou no serviço de Deus», que cumpria as suas obri-
gações, que «era muito exemplar» e que «ninguém
teve queixa» d'ella ^(porque era muito benigna para
todasy> .
— <í Trinta annos, fez ásperas penitencias-» , — con-
tinua o termo, calando d'esta vez a explicação, —
apadeceu grandes enfermidades e com muita confor-
midade, DESEJANDO TER MAIS QUE PADECER.»
236
Singular coincidência: — 56 annos antes dizia ella
ao amante: — «Faze-me padecer mais ainda 1. . .»
Não é uma piírase banal, commum, insignifica-
tiva, — é uma phrase typica, a expressão inconsciente
de um estado ou de um caracter physiologico^ tra-
duzindo admiravelmente a necessidade de certas al-
mas ardentes, ingenuamente, implacavelmente de-
dicadas, de sentir que vivem, que existem, que con-
tinuam no objecto do seu amor, até por se senti-
rem repelidas ou maltratadas por elle. A indiffe-
rença, a compaixão, a franqueza leal do abandono,
é que lhes seriam intoleráveis. Não diz também a
desgraçada?
— «. . .houvera suportado a sua aversão. . . Ao
menos sentir-me-hia aíTrontada por um sentimento
vivo. Mas a sua indifferença é me insuportável . . .
Abomino a sua franquesa.»
Parece que os próprios textos estão ironicamente
reagindo contra toda a tentativa, como a do sr. Beau-
vois, de contrariar a verdade histórica das Cartas.
Quando sentiu a morte, Marianna — «pediu todos
os sacramentos os quaes recebeu em seu juiso per-
feito dando muitas graças a Deus pelos haver re-
cebido, e assim acabou com signaes de predesti-
nada, falando até á ultima hora.»
Como Heloísa, sobrevivera ao amante, menos tem-
po, comtudo, e como ella, mas bem mais desditosa
do que ella, encerrara-se, não com a memoria e
com as cinzas queridas do homem que amara, mas
com a dôr e a vergonha da sua malograda paixão.
237
nas ausleridades e nas penitencias, no exemplo e
no recolhimento da mais severa vida clauslral.
Foi assim, amortalhando-se na fatalidade do seu
destino, que ella procurou aquelle «estado mais
tranquillo» que se promettia na ultima Carta.
Mas em 1723 essas Cartas corriam o mundo, tra-
duzidas em diversas linguas, reproduzidas em. suc-
cessivas edições, e quem pode aíTirmar que alguma
não fosse um dia sacudir brutalmente o coração e
o espirito da desgraçada nessa mesma tranquilli-
dade tumular em que ella procurava afogal-os?
A própria campanha da Restauração accrescen-
tara consideravelmente as nossas relações littera-
rias com a França, e natural é que os ofíiciaes fran-
cezes deixassem no Alemtejo, onde por tantos annos
estiveram, amizades e correspondências que se não
trancassem de súbito.
O destinatário das Cartas fizera-se acompanhar
de dois creados portuguezes; um d'eiles até apa-
rece nos com o mesmo nome de um creado de Baltha-
sar Vaz, — o companheiro de Chamilly, — em 16G9,
quando este se faz padre.
E no inventario de um filho de Miguel da Cunha
Alcoforado, o irmão de Marianna, que recolhe e
herda o morgadio, encontra- se esta verba:
— «Mais dusentos Livros franceses avaliados em
cincoenta mil reis.»*
1 Segundo o sr. Theophilo Braga, n'um índex dos livros pro-
liibidos pela Mesa Censória no terceiro quartel do século xviii
238
O que é certo é que o êxito mais ruidoso e in-
tenso das Cartas se dá ainda em vida de Marianna
e na de muitos que conheceriam o escandaloso epi-
sodio ou que poderiam, e teriam o maior interesse
em desmentii-o. Perto de cincoenta edições se ti-
nham succedido e espalhado.
Em vez porém de qualquer reacção ou de qual-
quer contradicta, — e mais em Portugal succedem-se
também, abundantemente, as chronicas dos conven-
tos,— faz-se um grande silencio em volta do nome
encontram-se as Cartas Portiiguezas. O illustre escriptor sup-
põe, por isso, que fosse por esse tempo que se introduzissem
em Portugal. Nós suppomos que a prohibição prova exacta-
mente ... que já estavam introduzidas. Deviam tel-o sido, ainda
no século xvir.
Encontrámol-as também prohibidas n'um indice do celebre
Conselho Aulico do antigo império germânico, impresso em
Vienna d' Áustria: — Catalogus Lihroruma Commissione Aulica
Prohibitorum. — Vindobonae. Typis Joan. Thom. de Trettnsm,
ete.— 1765.
As edições comminadas a pag. 98, 99, são :
Lettres d'amour d'une Religieuse Poríiigaise, eíc. a la Haye,
1693 in 12.
— Lettres Portugaises, avec íes réponses, ele. à Lyon, 1695,
in 12.
É curioso que apezar da sua extraordinária publicidade,
não as encontremos no grande numero de Índices expurga-
torios anteriores e posteriores a esta data, que temos podido
consultar na Bibliotheca Nacional de Lisboa, com o amável
auxilio do nosso bom e erudito amigo sr. Gabriel Pereira, di-
gno bibliothecario.
A indicação relativa á bibliotheca francezados Alcoforados,
239
da pobre freira, e até da sua prestigiosa familia, e
desapparece aquella n'uma obscura penitencia de
30 annos, que não consegue resgatar e vencer esse
silencio.
De uma freira d'aquelle convento e d'aquelle tem-
po,— «cujo nome se ignora» — conta Fr. Jeronymo
de Bellem que vira «o demónio em figura tão hor-
renda e feia como elle próprio, todo coberto de teias
de aranhas e como chorando inconsolavelmente.»
— «Pondo os olhos a serva de Deus naquelle hor-
roroso expectaculo, llie dice: — Para que me apare-
ces, besta infernal, e para que choras, se em ti não
ha, nem pôde haver penitencia?»
eneontrámol-a n'um dos papeis do sr. Azevedo, de Portale-
gre:— 1768 I Dos Erdeiros de loaquim Miguel da Cunha Alco-
forado que faleseo | em esta cidade de Beja em os \ dois dias do
mez de lunho de mil e \ setecentos e sesenta e outto \ annos. —
É a viuva, D. Maria Clara Francisca Xavier de Albuquerque
Gastei -Branco, que requer a liquidação, em 5 de agosto de
1768, dizendo que seu marido foi administrador «de um mor-
gado denominado dos Alcoforados» que por sua morte passou
«para um transversal Francisco da Costa Alcoforado, da villa
de Beringel,» com o qual tem contratado fazer descripção e
partilha amigável do casal para da terça do marido se tirar a
«tersinha» a annexar ao iLorgado. A verba vem no artigo :
Roupas de linho !
E mais tarde, no testamento d'aquella senhora, em Porta-
legre, a 2 de agosto de 1798 (notas do tabellião José Pereira
Mourato), diz-se:
— «Item deixo a meu compadre Francisco Gomes Coelho,
da cidade de Beja, a livraria francesa que elle tem em seu
poder.»
240
Quem sabe se não foi Marianna Alcoforado, ve-
lha e beata, já, quem viu algum dia este lamurienlo
demónio sob a figura de um capitão de cavallaria
dos tempos da Restauração?
VTI
Duas palavras sobre a nossa edição das Cartas.
Pelo que importa á sua traducção franceza, posto
que a consideremos, como toda a gente, litteraria-
mente pouco feliz, pensamos, como o abbade de
Saint-Léger, que o melhor que podemos fazer é
conserval-a e adoptal-a tal qual é, por isso que per-
dido o original só com ella havemos contar.
Além de que os próprios defeitos da traducção,
derivados evidentemente do caracter litteral d'ella
constituem de certo modo um merecimento sob o
aspecto puramente critico.
Não hesitamos porém em fazer uma pequena al-
teração na ordem em que se succedem nas diver-
sas edições as Cartas da religiosa, porque o estudo
meditado e comparativo d'ellas, na forma e no fundo,
parece-nos revelar irrecusavelmente que essa or-
dem não corresponde á successão natural das si-
tuações e dos factos que ellas exprimem, e não foi,
em summa, a ordem em que ellas se succederam.
241
Pouco depois da publicação do nosso primeiro tra-
balho, um critico francez, que evidentemente o não
conhecia, chegava a esta mesma conclusão, posto
que a ordem que julgou restabelecer não fosse a
mais feliz. *■ Mas o que é mais curioso é que n'uma
edição que só agora podemos examinar, — na de
KleíTer, de 1821, — acabamos de encontrar justifi-
cada e restabelecida a ordem que indicáramos!
A primeira carta responde aos últimos protes-
tos de amor, á ultima despedida do capitão francez,
quando abandona Portugal, talvez antes, quando
abandona Beja.
Exprime as primeiras impressões, as primeiras
maguas, — as que a religiosa sente e as que ella
imagina que deve sentir o amante.
Marianna suppõe-n'o já em França; é certamente
para alli que as dirige.
Sente-se profundamente abatida; a desconfiança
recomeça já a atlribular-lhe o espirito, mas está
longe de comprehender toda a situação; espera ainda
que o amante voltará breve.
Um dos irmãos proporciona-lhe, inconsciente-
mente, de certo, um ensejo de escrever-lhe.
Deve ser, como já vimos, Balthazar Vaz Alcofo-
rado, seu companheiro nas expedições da Andalu-
1 Maurice Paléologue: Les lettres d'amour de la religieuse
portiigaíse. — Bevue des deux mondes, t. 95, 15 de outubro de
1889. — Elle quer que a 4.^ fosse a 1.", e a 3.'' a 4.% sendo a
2.% de maio de 1668.
F. 16
242
zia, e que se teria encarregado de qualquer re-
messa, de qualquer incumhencia, na partida, evi-
dentemente brusca, do capitão francez.
Não pode haver duvida: — esta carta é a primeira
das cinco.
Deve ter sido escripta ainda nos fins de 1667: —
talvez pouco depois da partida, em novembro ou
dezembro.
Mas é logo na segunda que se encontra a refe-
rencia «á paz de França», e é n'esta ainda que a
religiosa se queixa de terem passado seis mezes
sem receber carta alguma do amante.
Se fora realmente a segunda que ella escrevera,
a queixa parecera contradictoria, pois que também
n'esse longo praso a religiosa não teria escripto, ou
tel-o-hia feito uma só vez, apenas. Além de que,
n'esse caso, as duas cartas que se seguem teriam
sido escriptas quando, feita a paz com a Hespanha,
os nossos auxiliares francezes abandonavam já o
Alemtejo e a esperança no regresso do capitão de-
veria estar pouco menos que inteiramente perdida.
Como notámos atraz, a noticia da «paz de França» ,
a que a carta allude, só podia chegar ao Alemtejo
em abril ou maio de 166S.
Não é pois a segunda carta que a religiosa es-
creveu a que apparece como tal nas edições.
A forma, a expressão d'ella, comparada com a
das seguintes, acaba por dissipar todas as duvidas.
O tom geral é de desesperança, de desalento
completo.
ã43
A pobre religiosa vê claro na situação, ou, mais
propriamente, esta impõe-se-lhe. Enlouquece de de-
sespero. Sente que foi indignamente burlada. Pro-
cura apegar-se ainda á sua illusão, é certo, mas a
realidade fatal sobreleva-se-lhe, implacável.
A noticia da paz da França relampea-lhe no es-
pirito como derradeira esperança, que ella mal se
atreve a balbuciar.
Cremos que esta carta é que é a quarta. Seria
talvez escripta em maio. *
Parece evidente que as duas que se lhe seguem
foram escriptas anteriormente.
A terceira abre exactamente pelas primeiras es-
peranças da religiosa, ou pelas ultimas promessas
do capitão, ao partir.
— «Esperava que me escrevesses de lo ias as ter-
ras por onde passasses; que seriam longas as tuas
cartas», etc.
A considerada como quarta regista as primeiras
novas transmittidas pelo capitão ao tenente da sua
companhia, e por este á religiosa, da viagem para
França e da arribada do navio que o conduzia.
Allude-se a pequenas cartas frias e apressadas
do amante, provavelmente antes de embarcar, ou
quando ainda em terra portugueza, pois que n'essa
mesma carta a religiosa diz:
— «Bem desgraçada sou se nenhuma occasião ti-
1 Como a computou, também, o critico francez da Revue des
deiix mondes, depois de nós.
16*
244
vesle para me escrever depois da tua partida, e
mais desgraçada ainda se, tendo-a, o não fizeste.»
Recorda os pretextos d'essa partida e allude á
«confissão molesta» que havia «cinco ou seis me-
zes» lhe fizera o capitão, de uns amores que tivera
em França antes de vir a Portugal.
É também n'esta carta que a pobre freira re-
corda que «vae fazer um anno que toda se lhe en-
tregou. »
O próprio confronto dos movimentos Íntimos, que
se traduzem e exprimem com singular relevo nas
diversas cartas, confirma que a successão d'ellas foi
casualmente alterada na sua copia ou na sua publica-
ção, e seria uma prova, a mais, de que ellas não
foram a obra de um bel espnt que as forjasse .
A quarta carta entrou no logar da segunda e esta
no d'aquella. A nossa correcção hmita-se a desfa-
zer esta troca.
O que acabamos de expor e uma leitura refle-
ctida dos textos hão de dar-nos, esperamos, in-
teira razão.
Se pode haver logar para preferencias nas cinco
estrophes d'este encantador poema, a quinta pode
dizer-se que vale todas as outras. Chega a parecer
incrível que se podesse suppor forjada por qual-
quer bel espiit de uma litteratura superficial e sce-
ptica aquella primorosa crystallização de uma alma
de mulher intelligente e apaixonada, que se ergue
do abatimento da sua deshonra e da sua desprezada
paixão, com todo o orgulho da ingénua honestidade
245
do seu erro, com toda a altiva superioridade do seu
coração delicado e leal, fazendo do desprezo do bruto
€ sensual seductor a primeira «disciplina» cem que
vae começar a expiação da própria vergoaha.
Ah, não serão de mais, não, «trinta annos de ás-
peras penitencias», de ílagellações e de jejuns, para
lavar aquellas formosas e delicadas carnes, aquelle
sangue generoso e fidalgo, do contacto com o sol-
dado estúpido e desabusado.
Esta quinta epistola, ou a ultima, abre com uma
phrase que nos parece ter passado desapercebida,
e que, pouco intelligivel para o leitor francez, en-
cerra para nós uma nova indicação da originalidade
portugueza das cartas.
A religiosa começa por dizer ao desalmado amante
que espera fazer-lhe conhecer «pela differença dos
termos e da maneira d'esta carta» que está, emfim,
bem convencida de que elle a não ama já e de que
ella deve deixar de amal-o.
Depois, na traducção franceza, essa differença,
não só dos termos, mas da (ímaneiray> , é perfeita-
mente inapercebivel.
A religiosa começa, continua e termina, tratando
o amante, com o qual definitivamente rompe, da
mesma maneira pronominal porque o tratou sem-
pre.
Mas o vous francez traduz naturalmente, n este
caso, dois tratamentos pronominaes portuguezes
caracteristicamente differentes.
Nas primeiras quatro cartas esse tratamento seria
246
o que é de uso commum, familiar, popular, entre
nós em relações intimas:— o nosso tu, — tratamento
que não tem exactamente as mesmas applicações
sociaes e de uso geral do seu correspondente gram-
matical francez.
É verdade que temos o vós de tradição clássica,
muito abusada, por signal, mas além de que tal
tratamento destoaria do caracter das relações e da
situação que as Cartas exprimem, textos análogos,
contemporâneos, repellem-n'o.
Na ultima carta, rompendo as relações e a corres-
pondência com o capitão francez, verberando dura-
mente o procedimento d'elle, a religiosa não usaria
o mesmo tratamento, a mesma maneira pronomi-
nal, mas outra mais consoante no uso e na expres-
são portugueza com a nova situação definida por
aquella carta.
Tratal-o-hia «na terceira pessoa», ou empregan-
do pronominalmente a palavra senhor, espécie de
idiotismo da nossa lingua, que o traduclor francez
não podia caracterisar e verter senão ainda pelo
vous.
Na traducção franceza a «maneira», — mais pro-
priamente o tratamento, — e não o «estylo», como
traduziu Sousa Botelho,— é sempre o mesmo: —
wus, — nem podia deixar de ser.
No original porluguez esse tratamento não podia
ser, ou não era natural que fosse, o mesmo na inti-
midade e no rompimento dos dois amantes, e logo
ao abrir a quinta carta a religiosa exprimiiia real-
247
mente na «diííerença dos termos e da maneira», a
differença das situações.
Para um portuguez aquella phrase é prefeita-
mente clara.
Comtudo, dos poucos traductores portuguezes
que teem tido as Cartas, uns adoptam em todas o
tratamento, pouco natural e próprio nas quatro pri-
meiras, de vós, outros o de tu, completamente ex-
temporâneo e illogico na quinta. Se tivessem pen-
sado um pouco na primeira phrase d'esta, ter-se-
hiam recordado logo dos usos e idiotismos prono-
minaes da língua.*
Leva-nos isto naturalmente a considerar o pro-
blema da traducção, ou da restituição portugueza
das Cartas, seguramente menos simples do que a
questão da sua versão franceza.
1 Devemos aqui uma observação, — que a bem dizer é um
agradecimento, — a dois dos mais illusfres e amáveis criticos
da nossa primeira edição.
— «O senhor! o senhor! — exclama a notabilissima escri-
ptora, a sr.^ D. Maria Amália, reparando no tratamento que
adoptámos para a ullima carta: — «é de uma vulgaridade e
de um plebeismo atroz este tratamento.» Seria illogico o tu.
— «mas antes isso ! antes um tu illogico do que um senhor
tão mal soante.»
E o sr. Conde de Ficalho, outro escriptor de eleição, —
nota também que — «esta alteração levou a umas formas de
dizer menos naturaes e á repetição de uma expressão destoante:
o senhor.»
Mas, perdão : — é exactamente a vulgaiidcMe, o plebeismo^
2Í8
Na falta irremediável, — al'ás prefeitamente natu-
ral,—do texto original, o que importa, parece-nos,
é procurar surprehender e fixar a idéa, o senti-
mento, o drama sensorial, a alma, em summa, que
se espelha, atravez da versão franceza, n'essas Car-
tas; o que as teem feito viver dois séculos; o que
ha de fazel-as comprehender e amar por muitos
mais, em diversas linguas, e apesar da dicção pou-
co li Iteraria da primeira versão; — não a forma, a
linguagem, o que desappareceu, o que passou, o
que só poderá recompor-se por artificio pretencioso
e inútil. Sabemos bem que entre nós se pensa ain-
da,— e ha ainda quem o pratique, — que para ten-
tar reviver, no romance ou no drama, por exem-
plo, um episodio, uma situação histórica, uma so-
ciedade desapparecida, o melhor que ha a fazer é
pôr na bocca dos personagens uma linguagem ar-
ehaica, mais ou menos eruditamente engenhada,
ou, o que no caso sujeito vale o mesmo : — a forma, a maneira
usual, popular, corrente, do tratamento, na situação denuncia-
da, que havia de procurar-se para ser. . . natural. Pouco lit-
teraria, talvez, mas até por isso mais natural ainda. Mal soante
não ; destoante decerto, porque o próprio texto logo ás pri-
meiras linhas adverte que ha de destoar na maneiri e nos ter-
mos, para bem fazer comprehender a diíTerença das situações,
mas não destoante da verdade, da naturalidade da situação
creada e definida, que perante esta é que seria absurdamente
destoante o tratamento ... da anterior.
Quando muito, repetimos, poderíamos ter adoptado o vos,
além de tudo, n'este caso menos expressivo.
249
que no fim de conlas pode bem ter-se como certo
que não foi a linguagem d'elles, — a do tempo, co-
mo costuma dizer-se, — que os reduz a uma espé-
cie de títeres, que lhes tira, a elles e ás situações,
toda a vida e toda a naturalidade communicativa e
própria.
Mas além de que o expediente nos parece por
demais retardatário e inútil, o nosso livro é sim-
plesmente um processo, e a nossa tráducção das
Cartas não se oíTerece como exemplar, menos ain-
da como restituição. Como um nosso erudito ami-
go, já falleeido, que. encarregado de redigir uma
mensagem solemne ao Chefe da Egreja, se deu ao
extraordinário trabalho de a fazer toda com phra-
ses dos Livros Santos, poderamos, embora com me-
nos brilhante êxito, vasar em dizeres clássicos por-
tuguezes da segunda metade do século xvii toda
aquella sentimentalidade revolta e ardente da po-
bre freira apaixonada. Estamos persuadidos que
seria o mais seguro meio. . . de não recompor as
Cartas, e o que mais nos afastara da sua redacção
inicial.
Exactamente como o processo diametralmente
opposto, ou a despreoccupação, por dizer assim sys-
tematica, absoluta, das formas, da maneira da ex-
pressão linguistica do tempo, que ainda quando po-
desse imprimir ás Cartas uma feição litteraria mais
communicativa, por mais nossa, por mais moderna,
seria á custa da sua verdade, da sua naturalidade
própria que é o que cumpre procurar na recon-
250
strucção d'ellas, porque é o seu grande e original
merecimento. *
Outro processo havia ainda.
Mal podem contar se até hoje quatro edições por-
tuguezas, e logo a primeira é de Filinto Elysio, um
mestre da lingua, e toda ella torneada áquella ma-
neira tão peculiar d'elle, tão castiça e tão estimada
dos puristas, tão artificiosa, tão falsa. Começa logo
por esta phrase: — «Considera, amores meus, quão
pouco previsto foste que a ti mesmo, com engano-
sas esperanças te trahiste, e a mim comtigo. . .»
Quem gostar tem-n'a em duas edições.
Outra, é a do Morgado de Matheus, um bene-
mérito das nossas leltras, e o primeiro escriptor
portuguez que tentou, com intelligente e sincera
paixão, arrancar ao injusto desleixo e esquecimento
dos seus conterrâneos a mysteriosa figura da He-
loisa portugueza.
A terceira, incompleta, é a de Lopes de Mendon-
ça, um dos temperamentos litterarios mais bem fa-
dados para semelhante empreza.
A quarta foi a de um pobre moço talentoso e
poeta, prematuramente fenecido n'uma obscuridade
injusta:— ^Domingos José Ennes.
Teriamos nós o direito de nos apropriarmos de
algumas d'estas traducções?
1 É o que me permitto objectar a outro reparo da sr.= D. Ma-
ria Amália, quando graciosamente se arrelia por certas phra-
ses: — <• sentimento querefusas»,— «comoés tyranno!» — «mo-
ções», etc.
231
Teríamos, mas não quizemos. Qualquer d'ellas
satisfaria, — mais ou melhor, — o leitor. Nenhuma
nos satisfaria, porém, e como os primeiros preju-
dicados seremos nós, hão de relevar-nos o que hou-
ver de impertinente na tentativa de uma retraduc-
ção nova, perfeitamente despreoccupada de outra
idéa que não seja a de uma trasladação compre-
hensivel, fiel, — se pode dizer-se assim.
O que faremos, não por falsa modéstia, menos
ainda por orgulhosa confiança, mas por lealdade, é
nas passagens mais formosas, ou mais difficeis,
oíTerecermos à escolha do leitor as diversas ver-
sões, até para que não deixemos de recordar o ca-
racter especial do nosso trabalho e a intenção, sim-
plesmente critica, d'elle.
III
AS CARTAS
Porque o começar a sahir ella
do fogo, he o que mais a es-
calda, visto por experiência
que o arder nelie viva, era o
seu refrigério.
P. Manoel Bernardes, Seg.
pari. do Pão partido em
pequeninos. — Lisboa. —
1708, p. 184.
Considera, meu amor, como foste excessivamente
descuidado!
Ai mal aventurado! — Trahiram-te esperanças fe-
mentidas e com ellas me enganaste.
Uma paixão em que bordavas tantos deleitosos
projectos só pode dar-te, agora, um mortal deses-
pero, apenas comparável á crueldade d'esta ausên-
cia.
E ha de este desterro para o qual todo o re-
quinte da minha dôr não acha um nome assas fu-
nesto, privar-me para sempre de embeber-me n'es-
ses olhos em que via tanto amor e que me fizeram
conhecer enlevos que me enchiam de contentamento,
que eram tudo para mim, que emfim me abastavam
a vida?*
1 A phrase na versão franceza é : « . . . et qui me faisaient
connaitre des mouvements qui me comblaient de joie, qui me
tenaient lieu de tout, et qui enfin me siijfisaienL» Está-se a adi-
256
Os meus olhos é que perderam nos teus a única
luz que os animava. Só lhes restam lagrimas, nem
eu lhes tenho dada outro emprego senão o de cho-
rar continuamente desde que sube que estavas re-
solvido a um apartamento para mim tão insupporta-
vel que cedo me fará morrer.
E comtudo parece-me que tenho o quer que seja
de enamorado apego ás magoas de que tu só és a
causa.
Consagrei-te a vida desde que em ti descança-
ram meus olhos, e sinto em sacrificar-t'a um mys-
tico prazer.
vinhar o esforço de uma comprehensão e traducção lilteraU
Mas o suffire francez oíTereee difliculdades conhecidas e dis-
cutidas já, creio que por Teixeira de Vasconcellos, á traduc-
ção 8 á correspondência portugueza. Qual seria a phrase da
religiosa á qual o traductor francez fez corresponder o suffire f
Filinto Elysio poupou-se á difficuldade, e traduziu :
« . . . e que me assignalavam movimentos de que bebia o
meu coração tanta alegria, movimentos que eram para mim
tudo ; pois que para mais nada me ficavam desejos. »
E Sousa Botelho, verteu :
«... e que me faziam conhecer aífectos que enchiam meu
peito d'alegria, que eram tudo para mim, tudo supriam e em-
fim me satisfaziam.»
Pareceu-nos que poderíamos evitar o circumloqnio, sem
mutilar o texto, traduzindo o sufftre pelo nosso velho e clás-
sico abastar. — «Fartar ou abastar a alma com a graça divina,»
— diz Paiva de Andrade.
É um erro suppor-se obsoleta a palavra que é vulgar ainda
na locução popular.
257
Mil vezes ao dia te procuram meus cançados sus-
piros e não me trazem, os tristes, outro allivio a
tantas tribulações do que o aviso cruamente sincero
da minha desventura que me não consente uma es-
perança e me repete a todos os instantes: — «deixa,
deixa de consumir-te em vão, infeliz Marianna! deixa
de anhelar um amado que não tornarás a ver, que
passou o mar para te fugir, que está em França no
meio dos prazeres, que não pensa um momento nas
tuas penas, que te dispensa de todos estes trans-
portes, que nem sabe agradecer-fos.»
Mas não.
Não posso resolver-me a cuidar tão mal de ti.
Sou muito interessada em justificar-te. Nem quero
imaginar que me tenhas esquecido! . . .
Não sou eu já bem desgraçada sem me torturar
com falsas suspeitas?
Porque hei de esforçar-me em apagar da memo-
ria todos os desvelos com que te esmeravas em me
provar amor?
Ai tanto me deleitavam elles que bem ingrata
fora se não te amasse ainda com os mesmos ar-
robamentos em que a minha paixão me enlevava
quando lograva os testemunhos da tua.
Como é possível que lembranças de tão doces
momentos se tenham tornado tão amargas? E que
contra toda a natureza, sirvam somente agora para
dilacerar-me o coração?
Pobre d'elle! A tua ultima carta pol-o n'um es-
tado singular: taes saltos me dava no peito que
F. 17
^58
parecia forcejar por arrancarse de mim e voar
para ti.*
Tão quebrantada fiquei, de todas estas moções
violentas que por mais de Ires horas estive de todo
alienada dos sentidos. ^
Era como se me defendesse de voltar á vida que
devo perder por ti, já que para ti a não posso con-
servar.
Com bem pesar tornei a mim.
Regalava-me sentir que morria de amor, e sen-
1 Filinto traduz : — « ... tão sensíveis abalos padeceo que
cuidei que lidava em separar-se de mim, para te ir buscar».
E Sousa Botelho : — « . . .as suas palpitações foram tão sen-
síveis que pareciam como esforços para separar-se de mim e
reunir-se a ti.«
Ora por aquelle tempo, a dois passos da nossa religiosa, a
sua homonyma, freira como ella, Marianna da Purificação,
descrevia uma situação análoga da seguinte maneira. — «Isto
me succede muitas vezes, que toes suo os saltos e baques que
dá a coração no peito que o ouço com os ouvidos corporaes,
e desejo abrir o peito com as minhas próprias mã.os e deixal-o
voar para onde elle quer e deseja tanto, mostrando que não quer
viver em mim senão no seu centro que he o meu Divino Es-
poso." Frag. da prod. vida, etc. por Fr. Caetano do Vene. —
Lisboa, 1747.
2 Podíamos traduzir simplesmente: — perdi os sentidos. —
Mas não era assim que se dizia então nos conventos e trata-se
de uma d'aquellas «suspensões dos sentidos», d'aquelles «ra-
ptos e extasis» tão vulgares na chronica conventual.
«... que de todo a tinha alienado dos sentidos» — diz em
caso semelhante Fr. António d'Almada.
259
tia-me bem, flnalmente, por ver cessar de flagel-
lar-me a alma a dor da tua ausência.
Depois d'estes abalos tenho soffrido muitas en-
fermidades S mas posso eu viver sem males em
tanto que não te vir?
Supporto-os sem murmurar pois que de ti pro-
vêem.
Coitada de mim ! é esta a recompensa que me dás
de te haver tão carinhosamente amado?
Não importa.
Estou decidida a adorar-te toda a vida e a não
querer a mais ninguém.
Digo-te que farás bem, egualmente, em não amar
outra.
Porventura poderia contentar- te uma paixão me-
nos ardente do que a minha?
Encontrarias talvez mais formusura, — e comtudo
dizias-me outr'ora que eu era bonita, — mas não en-
contrarias, nunca, tanto amor. . . e tudo o mais é
nada.
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, e não
me digas mais que me lembre de ti.
Eu não posso esquecer-te, e não me esqueço, tão
pouco, de que ma fizeste esperar que virias passar
algum tempo comigo.
1 «Après ces aceidens, j'ay eu beaucoup de diílerentes in-
dispositions.» — Traduzíramos : — «indisposições», mas «acha-
ques», «enfermidades», é que são as palavras usadas eeonsa-
gradas na linguagem conventual, bem como «abalos.»
17*
260
Ai porque não queres tu passar comigo toda a
tua vidaf
Podesse eu sahir d'este aborrecido convento, que
não esperaria em Portugal, não, que se cumprissem
as tuas promessas ! . • .
Iria, sem escrúpulos, procurar-te e seguir-te e
amar-te por toda a parte.
Não ouso mesmo pensar que fosse possível.
Não quero nutrir uma esperança que me daria
algum allivio, e não quero entregar-me senão ás
penas d'este infortúnio.
Confesso -te, porém, que a occasião que meu ir-
mão me proporcionou de te escrever me fez um
alvoroço alegre e suspendeu por um momento o
desespero em que vivo.*
1 O sr. Theophilo Braga reconstroe assim a passagem : «No
meio da sua aíllição todos conheciam que aquella paixão a
matava; foi desde esse instante que sua mãe lhe fallou com
bondade; disseram-lhe que escrevesse ao coide . . . N'aquelle-
tempo não havia as communicações do correio ; as cartas iam
por mão própria. O irmão offereceií-se-Ihe para fazer chegar ás-
mãos de Chamilly uma carta.» Ora além de que não é isto que
as cartas dizem, não poderia ser realmente o que acontecesse,
Marianna allude mesmo ás perseguições que soífreu dafamilia
por causa do que esta julgaria então, apenas, se não ficou jul-
gando sempre, um simples galanteio. O próprio escriptor sup-
põe que Chamilly tivesse partido porque «temeria também o
punhal dos Alcoforados» que aliás usavam espada e não pu-
nhal. Como podemos suppor que alguém, e muito particular-
mente a família, o irmão, não o Miguel, mas o Balthazar Vaz,
concorresse directa e conscientemente para alimentar aquella
261
Gonjuro-te que me digas porque te empenhaste
em enfeitiçar-me tanto, sabendo bem que terias de
abandonar-me um dia?
Ai, porque tanto te encarniçaste em fazer-me des-
graçada?
Porque não me deixaste tranquilla no meu con-
vento?
Fizera-te eu algum mal?
Mas perdoa, meu amor.
De nada te culpo.
Nem estou em condição de tirar vingança de ti,
e accuso somente o rigor do meu destino.
Também... separando-nos, parece-me que nos
fez todo o mal que poderíamos receiar d'elle.
Não conseguirá separar os nossos corações: — o
amor que pode mais do que elle uniu-os para toda
a vida.*
paixão sacrílega da religiosa? Das Cartas vemos que Marianna
sabia bem para onde e como havia de escrever. O tenente da
companhia de Chamiljy e outros officiaes francezes, iam falar-
Ihe d'elle e offereciaiii-lhe, quando partiam os seus serviços.
A nossa hypothese parece-nos mais verosimil. Balthazar Alco-
forado, official também, dar-se-hia naturalmente com Cha-
milly. Á partida brusca d'este encarregar-se-hia de lhe enviar
quaesquer eíYeitos. Em summa, inconscientemente proporcio-
naria á irmã uma oceasião de escrever-lhe além das que ella
evidentemente tinha.
1 Esta bella phrase : — ^Tamour qui est plus puissant que lui,
les a unis pour toute notre vie»,— foi assim reconstruída por
FiHnto: — «que mais poderoso que o fado é o deos Amor e elle
é quem nos uniu até á morte!» O «fado», o <Deus Amor»!...
262
Se algum interesse tens pela minha, escreve-me
muitos vezes.
Bem te mereço que tenhas algum cuidado em me
informar do estado do teu coração e da tua vida.
Ah, sobretudo . . . vem ver-me.
Adeus: não posso resol ver-me a largar este pa-
pel para que vá cahir-te nas mãos.
Quizera ter eu essa ditai
Que loucura a minha ! Bem sei que não é possí-
vel.
Adeus: não posso mais.
Adeus.
Ama-me sempre.
E faze padecer, mais ainda,* a tua pobre Ma-
rianna.
II
O teu tenente acaba de dizer-me que uma tor-
menta te fizera arribar ao Algarve.
Beceio que tenhas soíTrido muito no mar, e esta
apprehensão tão vivamente me absorveu que não
tenho pensado em todas as minhas penas.
1 Caracteristicamente conventual, como tantas outras, esta
phrase ou esta idéa. Vide p. 23S.
2 É a 4." das edições anteriores.
263
Imaginas acaso que o teu tenente se interesse^
mais do que eu, no que te succede?
Porque está elle melhor informado, e, em summa,
porque não me tens escripto?
Bem infeliz sou se, para o fazer, não tens tido
occasião alguma, desde que partiste, e, mais ainda,
se, tendo-a, não me escreveste.
São desconformes a tua injustiça e a tua ingra-
tidão; mais me pesara, porém, que ellas te acar-
reassem alguma desgraça.
Prefiro que fiquem sem castigo, a que me vin-
guem.
Resisto a todas as mostras que deveriam conven-
cer-me de que não me amas, e sinto-me bem mais
disposta a abandonar-me cegamente á minha pai-
xão, do que ás razões que me dás de me lastimar
da tua frieza.
Quantas mortificações me terias poupado se as
tuas maneiras fossem tão remissas nos primeiros
dias em que te vi, como me teem parecido desde
algum tempo!. . .
Mas quem não se illudira com tantos extremos e
quem os não tivera por sinceros?
Quanto custa e tarda que nos resolvamos a sus-
peitar da lealdade dos que amamos!
Eu bem vejo que a menor desculpa te satisfaz,
e sem que te dês ao incommodo de a engenhar, o
amor que te tenho serve-te tão fielmente que nem
posso consentir em julgar-te culpado, senão para
gosar o ineffavel prazer de te justificar eu própria I
264
Consumiste-me com a porfia dos teus galanteios,
abrazaste-me com os teus transportes, enfeitiçaste-
me com as tuas finezas, renderam-me os teus jura-
mentos, seduziu me a minha inclinação violenta, e
as continuações destes princípios * tão ledos e tão
felizes não são mais do que lagrimas, cançados sus-
piros, uma funesta morte, sem que eu possa encon-
trar-lhes remédio!
Certo, logrei não imaginadas delicias, amando-te,
mas custam-rae agora, bem desmedidas penas.
São sempre excessivas todas as moções que me
«ausas.
Se tivera resistido obstinadamente ao teu amor,
e se te houvera dado qualquer motivo de pezar e
de ciúme para mais te inflammar e prender; — se
tivesses notado em mim qualquer esquivança artifi-
ciosa;— se eu tivesse querido, em summa, oppor
a minha razão à inclinação natural que para li me
impellia, e que logo me fizeste perceber, — embora
as minhas diligencias tivessem sido inúteis, sem du-
vida;— poderias então castigar-me severamente e
abusar do teu poder sobre mim, com mostras de
justiça.
Mas pareceras-me digno do meu amor, antes que
me houvesses dito que me amavas, mostraste-me
uma grande paixão, senti-me deslumbrada, e aban-
donei-me a amar- te perdidamente.
1 «Quão venturosos fossem os signaes cl'estes santos princí-
pios..."— (Desposorios do Esipirito.)
263
Não estavas cego, como eu:— porque me deixaste
cahir n'esta misera condição em que agora me vejo?
Que querias tu fazer de todos os meus enlevos,
que não poderiam deixar de te ser importunos no
seu mesmo exaggero?
Sabias perfeitamente que não havias de ficar para
sempre em Portugal.
Porque me quizeste escolher para me tornar tão
desgraçada ?
Encontrarias, sem duvida, n'esta terra qualquer
mulher mais formosa com a qual gostasses os mes-
mos prazeres, pois que, somente, os grosseiros pro-
curavas*;— que te amasse fielmente emquanto es-
tivesses com ella;— que o tempo podesse consolar
da tua ausência, e que tivesses deixado sem aleivo-
sia e sem crueza.
Este teu comportamento é mais de um tyranno
acirrado em perseguir-me do que de um amante que
só deve pensar em captivar.
Ai, porque tratas com tanto rigor um coração
que é teu?
Vejo muito bem que és tão fácil em te deixares
mover contra mim, como eu o fui em me deixar
convencer em teu favor.
Sem precisar valer-me de todo o meu amor, e
sem querer saber se terias feito por mim alguma
coisa de extraordinário, eu teria resistido facilmente
1 <f . . . avee laquelle vous eussiez eu autant de plaisir, puis-
que vous n'eii cherchiez que de grossierso .
266
a muito melhores razões do que podem ser as que
te moveram a deixar-me.
Ter-me-hiam parecido muito fracas, e nenhumas
haveria que tivessem podido arrancar-me de junto a ti.
Mas quizeste aproveitar os primeiros pretextos
que se offereciam para voltares a França.
Partia um navio.
Porque não o deixaste partir?
Escrevera-te a familia.
Não sabes tu as perseguições que soíTri dos meus?
A tua honra obrigava-te a deixar-me.
Cuidei eu da minha?
Tinhas de ir servir o teu rei.
Se quanto dizem d'elle é verdade não tem ne-
cessidade alguma do teu auxilio e haver-te-hia dis-
pensado d'elle.
Ai que ventura a minha se juntos houvéssemos
passado a vida!
Mas já que era fatal que uma cruel ausência nos
apartasse, creio que devo comprazer-me, ao me-
nos, em não ter sido infiel, e não quizera, porquanto
ha no mundo, ter praticado uma acção tão negra.
Gomo f pois conhecestes o fundo do meu coração
e da minha ternura, e podeste resolver-te a dei-
xar-me para sempre, e a expor-me aos terrores de
que não te lembres mais de mim . . . senão para
me sacrificar a uma nova paixão?!
Sei bem que te amo como uma doida.
Não me queixo comtudo de toda esta fúria insana
do meu coração.
267
Costumei-me ás suas tribulações, e não poderia
viver sem este prazer a que me apego de te amar
no meio de mil penas.
Mas atormenta-me sem cessar o enojo e o des-
gosto que tenho por tudo . . .
A minha familia, as minhas amizades, este con-
vento, tudo se me tornou insupportavel
É-me odioso quanto sou obrigada a ver, quanto
é mister que eu faça.
Tão ciosa me sinto da minha paixão, que me
parece que todas as minhas acções, que todos os
meus deveres te pertencem.
Sim, tenho escrúpulos em não empregar em ti
todos os momentos da minha vida.
Que faria, coitada de mim, sem tanto ódio e sem
tanto amor, quaes me enchem o coração?!
Poderia acaso sobreviver ao que incessantemente
me absorve, para levar uma vida tranquilla e des-
cuidada ?
Ai que não poderia, não, conformar-me com esse
vácuo e com essa indifferença.
Toda a gente tem reparado na completa mudança
do meu génio, das minhas maneiras, da minha pes-
soa.
Minha Mãe falou-me n'isto, a principio com aspe-
resa, depois com algum carinho. *
Nem sei o que lhe respondi.
1 « . . . ma Mére, . . . » — a Mãe conventual, a Madre, por exce-
lência, a Abbadeça. Vid. pag. 218.
268
Creio que lhe confessei tudo.
As freiras mais severas compadecem se do meu
estado. Move-as a uma certa contemplação, a uma
certa piedade por mim.
A todos commove o meu amor, só tu persistes
ii'uma profunda indifferença,. . . sem me escreveres
senão cartas frias, cheias de repetições, metade do
papel em branco, dando grosseiramente a conhecer
que morres por terminal-as . . .
Dona Brites tanto me amofinou n'estes dias pas-
sados, por me fazer sahir do quarto, que julgando
distrahir-me lá me levou a passeiar na varanda
d'onde se vêem as portas de Mertola'.
1 Explicámos já largamente esta passagem. O texto franeez
é: — «Elle me mena promener sur le balcon d'ou Von voit Mer-
tola.»
Filinto traduz : «me levou a passear á varanda d'onde se
avista Mertola.»
Sousa Botelho — «levou-me á varanda donde se vê Mertola.»
Theophilo Braga interpreta (Est. da Id. Med.J: — «no mi-
rante do mosteiro d'onde se avista Mertola.»
J. Ennes, verte : — «levou me ao eirado d'onde se avista Mer-
tola».
P. Chagas, traduz também: — «levou-me á varanda d'onde
se vê Mertola», mas foi o primeiro que observou que era «im-
possível que Marianiia Alcoforado dissesse isto.» — De nenhum
ponto de Beja», — accrescenta, — «se vê Mertola que fica na
margem direita do Guadiana a 40 kil. de distancia. E comtudo
sente-se que a phrase não é apocrypha, é simplesmente mal in-
terpretada. Uma das fachadas do convento fica voltada para
o Guadiana, e se não fossem a distancia e as ondulações do
269
Fui, e logo me assaltou uma lembrança cruel que
me fez chorar todo o resto do dia.
Trouxe-me outra vez para o quarto, e lancei-me
sobre a cama, reflectindo nas poucas mostras que
vejo de me curar um dia. O que me fazem por al-
liviar-me, acirra a minha dôr, e nos próprios remé-
dios acho razões particulares para me affligir.
Vi-te, por alli, passar, muitas vezes, com ares
que me enfeitiçaram, e eslava n'aquelie miradouro,
no dia fatal em que comecei a sentir os primeiros
eflfeitos da minha desventurada paixão.
Parecia-me quereres agradar-me, posto não me
conhecesses ainda.
Persuadi-me que havias reparado em mim, entre
todas as minhas companheiras.
Imaginei que quando passavas, estimavas bem
que te visse melhor, e que admirasse a tua des-
tresa e o teu garbo quando fazias caracolar o ca-
vallo.
Toda me assustava, se o obrigavas a fazer algum
passo difficil.
Emfim, intimamente me interessava em todas as
tuas acções.
terreno, das janellas do convento da Conceição podia certa-
mente ver-se Mertola.»
A observação abona o fino espirito litterario do illustre es-
criptor, — sente-se, realmente que a phrase não é apocrypha, —
mas a explicação vimos já que era outra. O que é curioso é
que melhor acertasse a traducção ingleza de Bowles: — «on
ttie balcony ichich looks totcards Mertola.»
270
Sentia já que não me eras indifferente e tomava
para mim quanto fazias.
Ai que em demasia conheces as continuações
d'estes começos, e embora nada tenha a poupar-
me, não devo lembrar-fas com receio de fazer-te
mais culpado, se é possivei, do que tens sido, e de
ter de reprehender-me por tantas diligencias inú-
teis para que me fosses fiel. . .
Não o serás, não!
Posso esperar porventura das minhas cartas e
dos meus lamentos o que o meu amor e o meu
abandono não poderam contra a tua ingratidão?
Estou bem certa da minha desventura.
O teu comportamento injusto não me deixa a me-
nor razão para d"elle duvidar, e tudo devo receiar
pois que me deixaste. . .
Acaso só para mim terás encantos e não se ele-
varão em ti outros olhos?
Creio que me não pesará que os sentimentos de
outras justifiquem, de algum modo, os meus, e vê
tu a contradicção d'esta alma! quereria que todas as
mulheres de França te achassem adorável, e que
nenhuma te amasse, e que não te agradasse ne-
nhuma.
É ridícula, é impossível esta idéa, sei.
Mas, demais tenho experimentado que não és ca-
paz de uma grande affeição e que poderás bem es-
quecer-me, sem nenhum auxiUo e sem que te obri-
gue a isso uma nova paixão.
Talvez quizesses, comtudo, ter algum pretexto
271
rasoavel.. . É verdade que eu seria mais desgra-
çada, mas tu serias menos criminoso.
Vejo que permanecerás em França, sem grandes
prazeres, n'uma inteira liberdade.
Retem-te a fadiga de uma grande viagem, al-
guma pequena conveniência, e o receio de não po-
deres corresponder aos meus ardentes transportes.
Ai não o receies!
Contentar-me-hei em ver- te de tempo a tempo,
e em saber somente que estamos na mesma terra.
Mas illudo-me naturalmente, e quem sabe se não
te haverá enleado mais do que as minhas finezas,
o rigor e a esquivança d'alguma outra !
Será possível que mais te inflammem os maus
tratos ?
Antes, porém, de te empenhares n'uma grande
paixão pensa bem no excesso das minhas penas, na
incerteza dos meus projectos, na contradicção das
minhas cartas, nas minhas confianças, nos meus
desesperos, nas minhas saudades, no meu ciúme. . .
Olha que vaes soffrer muito 1
Conjuro-te que aprendas n'este exemplo que te
estou dando, e que, ao menos, não te seja inútil
quanto padeço por ti.
Fizeste-me ha cinco ou seis mezes uma confissão
molesta: — disseste-me muito francamente que ama-
ras uma senhora no teu paiz.
Se é ella quem te impede de voltar, dize-m'o,
sem escrúpulo, para que eu não me consuma ainda
mais.
272
Ampara-me por ora um resto de esperança, e-
preferira, se ella não deve reanimar-me, perdel-a
inteiramente e perder-me, eu, com ella.
Manda-me o retrato d'essa senhora com algumas^
das suas cartas.
Conta-me o que ella te diz.
Acharei n'isso, talvez, motivos para me consolar
ou para mais padecer.
Não posso continuar n'este estado, e não ha mu-
dança que não me seja benéfica.
Quereria possuir também o retrato de teu irmãa
e de tua cunhada*.
Tudo o que te é alguma coisa, me é caro. Sin-
to-me inteiramente devotada a quanto te respeita.
Não me deixei nenhuma disposição de mim pró-
pria.
Momentos ha em que me parece que me resigna-
ria até a servir submissamente a que amas.
Tanto me teem quebrantado os teus maus tratos
e os teus desprezos que ás vezes nem me atrevo a
pensar em que possa ter ciúmes de ti, com receio
de desagradar-te, e chego a cuidar que é a maior
impertinência d'este mundo, permittir-me, eu, fa-
zer-te censuras.
1 Hérard Bouton e Catherina Le Conte Nonant. Lembrare-
mos que Hérard era governador de Dijon onde se organisou.
no começo de 1668 a expedição ao Pranche Comté, de que já,
fez parte Chamilly, chegado de Portugal.
273
Convenço-me muitas vezes de que não devo ex-
primir-te amargamente, como faço, sentimentos que
refusas.
Ha muito que um oílicial espera por esta carta.
Fizera o firme propósito de t'a escrever por ma-
neira que a podesses ler sem aborrecimento. Mas
bem extravagante vae ella já; devo encerral-a.
Ai que me não sinto com forças para o fazer. Pa-
rece-me que te falo, quando estou escrevendo-te,
e que, de algum modo, estás commigo.
A primeira que te escrever não será tão extensa
nem tão importuna. Podes abril-a, com esta cer-
teza que te dou.
Seguramente, não devo falar te de uma paixão
que te desgosta, e não te falarei mais n'ella.
D'aqui a poucos dias vae fazer um anno que toda
me entreguei a ti, sem recato.
Muito ardente e muita sincera me parecia a tua
paixão, nem por sombras poderá cuidar que tanto
enojo te causassem os meus favores que te obri-
gassem a fazer quinhentas léguas e a expor-te aos
perigos do mar para te alongares de mim.
De ninguém poderia esperar-se tal.
Deverias lembrar-te do meu pudor, da minha
confusão, da minha vergonha, mas, ai de mim! de
nada te lembras que possa a teu pesar, obrigar-le
a amar-me.
O oíficial que deve levar-te esta carta, pela quarta
vez me manda dizer que precisa partir.
Gomo está apressado!
F. 18
274
Abandona, sem duvida, n'esta terra, alguma des-
graçada!. . .
Adeus.
Mais me custa a fechar esta carta, do que te cus-
tou deixar-me, talvez para sempre.
Adeus.
Não me atrevo a dar-te mil nomes d'amor, nem
a entregar-me, sem constrangimento, a todos os
meus Ímpetos.
Amo-te mil vezes mais do que a vida e mil ve-
zes mais do que penso.
Como me és querido e como me és tyranno!
Não me escreves ...
Não pude cohibir-me de te dizer isto, outra vez!
Vou recomeçar, e o official que se vá embora.
Que importa? Que parta. . .
Escrevo mais para mim, do que para ti.
Busco apenas aliviar este coração.
Também, o comprimento d'esta carta vae met-
ter-te medo. . .
Não a lerás.
Que fiz eu para ser tão desditosa?!
E porque me envenenaste assim a vida?
Ah porque não nasceria eu bem longe d'esta
terra.
Adeus; perdoa-me.
Não me atrevo já a a pedir-te que me ames.
Yê a que me reduziu o meu destino ! . . .
Adeus.
275
III
Que será de mim? e que queres tu que eu faça?
Quão longe me vejo de quanto imaginava !
Esperava que me escrevesses de todas as terras
por onde passasses, e que longas cartas eu contava
receber ! . . .
Que alimentarias a minha paixão com a espe-
rança de tornar a ver-te!
Que uma absoluta confiança na tua fidelidade me
daria algum allivio, e que ficaria assim, n'uma con-
dição supportavel, sem extremas inquietações.
Formara até uns leves projectos de pôr todo o
esforço de que fosse capaz em curar-me, se po-
desse saber com toda a certeza que me havias es-
quecido.
A tua ausência, alguns toques de devoção, o re-
ceio natural de arruinar inteiramente a pouca saúde
que me resta com tantas vigílias e com tantas mor-
tificações, a escassa esperança da tua volta^ a frieza
do teu amor, os teus últimos adeuses, a tua par-
tida fundada em mal forjados pretextos, mil outras
considerações ainda que não podem ser mais ra-
soaveis,... nem mais inúteis, pareciam offerecer-
me, se o quizesse, um refugio seguro.
Não tendo emfim que batalhar senão contra mim
18#
276
própria, não podia, certo, desconfiar.de todas as
minhas fraquezas, nem prever tudo quando padeço
agora.
Ai de mim, como sou digna de lastima por não
poder dividir comtigo as minhas penas, e por me
ver só, inteiramente só, em tanta desventura!
Mata-me esta idéa. Morro de terror ao pensar
que nunca sentirias verdadeiramente o intimo en-
levo dos nossos prazeres.
Ai simt conheço agora a falsidade de todos os
teus transportes.
Atraiçoavas-me todas as vezes que me dizias que
o teu supremo encanto era estar a sós commigo.
Só ás minhas persiguições devo os teus arrobos
e os teus arrebatamentos.
Fizeras a sangue frio o propósito d'esíe incêndio
em que me abrazaste toda *.
Não consideravas a minha paixão senão como
uma victoria, e o teu coração nunca foi profunda-
mente penetrado por ella.
1 «Em hiia parte diz : sempre o meu coração estáluia braza
viva, & em outra parte : Dous annos ha que trago uma braza
viva no coração; aonde he de notar, que sendo o fogo em-
blema do amor, não explica a serva de Deos o seu aíTeeto pela
chamma de labareda, senão pelo fogo da braza, porque a la-
bareda o mesmo ar inconstante que a faz crescer, a pode tam-
bém apagar, & o amor a quem se houver de dar titulo de fino,
não ha de ser labareda, que com qualquer mudança de tempo
se possa apagar; ha de ser braza em quem o fogo continua-
mente persevere». Desp. do Esp., ete.
277
Mas não és tu muito desgraçado e não terás bem
pouca delicadeza d'alma pois que não soubeste go-
sar de outra maneira os meus enamorados enlevos ?
E como, se não fosse assim, seria possível que
com tanto amor eu não tenha podido fazer-te com-
pletamente feliz?
Choro por amor de ti as inexgotaveis delicias que
perdeste.
Porque fatalidade não quizeste logral-as?* Ai,
que se as conhecesses verias que são bem mais
doces, sem duvida, do que a de me haveres enga-
nado, e terias experimentado que se é muito mais
feliz, e que se sente alguma coisa mais deleitosa
em amar violentamente. . . , do que em ser amado.
Não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o
que desejo.
Dilaceram-me mil commoções contrarias.
Pode imaginar-se mais misera condição?
iPilinto: — «Penoso estou (a teu respeito) que te não lo-
grasses de infinidade de prazeres que te vinhão á mão, se ama-
ses como devias ...»
E Sousa Botelho, litteralmente: — «Lamento, por amor de
ti somente, as deleitações infinitas que perdeste. . ., porque
fatalidade não quizeste desfructal-as».
Lembra-nos uma phrase de Frei António de Almada, grande
doutor n'estas finezas:' — «Eis aqui como voava este devoto
espirito . . . , mas como não havia de andar alienada das crea-
turas. . . húa alma que tão a meude costumava gostar as de-
licias d'estes celestes logros? Oh quanto ganha quem assim
sabe amar & quanto perde quem não sabe amar assim!»
278
Amo-te perdidamente, e poupo-me muito, talvez,
nâo me atrevendo a desejar que te attribulem os
mesmos Ímpetos de amor.
Matar-me-hia, ou, se o não fizesse, morreria de
pena se me certificasse que não tinhas repouso al-
gum, que a tua vida era só desespero e loucura,
que choravas inconsolavelmente, e que tudo te era
odioso.
Não me dão as forças para as minhas maguas,
como poderia supportar ainda as que me dariam
as tuas, mi! vezes em mim mais penetrantes?
Mas não posso também resolver-me a desejar que
me não tragas no pensamento, e para dizer-te toda
a verdade tenho um furioso ciúme de quanto possa
dar-te contentamento, de quanto possa regalar-te o
coração, de quanto possa comprazer-te em França.
Não sei porque te escrevo.
Vejo bem que apenas terás compaixão de mim,
e eu não quero a tua compaixão.
Enojo-me de mim própria quando reflicto em tudo
que te sacrifiquei.
Perdi a reputação.
Expuz-me á maldição dos meus, á severidade das
leis d'esta terra para com as religiosas, á tua in-
gratidão, que m.e parece a maior das desgraças.
E comtudo sinto implacavelmente que os meus
remorsos não são sinceros, que eu quereria do
fundo d"alma ter por amor de ti affrontado maiores
perigos^ e que me assoberba um prazer funesto em
ter aventurado a minha vida e a minha honra.
279
Tudo quanto tinha de mais precioso não deveria
pol-o á tua disposição?
Dize se não devo sentir-me bem satisfeita por
tel-o empregado como fiz.
Parece-me até que ainda não estou contente com
as minhas penas e com o excesso do meu amor,
embora, coitada de mim ! não possa fazer conta de
que esteja contente de ti.
Vivo. . ., infiel que sou! e faço tanto para con-
servar a vida como para a perder.
Ai, morro de vergonha ! . . . mas então o meu
desespero está só nas minhas cartas?!
Se te amasse ^tanto, tanto como te hei dito mil
vezes, não estaria morta de ha muito?
Tenho-te enganado.
Tu é que deves queixar-te de mim. Ai, porque
não te queixas, meu amor?!
Vi-te partir, não posso esperar que te veja vol-
tar, e comtudo respiro!
Atraiçoei-te.
Imploro-te que me perdões.
Mas, não; não me perdoes, supplico-te.
Trata-me duramente.
Não te pareça que os meus sentimentos sejam
bastante violentos.
Sê mais difficil de contentar.
Dize-me que queres que eu morra de amor por ti.
Exoro-te a que me dês este soccorro para que eu
vença a fraqueza do meu sexo e acabe com todas es-
tas irresoluções por um acto de verdadeiro desespero.
280
Um fim trágico obrigar-te-ha a pensar muitas ve-
zes em mim.
A minha memoria ser-te-ha cara, e commover-
te-lia porventura esta morte extraordinária.
Não vale mais do que o estado a que me redu-
ziste?
Adeus.
Como eu quizera nunca te haver visto!
Triste de mim! que sinto vivamente a impostura
d'esta idéa, e conheço, mal a exprimo, que estimo
bem mais ser desventurada, amando-te, do que não
te haver visto jamais!
Resigno-me, pois, sem murmurar, ao meu mau
destino, porque foste tu que não quizeste fazel-o
melhor.
Adeus. ,
Promette-me lastimar-me carinhosamente se eu
morrer de magua, e que ao menos a vehemencia
da minha paixão te dê o desgosto e a repulsão de
tudo.
Esta consolação me basta, e se é fatal que para
sempre te abandone, quizera ao menos não te dei-
xar a outra.
Não serias refinadamente cruel se te servisses do
meu desespero para te fazeres mais amado, e para
te vangloriares de ter incendido a maior paixão que
houve no mundo?
Adeus, mais uma vez.
Escrevo-te cartas muito longas, sei.
Não tenho attenção comtigo.
284
Peço -te que me perdões e ouso esperar que te-
rás alguma indulgência para com uma pobre louca,
que o não era, sabes bem! antes que te amasse.
Adeus.
Parece-me que te falo de mais d'este estado in-
supportavel em que me encontro.
Mas agradeço-te, do fundo do coração, as mor-
tificações qne me causas, e aborreço a tranquilli-
dade em que vivia antes de conhecerte ^
Adeus.
A minha paixão cresce okcada instante.
Ai, quantas cousas tinha a dizer-te ainda !
IV
Certo, que é uma grande violência que faço aos
sentimentos do meu coração, diligenciar ainda, es-
crevendo-te, fazer-t'os comprehender.
Gomo eu fora feliz se bem os podesses avaliar
pela vehemencia dos teus!
Mas não posso fiar-me em ti, e não posso tam-
bém deixar de dizer-te, bem menos vivamente do
1 — < . . . porque o mortificar-se era gosto para seu coração,
& o padecer, allivio para a sua alma«. Desp. do Esp., ete.
2 É a 2.^ das outras edições.
282
que sinto, que não devias mortificar-me tanto, com
este esquecimento que me enlouquece e que é até
uma vergonha para ti.
É muito justo, ao menos, que atures os lamen-
tos d'esta desolação que eu previ logo, vendo-te re-
solvido a deixar-me.
Sei muito bem que me illudi pensando que te-
rias para commigo um proceder mais leal do que é
costume, porque, em summa, o excesso do meu
amor parece que me devera pôr acima de todas e
quaesquer suspeitas e que merecia mais fidelidade
que a de ordinário se encontra.
Mas a disposição em que estavas de me trahir,
venceu a justiça que devias a quanto fiz por ti.
Não deixaria de ser malaventurada se me amas-
ses apenas por eu te amar.
Quizera dever tudo, somente, á tua expontânea
inclinação.
Mas como estou longe d'isto, que até são passa-
dos seis mezes sem receber de ti uma só carta !
Attribuo todos estes infortúnios á cegueira com
que me abandonei a amar-te.
Não devera prever que as minhas deleitações
acabariam mais cedo do que o meu amor?
Poderia esperar que ficasses toda a vida em Por-
tugal e que renunciasses á tua fortuna e *io teu
paiz para só cuidares em mim?
As minhas penas não podem ler allivio, e a lem-
brança de quanto gosei enche-me agora de deses-
pero.
283
Pois todos os meus anhelos serão malogrados, e
nunca mais te verei no meu quarto, em todo aquelle
ardor, com todo aquelle arrebatamento que mos-
travas?!
Coitada de mim que me illudo, e que demais co-
nheço agora que todos aquelles enlevos que me ene-
briavam a cabeça e o coração eram em ti apenas
excitados por alguns prazeres, e logo se extinguiam
com elles.
Fora necessário que n'esses momentos de su-
prema felicidade, eu podesse implorar em meu soc-
corro a razão para moderar o funesto excesso das
minhas delicias e para que me fizesse antever quanto
padeço agora.
Mas entregava-me toda, a ti, meu amor, e não
me achava em condição de cuidar no que teria de
envenenar o meu contentamento, quando gostava
plenamente as mostras ardentes da tua paixão.
Deleitava-me muito sentir-te commigo para que
pensasse em que um dia te apartarias de mim.
Lembra-me, comtudo, de te haver dito algumas
vezes que me fazias desgraçada, mas estes terro-
res desvaneciam-se, rápidos, e sentia gosto em sa-
crificar-fos, abandonando me ao encanto e á alei-
vosia dos teus protestos.
Vejo claramente qual poderia ser o remédio para
todas as minhas penas.
D'ellas me livrara, logo que deixasse de te amar.
Mas ai de mim! que remédio!. . .
Não. Prefiro sofifrer mais ainda do que esquecer-te.
284
E depende isto de mim?
Se nem posso reprehender-me de ter imaginado,
um momento que fosse, não continuar a amar-te I...
Que ainda mais digno de dó és tu, do que eu,
porque mais vale penar quanto soffro, do que go-
sar os languidos prazeres que hão de dar-le as tuas
amantes de França.
Não invejo a tua indifferença, e fazes-me lastima.
Desafio-te a esquecer-me inteiramente.
Prézo-me de te haver posto em estado de não te-
res, sem mim, senão prazeres imperfeitos, e sou
mais feliz do que tu porque mais occupada ando
d'este amor.
Fizeram-me, ha pouco, porteira do convento.
Todas as pessoas que me falam, julgam-me louca.
Não sei o que lhes respondo, e é necesario que as
freiras estejam tão doidas como eu para me julga-
rem capaz d'algum emprego.
Gomo invejo a sorte de Manoel e de Francis-
co!... *
Porque não estou eu, como elles, sempre com-
tigo?
Haver-te-hia seguido, e certo, haver-te-hia ser-
vido mais extremosamente.
1 — «Deux petits laquais Portugais» — notam as primeiras
edições. No termo de dotação para clérigo, de Balthasar Al-
coforado, em 1669, e no testamento de Peregrina em 1676,
appareee como testemunha um Manoel Jorge, creaio d'aquelle
e depois de Miguel da Cunha Alcoforado.
285
Nada appeteço n'esle mundo, senão ver-te.
Ao menos, lembra-te de mim.
Contento-me com a tua lembrança, mas nem te-
nho a certeza delia!
Não limitava a tão pouco as minhas esperanças,
quando te via todos os dias,. . . ensinaste-me bera
a submetter-me a tudo quanto queres.
Não me arrependo, comtudo, de te haver ado-
rado.
Regala-me que me seduzisses.*
A tua ausência rigorosa, talvez eterna, não di-
minue em nada a violência do meu amor.
Quero que toda a gente o saiba; Ucío faço d'elle
mysterio; preso-me de ter feito tudo o que fiz, por
ti, contra toda a espécie de decoro.^
1 Heloísa, a abbadessa do Paracleto, escrevia também : —
«Pour moi, qui ai trouvé tant de plaisir àvous aimer, je sens
bien. malgré moi, queje ne pour r ai jamais me repentir de 1'avois
gonté, ni cesser d'en jouir autant qu'il m'est possible, en les
rappelant dans ma mémoire. . .
«Dans le lieux les plus saints, jusqu'aux pieds des autels,
je porte le souvenir criminei de nos plaisirs passes, j'en fais
toujours mon occiípation, et loin de gémir de m'ètre laissée sé-
duire, je soupire de les avoir perdus ...»
2 Vid. nota anterior a respeito de Heloísa,
E Marianna da Purificação, a mystica contemporânea da
Alcoforado; escrevia: — «He tão grande o fogo que arde em
meu peito, que me parece me sinto estar ardendo, sem poder
valer-me, e desejo deitar de mim todas as roupas, e assim ando
adyando, e desejando voar por esse mundo a apregoar este
amor, que com tanta força arde em meu peito e coração».
286
Em nada mais faço consistir a minha honra e a
minha religião do que em amar-te perdidamente,
toda vida, já que comecei a amar-te.
Não te digo estas coisas para te obrigar a escre-
ver-me.
Ai não te constranjas!
Não quero de ti senão o que expontaneamente
venha, e regeito todas, todas, as mostras de amor
a que possas escusar- te.
Sentirei gosto em desculpar-te porque talvez te-
nhas prazer em não te dares ao incommodo de es-
crever-me, e sinto uma profunda disposição para
te perdoar todas as faltas.*
Um oílicial francez teve a caridade de me falar,
esta manhã, de ti, por mais de três horas.
Disse-me que a paz de França estava feita. ^
Sendo assim não poderias vir ver-me, e levar-me
para França?
Mas não o mereço. Faze o que te aprouver.
O meu amor não depende já da maneira por que
me tratares.
Desde que partiste não tive um só momento de
saúde, nem sinto allivio senão em repetir o teu nome
mil vezes ao dia.^
1 Andava já aquella alma tão cheia de desejos de padecer
que o achar que padecer era ter de que gostar. Desp. do Esp.
2 A que pôz termo á guerra da devolução, e foi sanecionada
pelo tratado de 2 de maio de 1668.
3 — «Filha, a tua enfermidade não a sabem curar as creatu-
ras, eu só te posso curar». — Callemos agora aqui outras pa-
287
Algumas freiras que sabem o estado lastimoso
era que me lançaste, falam-me de ti muitas vezes.
Saio o menos possível do meu quarto • onde tan-
tas vezes viesie, e estou sempre a contemplar o
teu retrato que me é mil vezes mais querido do
que a vida.
Dá-me isto algum allivio mas dá-me também muita
magoa, quando penso que talvez não te veja mais.
Como será possível que não torne a ver-te ?!
Abandonar-me-hias para sempre?
Mata-me esta idéa.
A tua pobre Marianna não pode mais.
Sinto-me desfallecer ao acabar esta carta.
Adeus. Adeus.
Tem piedade de mim.
lavas, que o Divino Amante lhe disse, que como se escreve
isto para os olhos de todos não é razão esponhamos a que in-
terprete mal as palavras de Deus algum entendimento menos
versado nas coisas do espirito. Concluiu o Senhor a sua pra-
tica, declarando á serva: Que aquella doença que padecia,
era força & eífeito de amor. Não vês (foram as ultimas razões)
que te feri hum dia de amor & causou em ti tal eífeito que
bastou para enfermarte?» Desp. do Esp.
1 O texto francez diz sempre chambre. Filinto tem o cuidado
de traduzir umas vezes quarto e outras aposento. Sousa Bo-
telho começa a traduzir cella, e o erro — porque realmente o
é, — generalisou-se. Se a religiosa tivesse escripto cella, o tra-
ductor francez saberia encontrar o correspondente exacto.
Como já expozemos atraz, as Alcoforados não tinham cellas
tinham casas.
288
Escrevo-lhe pela ultima vez e espero fazer-lhe
perceber na differença dos termos e na maneira
d'esta carta/ que logrou convencer-me, finalmente,
de que não me amava já, e que assim, também,
devo deixar de o amar.
Enviar-lhe-hei, pois, pelo primeiro portador que
haja, quanto de si me resta.
Não receie que lhe torne a escrever.
Nem serei eu quem escreva o seu nome na en-
commenda.
Encarreguei de tudo D. Brites.
A bem diíferentes confidencias a habituara eu...
Os cuidados d'ella ser-me-hão menos suspeitos
do que os meus.
Ella tomará as precauções necessárias para que
eu fique certa de que o senhor recebeu o retrato e
as pulseiras que me dera.
Quero porém que saiba que me sinto ha dias
perfeitamente disposta a queimar e a despedaçar
1 Vid. pag. 245 e respectiva nota acerca do tratamento ado-
ptado.
289
todos os penhores do seu amor, que tão queridos
me eram.
Tenho-lhe revelado tanta fraqueza que natural-
mente não acreditara que eu podesse tornar-me
capaz d'esse extremo, não é verdade?
Prefiro pois gcstar toda a peoa que tive em se-
parar-me d'elles, e fazer-lhe sentir, ao menos, este
pequeno despeito.
Confesso-lhe, para vergonha minha e sua, que
me achei mais presa, do que quero contar-lhe, a
estas bagatellas, e que senti que me eram nova-
mente precisas todas as minhas reflexões para me
separar de cada objecto, quando mesmo, me com-
prazia de não me|importar já comsigo.*
Mas, em summa, com tão boas razões como as
que lhe devo, consegue-se sempre chegar ao cabo
do que se quer. . .
Puz tu do nas mãos de Dona Brites. Quantas la-
grimas me custou isto ! . . .
Depois de mil penas e mil contradições, que não
1 O texto francez diz : — «Je vous avoíie à ma houte & à la
vôtre, que je me suis trouvée plus attachée que je ne veux
vous le dire à ces bagatelles», etc.
Filinto traduz: — «Com vergonha minha t'o confesso, que
me sinto, mais do que eu quizera, aífeiçoada a essas ninha-
rias, e que precisava de todas as mingas reflexões, para me
descartar d'ellas uma por uma no instante mesmo em que eu
me dava por desnamorada de ti».
Será castiço e galante, mas advinha-se a pitada de rapé fun-
gada pachorrentamente pelo purista, torneando o periodo.
F. 19
290
imagina e de que certamente não lhe darei conta,
exorei d'esta que não me falasse mais n'aquelles
objectos, que m'os não tornasse a dar, ainda que
eu liie pedisse para os contemplar outra vez, e que,
emfim, llios enviasse sem me prevenir sequer.
Não conheci bem o excesso do meu amor senão
quando quiz empregar todas as diligencias para me
curar d'elle, e creio que nem ousaria tental-o se ti-
vesse podido prever tantas difficuldades e tamanha
violência.
Estou convencida que sentiria moções menos pe-
nosas, amando-o, ingrato como é, do que deixan-
do-o para sempre.
Vi que me era menos caro do que a minha pai-
xão, e tive magoas desconformes em combatel-a,
depois aiiída que os ruins procedimentos do senhor
o tornaram para mim odioso.
O orgulho natural do meu sexo não me ajudou a
tomar quaesquer resoluções contra si.
Triste de mim í
Soffri os seus despresos; houvera supportado a
sua aversão ; devorara commigo o ciúme que me
tivesse inspirado a sua aíTeição por outra.
Ao menos, sentir-me-hia aíTrontada por um sen-
timento vivo! . . .
Mas a sua indifferença é-me insupportavel.
Os seus impertinentes protestos de amizade, e
as ridículas finezas da sua ultima carta, fizeram-
me ver que o senhor recebera todas as que lhe es-
crevi, e que nenhuma impressão lhe causaram.
291
E. . . leu-as. . .
Ingrato !
Muito doida sou em amofinar-me ainda por não
poder regosijar-me de que não lhes tivessem che-
gada ás mãos; de que não lh'as tivessem entregue!
Abomino a sua franqueza.*
Pedi-lhe porventura que me dissesse sinceramente
a verdade?
Porque não havia de deixar-me a minha paixão?!
Bastava que me não escrevesse.
Não me era suíTiciente a desgraça de não ter po-
dido obrigal-o a ter algum trabalho em enganar-
me,. . . e de já não poder desculpal-o?. . .
Saiba que me convenço de que é indigno de to-
dos os meus sentimentos, e que agora conheço to-
das as suas ruins quahdades.
Mas se quanto fiz pelo senhor pode merecer-lhe
que tenha alguma consideração pelos favores que
lhe peça, imploro lhe que não torne a escrever-me,
6 que me ajude a esqudcel-o inteiramente.
1 O texto franeez diz : « Je deteste votre bonne foi, vous
avois je prié de me mander sincerement la verité, que ne me
laissiez vous ma passion», etc.
Filinto que conhecia mais as finezas do estylo do que as
do amor, traduziu desleixadamente :
«A tua boa fé I E oh quanto a detesto eu ! O que eu só te
pedia era que me escrevesses com sinceridade. Porque me não
deixavas entregue ao meu aífecto?»
Um disparate. Melhor comprehendeu Sousa Botelho :
«Detesto a tua lhaneza... Porventura tinha-te pedido de
me participares singelamente a verdade ? . . . »
19#
292
Se mostrasse, frouxamente que fosse, que tivera
algum pesar em ler esta carta, . . . poderia talvez
acredital-ol. . .
Talvez também a sua confissão e o seu contricto
abalo me fizessem pena e me incitassem,. . . e tudo
poderia inflammar-me de novo.
Por piedade lhe peço que não se importe cora a
minha vida. Destruiria, sem duvida, todos os meus
projectos, de qualquer forma que quizesse intro-
metter-se n'ella.
Não quero saber o resultado d'esta carta. Não
perturbe o estado que me preparo.
Parece-me que pode dar-se por satisfeito com os
males que me causou, fosse qual fosse o intento
que formara de me desgraçar.
Não me arranque á minha incerteza. Espero fa-
zer d'ella, com o tempo, alguma coisa parecida com
a paz do coração.
Prometto-lhe não o odear. Desconfio muito de
sentimentos violentos para que me aventure a esse.
Não duvido de que encontrasse n'esta terra um
amado mais fiel,... mas quem poderá fazer-me
amar?!
Poderá acaso enlevar-me a paixão de outro ho-
mem? Que poude no senhor a minha?. . .
Não experimentei já que um coração amante nunca
pode esquecer o que primeiro lhe revelou os trans-
portes de que era susceptível e que não conhecia?
— que todas as suas intimas moções ficam enlea-
das no Ídolo que para si creou? — que as suas pri-
293
meiras idéas e que as suas primeiras feridas não
podem curar- se e esquecer? — que todas as paixões
que se oíTereçam em seu soccorro e que forcejem
por enchel-o e reanimal-o, lhe promettem vãmente
uma sensibilidade que elle não pode rehaver mais?
— que todas as deleitações que busca, sem nenhum
desejo de as encontrar, servem apenas para fazer-
Ihe sentir profundamente que nada é tão caro co-
mo a lembrança das suas penas ?f
Porque me fez conhecer a imperfeição e os amar-
gores de um affecto que não deve durar eternamen-
te, e os tormentos que acompanham um amor vio-
lento quando não é reciproco?
E porque é que uma inclinação cega e um destino
cruel se afervoram de ordinário em determinar-nos
por aquelles que só a outras seriam sensíveis?
Quando mesmo podesse esperar qualquer recrea-
ção em novas relações, e que encontrasse um co-
ração leal que me quizesse, tenho tanto dó de mim
própria que sentiria grandes escrúpulos em lançar
o homem mais infimo no estado a que o senhor me
reduziu . . .
E embora não tenha que lhe guardar respeitos,
não poderia resolver-me a uma desforra tão crua,
quando mesmo ella dependesse de mim, por uma
mudança que não prevejo.
Procuro n'este momento desculpal-o, e compre-
hendo bem que uma freira não é nada amável, de
ordinário.
Parece-me comtudo que se os homens podessem
294
ter mão na razão quando escolhem os seus amores,
mais se inclinariam a ellas do que ás outras mu-
lheres.
Nada as impede de pensar incessantemente na
sua paixão; não as distrahem mil coisas que no sé-
culo absorvem e consomem os corações.
Quer-me parecer que não será muito agradável
ver as amadas, sempre dislrahidas por mil frivo-
lidades, e é preciso ter bem pouca dehcadeza de
alma para soíTrer sem raiva que ellas não falem se-
não de reuniões, de atavios, de passeios.
Està-se, sem cessar, exposto a novos ciúmes,
porque, emfim, ellas são obrigadas a attenções, a
complacências, a conversas com todos.
Quem pode assegurar que não sintam prazer al-
gum em todos esses lances, ou que soffram sem-
pre desgostosas e de má vontade os maridos?!...
Ah! como ellas devem também desconfiar de um
amante que não lhes toma conta rigorosa de tudo,
e que acredita, facilmente e sem mquietação, o que
lhes dizem; — que tranquilla e confiadamente as vê
sujeitas a todos aquelles deveres da sociedade!
Mas não intento provar-lhe com boas razões que
deveria amar-me. Péssimos meios são, e bem me-
lhores empreguei eu que não me aproveitaram!...
Conheço muito bem o meu destino para diligen-
ciar vencel-o.
Serei infeliz toda a minha vida.
Não o era já quando todos os dias o via?
Morria de susto de que não me fosse fiel.
295
Queria vel-o, todos os momentos, e não era pos-
sível.
Atribulava-me o perigo que o senhor corria en-
trando no convento.
Não vivia quando estava na guerra.
Desesperava-me por não ser mais formosa e mais
digno do senhor.
Murmurava da modéstia da minha condição.
Receiava muitos vezes que a affeição que parecia
ter por mim podesse de algum modo prejudical-o.*
Parecia-me que o não amava bastante.
Atemorisava-me, por si, a cólera dos meus pa-
rentes.
Estava, emfim, n'um estado tão lamentoso como
aquelle em que hoje vivo.
Se me tivesse dado algumas provas da sua pai-
xão depois que se foi de Portugal, teria eu feito to-
dos os esforços por sahir d'aqui.
1 As phrases francezas são :
— nje murmurais contre la médiocrité de ma condition; je
croyais souvent que Tattachement, que vous paraissiez avoir
pour moi, vous potirrait faire quelque íort».
Filinto Elysio traduziu: — «murmurava da minha mediana
fidalguia, dava-me temores crer que te seria nociva a affeição
que me mostravas t, ]
Sousa Botelho interpretou: — «murmurava contra a medio-
cridade da minha tondição ; imaginava muitas vezes que o amor
(jue parecias ter por mim poderia de algum modo prejudicai'-
teo.
E o sr. Theophilo Braga: — «Eu murmurava contra a me-
diocridade da minha condição, julgava muitas vezes que a af-
296
Ter-me-hia disfarçado para ir ter com o senhor.
Ai, que teria sido de mim se não se tivesse im-
portado commigo quando eu chegasse a França!...
Que escândalo! que desatino! que cumulo de
vergonha para a minha família, que me é tão cara
depois que o não amo, ao senhor!
Já vê que a sangue frio conheço como era pos-
sível ser ainda mais desgraçada do que me fez!
Falo-lhe razoavelmente; ao menos, uma vez na
vida.
Como deve agradar-lhe esta moderação ! . . .
Como deve agora ficar contente commigo!.. .
Não quero sabel-o.
Pedi-lhe já que não me escreva, e peço-]h'o ou-
tra vez.
Nunca consideraria, um pouco, na maneira por
que me tratou?. . .
feição que parecia terdes por mim vos causaria algum desai-
re».
E J. Ennes: — «revoltava-rae contra a mediocridade do meu
nascimento, pensava também que a nossa ligação vos poderia
causar prejuizo».
Para nós aquella «mediocridade de condição >> allude, sim-
ples e naturalmente, á condição de freira, e de freira francis-
cana, de uma pequena cidade da província, o que nos parece
bem mais natural e conforme com as revelações dos docu-
mentos do que attribuil-a á inferioridade de^iascimento e de
fidalguia. Tão fidalgos, senão mais do que os Bouton, eram
os Alcoforados, e nem como freira e franciscana Marianna
deixou de usar o Dom, que então era ainda uma caracterís-
tica genealógica.
297
Não pensaria, nunca, era que me deve mais obri-
gações do que a ninguém no mundo ? 1
Amei-o, doidamente.
Como despresei tudo ! . . .
O seu procedimento não é de um homem de
bem.
É preciso que tivesse por mim uma aversão na-
tural para que não me amasse perdidamente.*
Deixei-me fascinar por bem somenas qualidades.
Que fizera o senhor que devesse encantar-me?
Que sacriíicios praticou por mim?
i O texto francez diz :
— «Votre procede n'est point d'un honnête homme. II faut
que vous ayez eu pour moi de Taversion naturelle, puisque
vous ne m'avez pas aimé, éperdument*.
Filinto traduz garridamente : — «Não procedes como honrado,
e demostras acerca de mim natural aversão, pois que ás per-
didas me não arnaste».
Sousa Botelho: — «O teu procedimento não é de um homem
honrado ... A não teres tido aversão natural para mim, era
forçoso que me amasses, descomedidamente».
O sr. Theophilo Braga: — «O vosso procedimento não é de
um homem capaz».
E o sr. Pinheiro Chagas: — «O vosso procedimento não è
de homem de prol. Por força que me consagraes uma natural
aversão, logo que me não amaes loucamente».
J. Ennes: — •■'Não vos dá honra o vosso procedimento, é ne-
cessário que eu vos inspire uma aversão natural, senão seria
forçoso que vos inspirasse um louco amor».
Mas porque não havemos de traduzir litteral e chãmente a
phrase ?
Cremos que é a melhor maneira de nos approximarmos do
298
Não procurava mil outros prazeres?
Renunciou, acaso, ao jogo e á caça?
Não era o primeiro a partir para a guerra e não
era o ultimo a voltar d'ella?
Expunha-se loucamente, por mais que eu lhe ti-
vesse pedido que por amor de mim se poupasse.
Não procurou os meios de ficar em Portugal,
onde era estimado.
Uma carta de seu irmão fel-o partir, sem hesitar
um momento.
E não sube eu que durante a viagem conservou
a melhor disposição do mundo?
É forçoso confessar que devia odial-o mortal-
mente.
Ai, fui eu, bem sei, que sobre mim attrahi todas
estas desgraças ! . . .
original, com tanta mais razão que na versão franceza se adi-
vinha em cada linha o esforço de verter palavra a palavra
esse original, e que o próprio movimento, a própria situação
psychica que na carta se espelha, é a de uma comprehensão
viva, profunda, de um proceder vil, infame, da parte do se-
duetor. Já nas cartas anteriores se revela mais de uma vez
que á fina e intelligente sentimentalidade da religiosa não pas-
sara desapercebida a curta intelligencia e os grosseiros senti-
mentos do amante, A preoccupação litteraria dos traductores
enfraquece e esbate a apostrophe indignada da religiosa. O
que ella sente, e o que ella n'uma explosão da sua consciên-
cia revoltada lhe diz, é que o procedimento d'elle é baixo,
despresivel, indigno. A phrase é mais uma bofetada do que
um lamento. O sangue e a prosápia dos Alcoforados, ou mais
propriamente a fina e intelligente sentimentalidade da mulher
relampea na desolada humilhação da freira.
299
Costumei-o logo a uma grande paixão, com ex-
cessivo ingenuidade, e é necessário artificio para
nos fazermos amarl*
É necessário procurar com geito os meios de in-
flammar: — o amor, por si, apenas, não gera o
amor.
O senhor fez melhor: — queria que eu o amasse,
e como formara este desígnio nada haveria que não
fizesse por conseguil-o.
Ter-se-hia até resolvido a amar-me, se tivesse pre-
cisado dMsso!. . .
Mas reconheceu bem que podia vencer esta em-
preza, sem paixão, e que não tinha necessidade
d'ella.
Que perfídia!
Julgou então que havia de impunemente enga-
nar-me? f
Pois se algum acaso o trouxer de novo a esta
terra, declaro-lhe que o entregarei á vingança dos
meus parentes.^
1 Filinto: — «. . . desde logo te acostumei a uma desmedida
aíTeição (e de tão boa fé!) Arte é precisa para se dar a que-
rer», etc. Preferimos a retraducção litteral: — »il faut de l'ar-
tiíice pour se faire aimer», etc.
2 Esta phrase suggere ao sr. Theophilo Braga uma idéa que
sem querer nos parece injusta. Diz elle:— «A abandonada re-
ligiosa tem alma peninsular; queria ver sangue em castigo de
tamanha traição. EUa ameaça-o com o pvnhalo.
Com o que ella o ameaça, suppondo que sinceramente o
ameaça, é com a vingança dos seus. Certo, pode bem dizer-
300
Vivi longamente num abandono e n'uma idola-
tria que me faz horror, e os meus remorsos per-
seguem-me com um furor insupportavel.
Sinto vivamente a vergonha dos delidos que o
senhor me fez commetter, e não tenho, ai de mim!
a paixão que me impedia de conhecer-lhes a enor-
midade í *
Quando será que o meu coração deixará de ser
dilacerado?
Quando será que me verei livre d'est6 tormento
cruel?
E comtudo, creia que não lhe desejo mal, ao se-
nhor, e que me resolveria a consentir que fosse
feliz.
Mas se tem uma alma bem formada, como o po-
derá ser?
Quero escrever-lhe outra carta para lhe mostrar
que estarei talvez mais tranquilla dentro em pouco.
se, como o illustre eseriptor: — «o instincto fidalgo dos Alco-
forados renascia«. Mas esse instincto ou essa fidalguia Ucão
usava punhal, usava espada, já o observamos.
1 «Quão perigosos sejam os annos da mocidade, & quão ex-
postos a ruins espirituaes, o mesmo Deos o publicou no sa-
grado Texto quando disse que não havia de mandar outro di-
luvio á terra : Porque os sentidos, & imaginação do género
humano são inclinados para o mal desde a sua mocidade. Da-
vid também falando com o Senhor, lhe dizia : Dos delictos de
rainha mocidade, & minhas ignorâncias vos não lembreis Se-
nhor, mostrando que estes annos são de ignorância cheyos,
& muy sngeita a delictos a mocidade». {Desp. do Esp.)
301
Como hei de regalar-me em poder lançar-lhe em
rosto o seu procedimento injusto, quando elle me
não mortificar já tão vivamente; em llie mostrar que
o despreso; que falo com profunda indiíTerença da
sua traição; que esqueci todos os meus prazeres e
todas as minhas dores, e que não me lembro do
senhor, senão... quando quero lembrar- me!
Reconheço que me leva grandes vantagens, e que
me fez uma paixão que me enlouqueceu; — mas
também, pouco deve envaidecer-se por isso.
Eu era moça, era crédula,* tinham-me encerrado
desde creança n'este convento; não vira senão gente
desagradável; nunca ouvira as .lisonjas que o se-
nhor constantemente me dizia; parecia-me dever-
Ihe os attractivos e a belleza que me achava, e em
que me fazia reparar; ouvia dizer bem de si; toda
a gente me falava em seu abono,. .. e o senhor
tudo fazia para me despertar amor.
Mas, emfim, tornei a mim d'este encantamento;
1 «... j'étois jeune, j'étois credule, on m'avois enfermée
dans ce Convent depuis mon enfance. . .»
Filinto traduz: — «Eu moça, eu crédula, encerrada desde a
infância n'um mosteira, habituada a ver gente desaprazivel,
nova nos louvores que me davas de continuo, julgava que a
ti devia os attractivos e a formosura. . .»
E Sousa Botelho : — «Era joven, era crédula, tinham-me en-
cerrado desde a infância n'este convento ...»
Marianna Alcoforado, que já em 1660, aos 20 annos, era
freira professa, naturalmente professara ao 16 e fora confiada
ao convento muito antes ainda.
302
grandes auxílios me deu para isso, e confesso-lhe
que tinha d'elles uma extrema necessidade.
Devolvendo-lhe as suas cartas, conservarei cui-
dadosamente as duas ultimas que me escreveu, e
hei de relel-as mais ainda do que li as primeiras
para não tornar a recahir nas minhas fraquezas.
Ai, como estas me custam caras, e como eu seria
feliz se o senhor tivesse consentido em que conti-
nuasse a amal-ol
Sei, certo, que me occupo demais ainda com as
minhas queixas e com a sua infidelidade; lembre-
se, porém, que a mim própria prometti um estado
mais tranquillo, e que hei de conseguil-o, ou to-
marei contra mim uma resolução desesperada que
poderá saber sem grande pezar!. . .
Mas nada mais quero do senhor.
Sou uma doida em repetir as mesmas coisas tan-
tas vezes.
É mister que o deixe e que não pense mais em
si.
Creio até que não tornarei a escrever-lhe.
Tenho alguma obrigação de lhe dar conta da mi-
nha vida?
BIBLIOGRAPHIA
L E T T R E S
DA M O U R
D*UNE
RELIGIEUSE
Efcritcs au
jCHEVALIER de C
Officitr Fritnais en
Portugal.
A COLOGHE,-
Chcz Picrre du Martcaa,
cl9 19 € Lzzx.
1) Lettres/ PORTVGAISES/TEADVITES/EN FBAJS-
ÇOISJ
(vinheta representando um cesto de flores)
A PABíSjChez Clavde Barbin, au/PalaiSj snrlle
second Pen-on/de la sainte Chapelle. /m.dc.lxíx./
Avec Privilege du Roy./
(In-ia." 3 ff. pr. 182 ps.)
Exemplar da Bibliotheca Nacional de Paris (Res. Z. 989),
encadernado a vermelho, com applicações em doirado, e a
seguinte designação na lombada: — Lettr/Portv/
Segundo amáveis communicações dos respectivos biblio-
theearios, existem também exemplares nas Bibl. Pub. de
Dijon e Centr. Vittorio Emanuele, de Roma.
O prefacio, em itálico, diz assim:
«Ao leitor. — Encontrei os meios, com muito cuidado e
trabalho, de obter (recouuer) uma, copia correcta datraduc-
ção de cinco Cartas Portuguezas, que foram escriptas a um
gentilhomem de qualidade que serviu em Portugal. Tenho
visto todos os que se teem por entendidos em sentimentos
ou louval-as, ou procural-as com tanto interesse que jul-
guei que lhes faria um singular prazer imprimindo-lh as.
Não sei o nome d'aquelle a quem foram escriptas, nem o
F. 20
306
de (juem fez a traducção d'ellas^ mas pareceu-me que não
devia desagradar-lhes tornando-as publicas. É difficil que
não viessem a apparecer, era fim, com faltas de impressão
que as disfigurassem.»
Logo na pagina seguinte começam as Cartas, cuja ordem,
posto que conhecida, indicaremos, aqui, a titulo de curio-
sidade.
Pbemiere/Lettre — Considere, mon amour, jusguà quel
excez tu as manque de preuoyance. Ah mal-heureux I
tu as ésté trahy, etc.
Seconde Lettre — lime semble que je fais le plus grãd tort
du monde aux sentimès de mon cceur de tascher de
vous les faire connoislre en les écriuant: quejeserois
heureuse si vous en pouuiez hiè iuger par la violence
des vostres I etc.
Troisiesme Lettre — Qv'est-ce queje deuiendray & qu'est-ce
que vous voulez que ie fasse ?
QvATRiiíSME Lettre — Vostre Lieutenant vient de me dire,
qu'vne tempeste vous a obligé de relascher au fíoyaume
d'Algarne: etc.
CiNQViESME Lettre — Ie vous ècris pour la derniere fois , &
f espere vous faire connoUre par la difference des ter-
mes, & de la maniere de cette Lettre^ que vous m'auez
enfin persuadée que vous ne m^aymiez plus, &qu'ainsi
je ne dois plus vous aymer: etc.
Como expozemos atraz, cremos que na copia ou na im-
pressão houve troca de duas cartas, a 2.* e a 4.*
Em seguida a esta, e em pagina innumerada, lê-se o —
(í Extracto do Privilegio do Heiy — que diz assim:
— «Por Graça & Privilegio do Rei, dado em Paris, no
28° dia de outubro 1608. Assignado pelo Rei no seu Con-
selho, Margerèt. É permittido a Cláudio Rarbin, Mercador
Livreiro, faser imprimir um Li^ro intitulado, Lettres Por-
307
tugaises, durante o tempo éc espaço de cinco annos. E fica
prohibido a todos os outros, imprimil-o sob pena de qui-
nhentas libras de multa, de todas as custas, perdas e ga-
nhos como é mais amplamente exarado nas ditas Cartas de
Privilegio.»
Seguem-se as declarações :
— 0. Acabado de imprimir pela primeira vez em 4 de ja-
neiro 1669. — Foram apresentados os exemplares. — Regis-
tado no Livro da Communidade dos Mercadores Livreiros
& Impressores doesta Cidade, segundo & conformemente ao
Arresto do Tribujial do Parlam,ento de 8 ahril 1653, com os
encargos e condições exaradas no presente Privilegio. Feito
em Paris, em 17 novembro 1668. — Sovbron, Syndico.»
Devemos ao nosso amigo e estimado escriptor, sr. Ma-
rianno Pina (Paris), esta descripção do exemplar da Biblio-
theca Nacional, que solicitámos da sua cavalheirosa amabi-
lidade.
2) Lettres I d'amour I d\ne religieiíse / escrites au/Chevalier
de C./Officier Francois en/ Portugal. — (Esphera).
A Cologne. Chez Pierre du Marteau. cioioclxix.
(In-12.° 50 ps.)
Exemplar até hoje absolutamente desconhecido de todas
as bibliographias, pertencente á bibliotheca do sr. Bernar-
dino Ribeiro de Carvalho. É a ultima obra de um volume
encadernado em pergaminho e que contém além d'ella, as
seguintes :
— Histoire de la vie de la Reyne Christine de Suède.
(Esphera). A Stocholm — Chez Jean Pleyn de Courage.
Lxxvii — (Com retrato)— 212 ps.
— Damon & Pythias ou le triomphe de TAmour et de
l'Amitie — Tragicomedie — A Amsterdam — Pour Jean Ra-
vesteyn mdclvh (Dedicatória assignada Chappuzeau) 56 ps.
— Pulcherie. Comedie heroique, par P, Gorneille. Sui-
vant la copie imprimée. — A Paris — cioicoLxxm — 71 ps.
Journal du Journal ou censure de la censure & — (Es-
phera)— A Utrech — Chez Pierre Elzevier — m.dc.lxx —
Ps. 39.
20 #
308
Secondejournaline de Mr. Le Fevre — (Esphera) A Utrech
— Chez Pierre Elzevier — mdc.lxx. — Ps. 75.
Uescole des maris. Comedie de J. B. P. Molière. . . Re-
presentée sur le Théatre du Palais Royale. A Paris — Chez
Claude Barbin, dans la grand Salle du Palais, au Signe de
la Croix. M.DC.Lxii — 69 ps.
— Tite et Titus ou critique sur les Berenices, Comedie.
(Esphera) — A Utrecht — Chez JeanRibbius — mdclxxiu —
48 ps.
— La genereuse ingraíitude. Tragi-comédie pastorale.
Par le sr. Quinault. Suivant la copie imprimée — A Paris
cioiDCLxii — 74 ps.
Este precioso volume foi comprado pelo sr. Ribeiro de
Carvalho, em janeiro de (889, ao livreiro J. Rodrigues,
que dias antes o comprara a um desconhecido sem lhe co-
nhecer o valor.
O prologo d'esta edição das Cartas éegual ao da edição
Barbm, com esta alteração importantíssima, porém :
— Le nom de celuy auquel on les à écrites, iíst Monsikur
LE Chevalier de Chamilly, & le nom de celuy qui en a fait
la traduction est Cuilleraque. — Éuma formosa edição, em
typo elzevir, das 5 cartas somente.
Fica pois assente que os nomes do destinatário e do tra-
ductor se revelaram publicamente, logo em 1669.
3) Lettres I "portugaises I traduites I en françois./Seconde edi-
tion.
A Paris, chez Claude Barbin, etc. m.d.c.lxix.
(In- 12.° 182 ps.)
Exemplar na Bibliothêca de Copenhague.
Citada por Sousa Botelho, que a considera uma simples
reimpressão, posto seja differente do da edição inicial, o or-
namento do frontispício. Mas esta reimpressão das cinco
cartas da freira portugueza, que foi a que conheceu o ab-
bade de Sainte-Léger, foi accrescentada com uma collecção
nova que é a seguinte :
309
4) Lettres portugaises/Seconde partie./
A Paris, chez Claude Barbin, etc. m.d.c.lxix.
(In-lâ." 151 ps.)
Exemplar na Bibliotheca Nacional de Paris.
Tem este prefacio, positivamente indicativo de que as
sete cartas que compõem esta segunda parte nada teem com
as cinco da religiosa que constituíram a edição inicial.
— «O ruido que fez a traducção das cinco Cartas portu-
guezas suggeriu o desejo a algumas pessoas de qualidade
de traduzir algumas, novas, que lhes cahiram nas mãos.
As primeiras tiveram tanta procura que deve receiar-se,
com justiça, expor esta ao publico, mas como são de uma
mulher da sociedade (femme du monde), que escreveu n'um
estylo diíFerente do de uma religiosa, acreditei que esta dif-
ferença poderia agradar, e que porventura a obra não é tão
desagradável que não me agradeçam de alguma forma que
as dê ao publico.»
O privilegio tem a data de 28 de outubro de 1668, — é
o mesmo da edição original (n." !) — e o acabado de impri-
mir-se pela primeira vez, a de 20 de agosto de 1669. Como
geralmente acompanha a reimpressão ou segunda edição das
cinco cartas é provável que a data da publicação d'esta fosse
a mesma, isto é, sete mezes depois da edição inicial.
Dissemos já que não consideramos como perfeitamente
averiguado que estas sete cartas sejam apoeryphas, como
em geral se consideram. Mas que o editor não pensou em
fazel-as passar como da religiosa dizem-n'o ellas tão clara-
mente como o prefacio que acabamos de traduzir, que não
calla também que foi o êxito das primeiras que suggeriu a
publicação das segundas, aproveitando o titulo e o privilegio.
5) Lettres / d'une [ religieusejportugaise -1 Traduites/en fran-
çois./
A Cologne, chez Pierre du Marteau.
(^-12.° 58 ps.)
Sem data. Citada por Sousa Botelho. Contém as cinco
Cartas da religiosa e o mesmo prefacio da edição original
310
de Baabin, de que é uma reproducção, feita muito provavel-
mente no mesmo anno, antes da «segunda parte» do livreiro
parisiense, sendo porém muito curiosa a omissão dos nomes
denunciados na edição datada (n." 2).
Sousa diz : — «Tive a fortuna de adquirir em Copenhague,
um exemplar da edição in-12.'' de Pedro du Marteau, de
Colónia, sem data, que creio ser daquella edição anterior*
que desappareceu e consequentemente a primeira de quan-
tas se teem feito d'esta obra.»
Ha n'isto uma confusãa fácil de corrigir com as próprias
indicações de Sousa.
Saint-Leger dissera na edição de 1806: — «A mais antiga
edição, que implica comtudo uma anterior, que desappare-
ceu, pois que não podemos enconlral-a em parte alguma, é
a de Cláudio Barbin, 1609, in-12. " de 182 paginas, cara-
cteres grandes, dizendo no titulo. . . Segunda edição. y>
Simplesmente essa edição anterior era a do mesmo Bar-
bin (n.° 1) que Sousa descreve mais adeante e que Saint-
Leger não conheceu, parecendo até não ter examinado a
própria edição que cita ou o exemplar d'ella que, na fé de
Barbier, diz, com razão, existir na Bibliotheca Nacional de
Paris. Devemos accrescentar que é certamente por um
d'aquelles lapsos, tão vulgares na sua edição, que Asse diz
ter Sousa assignalado á de Marteau a data de 1665, o que
seria absurdo. Sousa observa que o exemplar que desco-
briu tem junto a Segunda parte (n.° 6).
6) Lettres / d\ne/religieuse/portugaise ./ Traduites/en fran-
çois./Seconde partie./
A Cologne^ chez Pierre du Marteau.
(In-12.° 47 ps.)
Sêm data, como o numero anterior, nos mesmos cara-
cteres e formato e junto com ella no exemplar de Sousa. E
a segunda parte de Barbin, (n.° 4) com o mesmo prefacio.
É pois no titulo d'esta publicação e apesar da declaração
terminante do prefacio, que começa a extraordinária con-
fusão das cinco cartas da freira com as attribuidas a uma
«senhora da sociedade.»
311
7) Lettres portugaises traduites en françois.
Amsterdam. Chez Isaac Van Dych. — 1669.
(12.0)
Citada por Brunet (5/ ed.) que a suppõe impressa em
Bruxellas. Costuma entrar nas collecções elzeverianas.
Contém apenas as cinco cartas da freira.
8) fíéponses aux Lettres portugaises, traduites en françois.
A Paris. Chez J. Baptiste Loyson, etc — 1669.
(In-12-2p. 2ff. pr.— 92-46)
Exemplar na Bibliotheca Nacional de Paris. Citado por
Brunet, Asse e outros. Tem o seguinte prefacio :
— «Ao leitor. — A curiosidade que tiveste de ver as cinco
Cartas portuguezas escriptas a um gentilhomem de volta de
Portugal a França, persuadiu-me de que não serias menos
curioso de ver as respostas d'elle; cahiram-me nas mãos,
da parte de um dos seus amigos que me é desconhecido;
assegurou-me este que, estando em Portugal, obtivera as
copias, escriptas na lingua do paiz, de uma abbadessa de
um mosteiro, que recebia aquellas cartas e as retinha em
vez de as entregar á Religiosa a quem se dirigiam. Não sei
o nome de quem lh'as escrevia nem o de quem fez a tra-
ducção, mas creio não lhes ser desagradável fazendo-as pu-
blicas, pois que as outras o são já. As pessoas que apreciam
este género de escripta não as teem desapprovado. Seja
como for, se não são tão galantes como as outras, são por
egual commoventes. Asseguraram-me que o gentilhomem
que as escreveu voltou para Portugal.»
O privilegio indica que são traduzidas pelo sr.Z).F. 2). iJ/.
Segundo Asse, a cessão feita pelo auctor tem a data de 3 de
fevereiro de 1669, um mez depois, por conseguinte, da pu-
blicação, ou de terminada a impressão, da edição original
das cinco cartas da freira, por Barbin !
Sousa Botelho não conheceu esta edição das Respostas,
e erra querendo corrigir Barbier, quando considera a de
1671 como a primeira.
312
9) Repouses anx lettres portugaises.
A Grenoble. Chez Robert Philippes, proche les RR.
PP. Jésuites.— 1669.
(In-ia." 144 ps.)
Exemplar na Bibliotheca Nacional de Pari.s. Tem o se-
guinte prefacio:
— «Para satisfação do leitor e para minha própria justi-
ficação, creio que devo dizer duas palavras do desígnio que
me obrigou a emprehender estas Cartas. Não pretendo es-
clarecer aqui o leitor sobre se as cinco Cartas Portuguezas
são verdadeiras ou suppostas, nem sobre se ellas se diri-
gem, como se diz, a um dos assignalados senhores do reino;
não é n'este assumpto que quero exhibir o meu saber: —
direi somente que a ingenuidade, a paixão toda desartifi-
ciosa, que se patenteia n'estas cinco Cartas portuguezas, a
poucos permittem duvidar de que ellas tenham sido real-
mente escriptas. Quanto ao intento que me obrigou a fazer-
Ihes respostas, sou muito franco para que dissimule o que
me disse um dos melhores espíritos da França. Logo me
representaram a grandeza da empreza, a difficuldade do
êxito, a temeridade de que me accusariam se o resultado
não fosse favorável. Disseram-me que uma paixão violenta
inspirara estas cinco primeiras Cartas, eque um homem que
não estivesse compenetrado de uma tal paixão, nunca con-
seguiria responder com felicidade a essas Cartas; que fora
uma mulher nova que as escrevera, e que na alma das pes-
soas d'este sexo as paixões eram mais fortes e mais arden-
tes que na de um homem, em que são sempre mais tran-
quillas; que, além d'isso, fora uma religiosa, mais capaz de
uma grande alleição e de um transporte amoroso do que
uma pessoa da sociedade; e que eu, não sendo nem moça
nem religiosa, nem talvez amoroso, não poderia secundar,
nas minhas cartas, estes sentimentos que se admiram prin-
cipalmente nas primeiras. Emfim, lembraram-me o intento
de Aulus Sabinus, que respondeu a algumas das epistolas
héroidas de Ovidio, mas com tão pouco êxito que aquellas
quasi não serviram senão para fazer realçar o esplendor
(Vestas, posto não fossem mais do que uma diversão do es-
313
pirito em que a paixão e o coração nenhuma parte tinham.
Tudo isto era bastante para desarmar uma coragem menos
acalorada do que a minha : por mim não me dei por vencido
com estas razões; vi bem que a belleza natural das Portu-
guezas era inimitável, e que ellas podiam justamente ser
chamadas um prodigio de amor; acreditei, comtudo, que,
quando as minhas respostas não fossem tão prodigiosas, não
deixariam por isso de ser acceitaveis. Se não são tão amo-
rosas e tão apaixonadas, que importa? comtanto que haja
n'ellas algum fogo? Estimo mais que me tomem por um ho-
mem de espirito do que por um homem amoroso. Em todo
o caso, que se imagine que as minhas respostas são tão pouco
supportaveis que não as fiz também senão para melhor imi-
tar aquellas de que a dama se queixa na 4.* carta, p. 22,
onde as nomeia por cartas frias e cheias de repetições, e na
carta 5.', em que se lamenta dos impertinentes protestos de
amizade e das amabilidades ridículas com que o seu amante
enche a sua ultima carta. Certo é esta, na minha opinião, a
menor graça que possam conceder-me. Se comtudo se con-
siderar na grandeza do intento, não me censurarão inteira-
mente por não ter tido melhor êxito. Ao contrario, talvez
louvem a minha empreza. As razões que vão expostas no
começo d'este prefacio, e que acho invenciveis, servirão me-
nos mal para me abrigar dos ataques da critica, para não
dizer da inveja. De resto, o leitor talvez se admire de ver
seis Cartas que não respondem senão a cinco, mas advirto-o
de que a primeira das Cartas portuguezas, falando de uma
carta que o amante escrevera já, antes da sua partida, en-
tendi que não podia dispensar-me de fazer uma neste sen-
tido. Não havia de deixar passar um assumpto tão bello
para escrever sem aproveital-o. É tudo quanto tenho a di-
zer. Adeus.»
Com bons fundamentos. Asse, seguindo «uma tradição
quasi constante», suppõe essas respostas posteriores ás do
editor Loyson, embora publicadas no mesmo anno.
10) Lettres portugaises traduites en françois.
A Paris, chez Claude Barbin. — 1670.
(In-12.'')
314
Exemplar da Bibliolheca da Academia de Rostock, se-
gundo communicação do bibliothecario Dr. Ad. Hofmeister.
11) Repouses aux Lettres portugaises
Paris, chez Cl. Barbin.-^1670.
(In-12.°
Exemplar da Bibliotheca da Academia de Rostock. Se-
rão as Respostas publicadas por Loyson (n.° 8) ou as de
Philippes (n.° 9)? Creio que até hoje era perfeitamente des-
conhecida esta edição de Barbin. Suppomos que deve será
collecção do livreiro de Grenoble, pois que n'este mesmo
anno Loyson publicava a seguinte edição da sua, de que
tinha, como vimos, privilegio.
12) Repenses aux lettres portugaises traduites en françois.
Paris. — J. B. Loyson. — 1670.
Exemplar na mesma Bibliotheca.
13) Repouses aux lettres portugaises traduites en françois.
A Paris, chez Jean Baptiste Loyson, au cmquième
Pillier de la grand salle du Palais, à la Croix d'Or.
1671. Avec Privilége du Roy.
Exemplar da Bibhotheca de Cassei.
14) Réponses aux Itttres d^amour d'une religieuse par le
Chavalier de C*** ojficier françois en Portugal.
A Cologne. — Chez Pierre du Marteau. — 1671.
Citado por Barbier. São as respostas de Loyson.
15) Lettres portugaises traduites en françois. Troisième édi-
tion.
A Paris, chez Claude Barbin.— 1672.
(In- 12.° 182 ps.
Exemplares na Bibliotheca Nacional de Paris e na Bi-
315
bliolheca de Stuttgart. Comprehende somente as cinco car-
tas originaes. A 3.* edição deveria ser a do nosso n.° 10.
Será esse numero, porém, uma segunda edição da sf^^wnda
parte apenas, ou das Cartas de uma «dama da Sociedade»?
16) Lettres portugaises. Seconde partie.
A Paris, chez G. Barbin. — 1673.
(In-ia.o 151 ps.)
Exemplar na Bibliotheca Nacional de Paris.
17) Five/Iove-letters/from a/nun/to a/cavalier./Done out of
French into English./
London/Printed for Henry Brome at/the Gun at the
West-end/of St. Pauis. 1678./
(In-lâ." 117 ps.)
— Licensed/Dec. 28/1677//?o L'Estrange./—
Exemplares na Bibliotheca Nacional de Lisboa e na do
Museu Britannico (Londres.)
Tem o seguinte prefacio:
— «Ao leitor. — Deves acceitar esta traducção muito ge-
nerosamente, porque o auctor d'ella arriscou a sua repu-
tação para te obsequiar. Arriscou-a, digo, até na simples
tentativa de transladar tão formoso original. Este é, em
francez, uma das mais artísticas obras talvez, no seu géne-
ro, que existam. Bastam as graças peculiares e as facilida-
des d'aquella língua em assumpto á'amour^ que não podem
passar-se para outra lingua sem esforço e aíFectação. Foi,
parece, uma intrigue de amor travada entre um ofíicial
francez e uma freira em Portugal. O cavalleiro esqueceu
a amante e voltou para França. A senhora expõe o episo-
dio em cinco cartas de queixa que mandou atraz d'elle, e
estas cinco cartas aqui estão á tua disposição. Encontrarás
n'ellas a viva imagem de uma paixão extraordinária e in-
feliz, e de que uma mulher tanto será de carne e sangue
n'um convento como n'um palácio.»
316
18) Lettres d\ne religieuse, écrites au chevalier de C***
ofjicier (rançais, édition nouvellement augmentée de
celles du dit chevalier.
A Cologne;, Ghez P. du Marteau 1678.
(In-12)
Citado por Nyon {Cat. de la Vallière), Saint Leger,
Sousa, etc. Comprehende as cinco cartas da freira e as res-
postas do editor Loyson.
Sousa Botelho diz :
— «... pode notar-se também que é a primeira em que
se designa o official (M. de Chamilly) sob o nome de che-
valier de C***».
Vimos já que não é exacto (n."' 2 e 14).
19) Lettres portugaises traduites en (rançais.
A Tournay . . .
Citado por Saint Leger, nawoí. hist. da edição de 1806,
como «quasi semolhante á de Barbin. (1669). »
20) Lettres I Portugaises I avccjles Responses,! traduites /en
(rançois.
A Lyon/Chez Claude Muguet, rue/Merciere au bon
Pasteur ./m. dg. lxxix. avec Permission./
(In- 16)
A noticia d*esta edição foi-nos communicada pelo obse-
quioso bibliothecario communal de Verona, onde exite um
exemplar.
21) Lettres portugaises avec les Responses, traduites en
(rançois.
A Lyon, chez Thomas Amaulrv, 1680.
(In-12 — H6pag.)
Exemplar da Bibliotheea Nacional de Paris. São as cinco
cartas alternadas com as respostas de Loyson.
317
22) Lettres d^amour d*une religieme portugaise écrites au
chavalier de C. Edition nouvelle augmentée de celles
du dit chevalier.
A Gologne. Chez P. du Marteau, 1681.
(In-8.°)
Citada deficientemente por Brunet. O dr. Guill. Heyd,
conservador da Bibliotheca Real de Stuttgart communica-
nos a existência n'aquella bibliotheca de um exemplar en-
cadernado com uma obra de Tenain: — v-La religieme in-
teressée & amourense» . — Gol. 1707 — 8."
23) Seconde partie des Lettres portugaises, traduites en
françois.
A Lyon, chez Th. Amaulry, 1681.
(In-12 — 119pag.)
Exemplar da Bibliotheca Nacional de Paris. São as sete
cartas da «mulher da sociedade», e . . as cinco respostas
ás da religiosa, de Loyson.
24) Douze lettres d^amour d^ne religieuse portugaise, écri-
tes au chevalier de C*.
La Haye, 1682.
(In- 12)
Citado por Techener (Cat. de 1869).
Asse diz: — «Parece ser a primeira edição em que as
doze cartas e as onze respostas se encontram reunidas mas
confundidas».
25) Lettres portugaises / avec / les responses / traduites / en
françois./
A Lyon/Chez Fr. Roux, etc. Cl. Chize/MDCLxxxv.
(In-12)
Exemplar nas Bibliotheca Nacional de Lisboa e Nantes.
Prefacio da edição original de 1669, as cinco cartas da
religiosa, acompanhadas das seis respostas da collecção Fi-
318
lippes. No fim o Consentement, em data de 28 de maio de-
1685. Com o mesmo volume, a seguinte :
26) Seconde partie/des lettres / portugaises / traduites / en
françois.
A Lyon/Ghez Fr. Roux. . . Cl. Chire/MDCLXxxvi.
O prefacio é o mesmo da segunda parte da edição de
Barbin, substitui ndo-se porém o periodo em que se declara
que as sete cartas são de «uma mulher da sociedade», pelo
seguinte :
— «Mas como ellas são quasi do mesmo caracter entendi
que esta conformidade poderia agradar e que porventura
a obra não é tão desagradável», etc. O resto como o prefa-
cio original.
Precisamente o contrario do que declarava Barbin !
27) Lettres I d^amour I d\ne I religieme I portugaise.l Ecrites
au/Chevalier de C./Officier F. en Portugal. /Enríchies
& augmentées de plusieurs/nouvelles Lettres fort ten-
dres & passio-friées de la P. F. à M. le Baron de B./
Derniére edition./
A la Haye./Chez Abraham de Hont et Jacob van EI-
linkhuysen/Marcbands Libraires sur la grande
Sale de la Cour./M. dg. lxxxvhi.
(In-8.°— 191 pag.)
Exemplar do sr. Ferreira das Neves Sobrinho (Lisboa).
Deve ser a edição citada por Barbier em nota a St. Leger,
na edição de 1806.
O mesmo prefacio da edição inicial de Barbin (n.° 1)
salvo o periodo em que este diz não saber o nome do des-
tinatário e do traductor, periodo substituído por este :
— «O nome daquelle a quem foram escriptas (as Cartas),
é M. o C. de G. e o nome daquelle que fez a traducção é
C. pareceu-me que não devia desagradar-lhes,» etc.
Começa pelas sete cartas da segunda parte ou da i se-
nhora da sociedade» seguindo-se-lhes as cinco da religiosa,
319
sendo por isso a primeira d'estas a huitième/lettre/ da col-
lecção, sem declaração alguma!
A pag. (inn.) 85 começa outra collecção com o seguinte
titulo que occupa essa pagina :
— Hesponses / du/ Chevalier de C./aux/Lettres/d^amour/
d'tine Réligieuse en/ Portugal/ Edition nouvelle./
Esta collecção abre pelo prefacio das respostas do editor
Loyson (n." 8) com a simples alteração de que onde este
diz: — «as cinco Cartas portuguezas » , — lê-se: — «as doze
Cartas Portuguezas,» — á parte duas ou três outras modi-
ficações insignificantes.
Seguem-se numeradas seguidamente de — Premiere let-
tre, — a — Onsième lettre, — primeiramente as cinco res-
postas do editor Loyson, e depois as do editor Philippes,
até pag. 191 que termina com a palavra Fin, sem que,
n'este exemplar pelo menos, se sigam as — plusienrs nou-
velles Lettres fort tendres, etc. — do titulo inicial. Estas ul-
timas cartas deveriam ser as da presidente Ferrand que
Saint Léger erradamente diz terem sido juntas «pela pri-
meira vez» ás Cartas portuguezas na edição de 1707, e que
Barbier diz seguirem-se em 32 pag. de numeração separada.
28) Lettres d'amour d'un8 réligieuse portugaise, écrites au
chevalier de C* officier en Portugal. — Derniêre edi-
tion.
A la Haye, chez Abraham de Hont et Jacob Van El-
len Kuysen, 1689.
(In-12.° 191 ps.)
Exemplar da Bibliotheca Nacional de Paris. As sete car-
tas de uma «senhora da sociedade», seguidas das cinco da
religiosa, alternadas com as onze respostas de Loyson e de
Philippes.
E. Asse, depois de fazer a observação que citámos em
relação á edição de 1682, caeno erro commum de affirmar
que esta de 1689 é «a primeira que reuniu as doze carias
portuguezas.» Vimos já que não é, como também não é a
primeira que designa o destinatário pela inicial C, segundo
outro erro geral.
320
29) Lettres / d'amour / dfune / religieuse /portugaisejescrites
au/Chevalier de C./Ófficier François en Portugal./
Dérniere Editiorij augmentée de sept Let-/tres avec
letirs fíéponses, qui n^ont/point encore paru dans les
Impressions/precedentes ./ (Esphera)
A la Haye,/Ghez Corneille de Graef,/Marchand Li-
braire sur la Grand'Sale/de la Cour, 1690.
(In-ia." 192 ps.)
Exemplar do sr. J. M. Nepomuceno. Fiando-se natural-
mente na indicação do editor, errou Sousa Botelho dizendo
que n'esta edição — «pela primeira vez se imprimiram jun-
tas as doze cartas como pertencendo todas á religiosa. » —
Errou também na transcripção do período relativo aos no-
mes, no prefacio, que é o da primeira edição datada^ de
Marteau, com a variante das — «douzeLettres». — Esse pe-
ríodo diz pois : — «O nome d'aquelle a quem foram escriptas
é Monsieur le Che^alier de Chamilly, & o nome d'aquelle
que fez a traducção é Cuilleraque.y» — As doze cartas ter-
minam a ps. 84, começando com a 8.* as da Freira, em
ps. 41.
Seguem-se :
— RéponsesIdulChevalier de C./aux Lettres/d'amour/d\ne
Religieuse en/ Portugal/ Edition nouvelle./
Paginação continuada. O prefacio de Loyson, sem alte-
ração do período: — «Não sei o nome d'aquelle que as es-
creveu nem de quem fez a traducção»!
30) Lettres portugaises, avec les repouses traduites en fran-
çois.
Lyon, chez Fr. Roux et Glaude Ghire. — 1693.
(In-12.°)
A noticia d'esta edição foi-nos communicada pelo sr. bi-
bliothecario municipal de Bolonha.
31) Five love-letters from a nun to a Cavalier. Done outof
French into English by Sir R. L'Estrange'
321
London. 1693.
(In-ie.")
Exemplar no Museu Britânico. A primeira edição é cer-
tamente a do nosso n." 17.
32) Letires d^amour d'nne Beligieuse Portugaise, écrites
aii chevalier de C** ofpcier François en Portugal.
A La Haye, 1693.
(In-l^.")
É uma das edições citadas no Catalogus Libronim a
Commissione Aulica Prohibitorum. Nindobonàe, Typis Joan.
Thom. de Trattner, 1765. Andava atrazado o tal Índice ex-
purgatorio do Conselho Aulico . . .
Como a maioria dos nossos números, esta edição é des-
conhecida dos commentadores das Cartas.
33) Five love-letters writen by a Cavalier in ansiver to lhe
five love letlers xcritten to him bíj a nun.
London. 1694.
(In 12.°)
Exemplar do Museu Britânico. É certamente a traduc-
ção das respostas de Loyson. Ao amável director d'aquelle
Museu devemos a noticia do n." 31 e d'este.
34) Letires I Porlugai&es I avec I les / Réfomes I traduites I en
François. I
A Lyon/Chez Jacques Lion/1695/
(In-12.°)
Dá-nos noticia d'esta edição o sr. bibliothecario da Bi-
bliotheca Publica de Dijon. E' das comminadas no Índice
expurgatorio do Conselho Aulico : — Catalogus Libronim
etc.
35) Lettres/portugaises/avec/les réponses/iraduites/en fran-
çois./
A Lyon/Chez Sebastien Roux, rue de/la Barre, pro-
F. 21
32á
ehe le Pont du Rone/M. dc. xcvi.
(In-12.°— llGpag.)
Possuímos este exemplar, offerta do sr. J. Henrique Ul-
rich (Lisboa). Prefacio da edição inicial, apenas com o se-
guinte additamento no primeiro periodo: — «com as Res-
postas pelo mesmo Gentil-homemn.
São as cinco cartas da freira alternadas com as seis res-
postas da edição Philippes. Junto com a mesma obra e ten-
do-a acompanhado muito provavelmente na publicação, está
a seguinte:
36) Lettres portugaises/avec/les réponses/tradidtes enfran-
çois.i'òeconde partie./
A Lyon,/Chez Sebastien Roux, rue de la Barre, etc.
M. nc. XCVI.
(In-lS." 119 ps.)
O mesmo prefacio de Fr. Roux e Cl. Chize, de 1686
(n.° 26) que como dissemos é o da edição inicial de Barbin
com uma substituição que lhe altera diametralmente a idéa.
São as sete cartas de uma «mulher da sociedade», seguin-
do-se-lhes de ps. 47 em deante as cinco respostas de Loy-
son. A quinta por erro typographico vae designada no co-
meço como seconde lettre.
37) Lettres d'amour d'une rcligieuse portugaise Ecrites aa
Chevelier de C*. ofjicier François en Portugal. En-
richies et augmentées de plusieurs nouvelles Lettres,
fort tendres et passionnées de la Président F. á Mr.
le Baron de B. — Dernière Edition.
La Haye, chez Abraham de Hondt, Marchand Li-
braire sur la grande salle de la Gour, á la For-
tune. J/DGXCVI.
Exemplares na Bibliotheca de Besançon e Cassei, aos
amáveis conservadores das quaes devemos a noticia d'esta
edição.
323
38) Lettres d^amour d'une Religieuse portugaise, écrites au
Chevalier de G* oficier françois en Portugal; der-
nière edition augmentce de sept lettres avec leurs re-
pouses qui n'ont pas encore paru dans les impressions
precedentes.
S. 1.— 1696.
(In-12.° 209 ps.)
Exemplar na Bibliotheca Nacional de Paris, citado por
Asse.
O titulo é idêntico á edição de Haya, por Graef, em 1690
(n.» 30). I :^_,
39) Lettres/ d'^amour /d' une/ Religieuse/portugaise/ecrites o?t
Chevalier de C* ./Ojficier François en Portugal. /En-
richies & augmentées de plusieurs nouvelles Lettres,
fortt endres et passionnées de la Président á Mr. Ba-
ron de B./erniere edition./ —
A la Haye,/Chez Jacob Ellinckhuyseen,/Marchant Li-
braire sur la grande Sale/de la Gour, au Dau-
phin./M. DC. xcvii.
(1 vol. — 12.°— 310.
Exemplar da bibliotheca do sr. A. de Carvalho Monteiro.
Prefacio da primeira edição de Barbin com a correcção da
de Pedro du Marteau : — «O nome d'aquelle a quem foram
escriptas é Mr. le Chevalier de Chamilli, & o nome d'aquelle
que fez a traducção é Guilleraque ...»
As 12 Cartas, começando as da freira^ a ps. 47 com a
8.', até 94. Seguem-se as — Reponees/du/Chevalier de G./
aux lettres/d'amour/d'une/religieuse/en Portugal/Nouvelle
Edition./Com o prefacio inicial incluindo a declaração: —
«Não sei o nome d'aquelle que as escreveu nem quem fez
a traducção.» ete.
Em face do frontespicio uma gravura, — Harreivyn fecit
— representando no primeiro plano uma freira escrevendo.
Emblema em circulo : duas mãos entre nuvens, uma segu-
rando um coração e outra com uma lente fazendo incidir
21 #
324
os raios do sol sobre aquelle: Em volta a legenda: — Cest
ainsi que 1'amour salume dam le coeur. Ao fundo, á es-
querda, atravez uma larga janella navios francezes afas-
tam-se da praia d'onde parte um pequeno barco. A direita
a freira e Chamilly, n'um quarto de cama sentados, ella,
no leito, e elle n'um sopbá, ao lado.
E' a primeira edição em que apparece uma gravura allu-
siva á religiosa. Na nossa primeira edição só podemos guiar-
nos pela citação de um exemplar no Ellis X Elveygs Cat.
of old BookSi n.° 61, sob a designação de Alcnforada (Ma-
riane), 1887.
Na nossa bibliographia anterior introduziu-se errada-
mente, com a data de 1797, sob o n.° 60, um exemplar
d'esta edição, da bibliotheca de Mannheim (Schloss).
40) Lettres Portugaises, avec les réponses traduites en fran-
çois.
Lyon, chez Jean Viret, J697.
(In-12.°)
Esta edição é-nos communicada pelo sr. bibliothecaria
mun. de Bolonha.
41) Becueil/ de/ lettres galantes/et amourenses/d' Heloise a
Abailordf / d'une religieiíse portngaise / au Cheva-
lier***/Avec celles de Cleante & de Belise,/& leur
Béponse /etc.
Amsterdam. Chez François Roger, etc. mdcxcix.
Exemplar na Bibliotheca Nacional de Lisboa.
De paginas 121 (inum.) a 294:
= Lettres /d'Amour / d''une /Beligieuse/portugaise/écrites
au/Chevalier de C***/officier françois en Portugal. /Avec
les Beponses da dit Chevalier en/suite des Lettres de/ladi e
Beligieuse./
O prefacio da edição inicial de Barbin, substituido o tre-
325
•cho relativo aos nomes do destinatário e do traductor, por
este:
— «O nome d'aquelle a quem foram escriptas é Monsieur
le Chevalier de Chamilly^ e o nome d'aquelle que fez a tra-
ducção d'ellas é Guilleraque.»
42) Lettres/d^amour/d\ne/religieuse/portugaise/écrites auf
Chevalier de C./officier Francois en Portugal J Aveç
les Repouses du dit Chevalier en/suite de chacune des
Lettrcs de/ladite ReKgieuse./Imprimées cette Année.f
S. 1. n. d. 12.°— 248 pas.
Pela disposição typographica do titulo deve ser uma ti-
ragem da 2.'' parte da edição precedente. Encontro o apon-
tamento d'ella, mas não me recordo quem m'o oífereceu
ou como o obtive.
43) Lettres d'amour d^ne Religieuse Portugaise, traduites
du Portugais.
LaHaye — 1701.
(In-12.°)
Exemplar no Museu Britannico.
44) Lettres d^amour d^une Religieuse portugaise^ écrites au
chevalier de C*, efficier francois en Portuqal, en-
richiées et augmentées de plusieurs nouvelles lettres
fort tendres et passionées de la Presidente de F* a M.
le Baron de B*; derniere édition.
La Haye, Abraham de Hondt. 1701.
(In-12.° 310 ps.)
Citada por Asse.
45) Five love lettres from a nun to a Cavalier, etc.
London, 1701.
(In-16.°)
Exemplar no Museu Britannico.
326
46) Lettres portugaises.
A la Haye, Jacob Van Ellinckuysen — 1707.
(In-12.° 309 ps.)
Citada por Saint-Léger, que diz que n'ella se juntaram
pela primeira vez as cartas da Presidente Ferrand ao barão
de Breteuil, e accreiscenta ainda que contém pela primeira
vez, também, as 12 cartas em vez de 5 e as 11 respostas
«í/m chevalier C***y>
Vimos já que uma e outra coisa é inexacta.
47) Lesplusbelles/leítres/françoises/surtoutes sortes/ de su^
jetsJTirées des meillenrs Auteurs, avec des Notes, j
par P. Richelet ,/ Quatrième édition
A la Haya — Chez Louis et Henri van Dole, etc. —
M.DCC.Vm
(2 vols.)
Exemplar na Bibliotheca da Academia Real das Sciencias
(Lisboa).
No primeiro volume, em seguida a paginas 124, começa
a collecção das Lettres passionées, encontrando-se n'ellaas
cinco cartas da freira portugueza, com os seguintes titu-
los;
1." (ps. 130) — A Monsieur le C*/Absence insupportable/
2." (ps. 143) — il Monsieur le C.
3.^ (ps. 149) — ^ Monsieur le C**
4." (ps. 154)—^ Monsieur le C. de C***
5.' (ps. 165) — A Monsieur le C. de C***
A redacção foi revista no pensamento de a tornar mais
correcta como modelo epistolar francez, sendo na ultima o
nome de Dona Brites substituído pelo mais euphonico, de
Emile. A primeira edição d'esta obra é de 1698, chez Mi-
chel Brunet, sendo provável que n'ella e nas duas que se
lhe seguiram viessem já as cartas da freira portugueza. Não
pudemos ver nenbuma d'essas edições. Posto que a obra te-
nha uma noticia dos auctores das cartas de que se compõe,
327
nenhuma indicação ou allusão se faz á procedência das car-
tas da freira, e o mesmo succede na noticia elogiosa que faz
do livro o Journal des Savants^ d'aquelle anno.
48) Nouveau recucil cmtenant. . . les lettres d\ne religieuse
portugaise écrites au Chevalier de C*** ofpcier f ran-
çais en Portugal, a,vec les réponses du dit chevalier en-
suite de chacune des lettres de la dite religieuse.
Bruxelles— 1709.
(In- 12.°)
Citada por Langlet e Saint Léger. Este ultimo diz que
ella «contem também a vida, os amores desventurados e as
cartas de Abeilard e de Heloisa», e segundo informação que
recebemos do sr. conservador da Bibliotheca de Nantes,
onde existe um exemplar, as cartas da freira occupam de
ps. 209 a 362 da collecção.
49) I^ouveau/recueilj/contenant/la vie, les amoursjles in-
fortunes,/et les Lettres d'Abailard & d'Heloise:/Les
Lettres d^une Religieuse Portugaise &du Chevalier***/
celles de Cleante et Belise./Avec VHistoire de la Ma-
trone d^Ephese.
A Bruxellas, Chez François Foppens, au Saint-Es-
prit. — M.DCC.XIV.
(1 vol. In-12.°— 479).
Exemplar do sr. Carvalho Monteiro. Frontispicio apreto
e vermelho. A ps. 209: — Lettres/ d' amour/d'une/ Religieuse/
Portugaise, /écrites/au Chevalier de C***/Officier François
en Portugal. /Avec les Réponses de ce Cavalier/ensuite de
chacune des Lettres de cette Religieuse. Até ps. 362.
Inclue as 7 e as 5 cartas, começando estas na 8." Pre-
facio das edições iniciaes com a declaração do destinatário:
— Monsieur le Chevalier de Chamilly,— e dotraductor: —
Guilleraque.
50) Lettres/d'amour/d'une/religieuse portugaise /Ecrites au
Chevalier de C./Ojficier François en Portugal. /Enri-
328
chies & augmentées deplusieurs nouvelles/LetireSj, fort
tendres & passionées de la/ Président F. à Mr. le Ba-
ron de D./Nouvelle edition/.
A la Haye,/chez Les Fréres van Dole, Mar/chands
Libraires, dans le Pooten./M.DCc.xvi.
(In-12.° 373 ps.)
Possuímos um exemplar d'esía edição, que é das mais
cuidadas. Frontispicio a preto e vermelho, precedido de
uma bella gravura assignada: D. Coster fecit. A gravura
representa uma formosa religiosa sentada a uma mesa e em
altitude de suspender a escripta de uma carta, para meditar.
No panno da mesa um emblema allusivo aos raios do sol,
queimando atravez de uma lente um coração. Duas mãos
entre nuvens seguram, uma a lente, a outra o objecto in-
cendiado. Rodeia o emblema, que é como se vê o mesmo
da gravura de Harrewyn, da edição de 1697, egual Xq^qu-
da:=<iC'*esí ainsi que 1'amour s'alluine dans le cceury>. Ao
fundo e á esquerda abre-se uma galeria ou balcão deixando
ver o mar e um grande navio, com a bandeira das flores
de lirio, que se afasta, — á direita uma alcova, onde, junto
de uma religiosa sentada á beira de um leito, ajoelha um
homem em attitude de protestar-lhe amor.
O prefacio é o da edição inicial de Barbin, com a substi-
tuição da edição primeira de Marteau.
Até paginas 114, seguidamente, doze cartas, sendo as pri-
meiras as sete da «senhora de sociedade» , e da 8." em deante
as da freira portugueza. Seguem se as duas coUecções re-
unidas das respostas de Loyson e Philippes, até paginas 254,
erradamente numerada como 454, e com o seguinte fron-
tispicio : — Repouses jdu Chevalier de C ./auxleítres/d^a77iour/
d\me/religieiise/en Portugal./ Nouvelle edition.
O prefacio d'esta parte é, sem alteração, o da collecção
de Loyson.
Seguem-se : — (íNouvelles/lettres/d'amour, /Fort tendres,
& fort Passionnées/De la Presidente F./à Mr. le Baron de
B.y> Nas duas ultimas paginas um soneto de Chapelle, e
outra pequena composição poética epigraphada: sur une
absence.
329
51) Nouveaii recueil de lettres contenant la vie, Irs amours,
les infortunes et les lettres d^Héloise et d*Abélard;plu-
sieurs lettres galantes et amoureuses, avec l'histoire
de la Matrone d^Ephèsvj les lettres d'ammir d'une
religieuse portugaise, écrites au chevalier C***, ofíi-
cier [rançais en Portugal et les réponses dudit Che-
valier, à la suit des lettres de ladite religieuse et cel-
les de la presidente Ferrand, sous les noms de Cléante
et de Bélise.
Anvers — 1734.
(2 vols.)
Citada por Saint-Léger.
52) Nouveau / recueil, / contenant/la vie, les amours, /les in-
fortunes,/les lettres/d'Ahailard,/et i'Helo'ise,/Et plu-
sieurs autres Lettres Amoureuses, /tirées des meil-
leurs Auteurs./Avec VHistoire de la Matrone d'Ephe-
se./ Divise en deux Tomes. etc.
A Anvers. /Chez Samuel Le Noir, Marchand/Librai-
re, 1738.
2 vols. 12.°— í) inn. 232-228.
Exemplar do sr. Carvalho Monteiro. O 2.° vol. intitula-se :
— Nouveau/Recueil/de Lettres Galantes/de Cleaníe/et/de
Belise;/ avec /les lettres d'amour/d'une Religieuse Portugaise,
écrites/au CÁevalier de C,*** officier Fran-/çois en Portu-
gal./Et les Réponses du dit Chevalier ensuite de/chacune des
Lettres de ladite Religieuse./
Tem a mesma data do primeiro, e como elle, a preto e
vermelho o frontispicio. Um aviso — lAu lecteur» — enca-
rece o merecimento das cartas contidas no volume, não se
referindo porém, evidentemente ás da freira, mas á grande
collecção por que começa de — «Lettres galantes de Mada-
me***»— (não menos de 72).
Na pagina que deveria ser 83 começam as portuguesas
com este novo frontispicio :
— Lettres/d'amour/d'une/religieuse/povtugaise/écrites/au
330
Chevalier de C***/Ofpder François en Portvgal./Avec les
Béponses cludit Chevalier ensuite/de chacune des Lettres de/
ládiíe fíeligieuse./
Aviso — «Au lecteur,» — com ligeira variante, o de Bar-
bin, mas com a expressa declaração do destinatário — i/ow-
sieur le Chevalier de Chamilly, — e do traductor — Guil-
leraque. —
Reúne as 12 cartas e as respostas, começando as da freira
na VIII.
53) Lettres / d' Amour / d\>ne / fíeligieuse / Portvgaise /écrites
aujChevalier de C./officier François en Portugal/ fíe-
vneSj, corrigées, & avgmentées de plus/sieurs nouvelles
lettres, & de diffe/rentcs Pièces de Poesie / Nouvelle
edition/
A la Ílaye/Chez Antoine van Dole/M.DCC.XLU.
(2 vols. 12." 408-408 ps.)
Exemplares na Bibliolheca Nacional de Lisboa, Biblio-
theca Municipal do Porto e de Carva ho Monteiro.
Frontispício a vermelho e preto. No começo de cada vo-
lume a gravura de Coster, da edição dos Irmãos van Dole,
de 1716. Dedicatória: — «A Madame J. C. W.***» — por
António van Dole, em 1 de dezembro de 1751. Até paginas
266 do primeiro volume as doze cartas (cinco da freira e
sete da «senhora da sociedade») com as respostas uma a
uma.
54) :
Anvers, cbez Samuel le Noir, 1747.
Citada por Saint-Léger, que não reproduz o titulo. Deve
ser reedicção da de 1738 do mesmo impressor, n.° 51.
55) Lettres portngaises en vers par M."^ d^Oh**
Lisbonne, 1759.
(In-8.°)
Citada por Barbier, Sousa, etc.
331
É uma imitação em verso da 1/ e 4." carta, pelo mar-
quez A. L. de Ximenes. Foi impressa em Paris — chez N.
B. Duchesne, — e não em Lisboa. O sr. bibliothecario de Bo-
lonha communica-nos a existência de um exemplar n'aquella
bibliotheca.
56) Lettres poringaíses en vers par M."^ d* Oh**
Franeíort s/Meno — 1760.
(In-8)
Indicada por Barbin {Dic. des ouv. anon. 1874) como
nova edição da imitação antecedente, acompanhando as
* Qnatre parties dujoury> do abbade de Bernis.
57) Letlres/d^une chanoincsse/de Lisborine/a Melcour./Offi-
cier françois,/precédees de qnelques réflexíons./
A la Haye, etc. m.dcc.lxx.
(In-8.°117ps.)
Bibl. do sr. J. M. Nepomuceno.
É a imitação em verso de Dorat. N'um aviso junto no
fim do exemplar que examinei, Delalain dizendo que tem
na sua livraria as obras de M. D. (M. Dorat) em 6 peque-
nos volumes, acrescenta que fez extrahir exemplares das
Lettres d\ne chcmoinesse em papel de Hollanda para os que
quisessem juntal-os aos Baisers.
58) Lettres/d\ne chanoinesse/de Lisbonne/A Mercour^/ofji-
cier françois,/sidvies de fEpitre intituléejMa Philoso-
qhiejet de quelqiies poesies fngitives./Seconde edifion.
A la Haye,/dc se trouve à Paris,/Chez Delalain etc./
MDCCLXXI.
(ín-8.° 228 ps.)
Possuímos um exemplar. É a imitação em verso, em 16
cartas, de Dorat, precedidas das suas — «Beflexions préli-
minairesD, — e seguida de outras composições, entre as
quaes a Epitre d\n Cure, que lhe foi attribuida. Com bel-
las composições de Eisen e Marillier, gravadas por Massard
e Ghenat.
332
59) LeUres I d'une chanoinesse/de Lisbonne./ A Melcour./
ojficier françois;/ suivies/ de Vepitre intitulée/Ma phi-
losophieJEt de quelques Poesies Fugitives.f
A Paris,/et se vend a Mons,/Chez Henri Hoyois, im-
primeur & Libraire,/rue de la Chef, vis-à-vis du
Pataeon . — m. dcc . lxxv.
(In-8.°— XXXVI — 152)
Exemplar no Museu Britannico e na biblictheca de Car-
valho Monteiro.
Abre com uma — «Lettre d'un philosjphe.» — não apon-
tada no Índice, seguindojse depois as — «Reflexions préli-
minaires,» — de Dorat. É a imitação em verso, deste, como
previramos na primeira edição da Soror.
60) Lettres I d'amour I d'une I Religieuse I portugaíse, lécritesj
aii Chevalier de C./Officier François en Portugal;/
Revues, corrigées, & augmentées de nouvelles/Letires,
& de differentes Pieces./Nouvelle édition./
A Londres,/Ghez C. G. Seyffert, Libraire.
M.DCC.LXXVH.
(2 vols. In-12.''— 2o2-237.)
Exemplar de A. Carvalho Monteiro.
Carta-dedicatoria innumerada, — «a Madame, Mad. J.
C, W***» — exactamente a mesma de António Van Dole
(ed. de 1742 etc.) mas sem data nem assignatura, é claro I
O mesmo prefacio ou «Avertissement du libraire», e até os
— «quelques lambeaux» — das Poesies Francoises do abbade
Regnier Desmarais. . .
No primeiro volume as 12 cartas cada uma com uma
das Respostas. Em seguida á ultima da freira, ou á ps. 160,
as — «Nouvelles/lettres/d'amour,/fort tendres & fort pas-
sionnées, de la/Présidente F./a Mr. le Baron de B./» — as
poesias, etc.
0 2." vol. com titulo egual ao primeiro é uma miscel-
lanea de cartas e poesias, duas composiçães. — Le Voyage
de Visle d'Amour — e outras sensaborias.
Diz Saint Léger : — «É um farrago de obras, de fragmen-
333
tos de poesia de Regnier Desmarais, ele. tudo quanto ha
de peiores versos, de mais chatas e ridiculas semsaborias,
que não são dignas de impressão; uma viagem a uma ilha
do Amor que merecia ser submergida, eglogas, madrigaes,
estancias epitaphios, etc.»
61) Lettres de tendresse et d'amour, contenant les Lettres
amoureuses de Julie à Ovide, par M. D. Ai***, avx-
guelles on ajoint les reponses d'Ovide à Julie par M.
C***, suivies des Lettres galantes d'une chanoinesse
portugaise.
Amathonte et Paris. — Cailleau (s. d.)
(2 vols. In-lâ.")
Citada por Saint-Léger que lhe fixa a data de 1778, e
por Barbier que em parentheses dá as seguintes elucida-
ções.
— M. D. M*** = Charlotte-Antoniette de Bressey, mar-
quise de Leray-Marnézia.
— M. C*** = A. C. Cailleau.
e para as cartas da Chanoinesse portugaise:
— «traduzidas do portuguez de Marianna Alcoforada, re-
ligiosa, pelo conde de Lavergne de Guilleragues.»
Saint-Léger observa, a propósito d'esta edição, o seguinte:
— «Permittiram-se corrigir as Cartas Portuguezas, diz-se
n'um prefacio que sobre o próprio original que nunca se
encontrou, desbastando o que se chama galimathias duplo. ..
Posto que elle (Cailleau) pareça bastante instruído, não diz
uma palavra acerca do histórico d'estas Cartas, e para não
conservar o estylo do traductor, que foi quem viu o origi-
nal, substituo phrases a seu gosto que julga mais claras para
os leitores que não tiverem o espirito da religiosa.» Isto si-
gnifica que a edição de Cailleau pouco menos é do que uma
imitação ou de que uma contrafeição.
É curioso também que Sousa Botelho, que, assim como
Saint-Léger, não diz porque attribue a Subligny a traduc-
ção, note que Cailleau a attribua a Guilleragues — «sem di-
zer em que se funda para isso.» Naturalmente fundava-se
na tradição única e constante transmittida pelas edições an-
334
teriores, em nenhuma das quaes appareee o nome de Su-
bligny.
62) Leítres/d^une chanoinesse/de Lisbonne/a Melcourjoffi-
cier français,/suivies de 1'épitre intitulée/Ma Philo-
sophiejet de quelques poésies fugitives/par M Dorat.
A Paris/Chez Delalain, etc. mdcclxxx.
(In-8.° 96-44-86 ps.)
Possuímos um exemplar d' esta edição da imitação de Do-
rat.
As mesmas gravuras de Eisen e Massard, já um pouco
cançadas, da edição de 1771. A principal representa, junto
a um luxuoso leito^ um Amor que deixou cahir um facho,
e soror Marianna, sob a figura de uma formosa mulher, cho-
rosa e aíílicta, em desalinho, um dos seios descoberto. Ao
fundo, atravez de uma janella, vé-se um navio que se afasta.
A imitação, ou, mais propriamente, a composição de Dorat,
abre por uma vinheta representando a religiosa sentada a
uma mesa, interrompendo a escripta para contemplar um
retrato. No fim das LeWres^ outra vinheta emmoldurada em
flores, figura um Amor conversando com uma freira nas
grades conventuaes.
Muito extravagantes os nomes substituídos por Dorat.
Ghamilly vimos já que é Melcour, continuando comtudo a
ser officier français; Marianna passa a chamar-se Euphra-
sie, e Dona Brites é Dona Mélés! . . .
63) Lettres/d^une chanoinesse/de Lisbonne/A Melcour,/ O fji-
cier françois,/sumes de VÉpitre intitulée/Ma Philo-
sophiejet de quelques poésies fugitives ./Nouvelle/édi-
tion.
A Paris,/Ghez Delalain, rue de la Gomédie Fraçoise./
M. DCG.LXXXn.
(1 vol., 136 ps.)
Exemplar do sr. A. Garvalho Monteiro. É a imitação em
verso de Dorat, etc, sem gravuras.
335
64) Briefwechsel einer Porlugiesischen nonne mit dem Kit-
ter von Chamilly.
Rotenburg and der Fielle, 1788.
(In-8.°)
Exemplar no Museu Britannico.
65) Lettres portugaises.
Paris, Gliez Delance. — 1796.
(In 2 vols. 12-xxxiv, 125, 140 ps.)
Exemplar na Bibliotheca Nacional de Paris. As li car-
tas, começando pelas 7 da «senhora da sociedade» e prece-
didas por uma noticia histórica e bibliographica que na edi-
ção de 1806 se diz ser do abbade Mereier de Saint-Léger,
assim como se declara que esta primeira edição de Delance
lhe fora confiada ou incumbida pelo sr. Aubin. O que é
curioso é que Saint-Léger, considerando todas as doze car-
tas como authenticas, constitue com as sete da «senhora da
sociedade» uma primeira parte, e com as cinco uma se-
gunda parte, ao contrario precisamente da publicação ini-
cial, observando comtudo o seguinte: — lA primeira parte
(a d'elle) não foi obtida, segundo toda a apparencia, senão
posteriormente, mas diííerentemente das respostas suppos-
tas, ella apresenta muitos caracteres de identidade, de es-
tylo, de originalidade de fundo, para que se duvide de que
é também authentica.»
66) Lettr es] portugaises. INouvelle éditionJAvec les imita-
tions en vers/par Dorat.
Paris — De Timpr. de Delance — 1806.
(In-8.° 183 ps.)
Possuímos um exemplar d' esta edição, em vel. sup. Pre-
cedida de um Avertíssement de Vimprimeur, da notice his-
torique et bibliographique do abbade Mereier de Saint-Léger
(da edição de 1796), com notas de Barbier, e das Refle-
xions préliminaires, de Dorat. Contém doze cartas, segui-
damente as sete attribuidas a uma «senhora da sociedade»
336
e as cinco da freira, e depois as: — Imitations/en vers/des
lettres precedentes, ipar Dorat.
Segundo o avertissement da edição do anno seguinte
(1807);, esta de 1806 foi publicada em agosto, em 12.° pa-
^ pel velino e em 8.° papel velino superfino, sendo rapida-
mente esgotada. O Journal de VEmpire deu noticia elo-
giosa, mas em parte errada, d' esta edição.
67) Leítres/portugaises./Troisième éditionjavec les/imita-
tions en vers par Dorat.
Paris — De la impr. de Delance. — 1807.
(In-12.°— 183ps.)
Possuimos um exemplar d'esta edição. É a reproducção
da edição de Delance, de 1806.
68) Letters/from a/Portuguese Nun/to/an Ofjicer/in ihe/
french army.
Translated by/W. R. Bowles, Esq.
London :/Printed for S. A. and W. Oddy, 27 Oxford-
Street;/and C. La Grange, Nassau-Street, Dublin./
T. Giilet, Printer, Crown-court./1808.
(1 vol. 8.° peq. xvi-125)
Exemplar de Carvalho Monteiro. Gravura em cobre em
face do frontespicio, representando a freira interrompendo
uma carta para contemplar o retrato de Chamilly: — Craig
dei. — Machenzie se. — e por legenda a passagem de uma
das Cartas relativa ao retrato; — London, Published by S.
A. & H. Oddy. Fev. 20. 1808. Um pequeno prefacio elo-
gioso das Cartas, e uma — historical introduction — baseada
sobre o trabalho de Saint-Léger. As doze cartas, começando
na 8." as da freira.
69) Lettres/de/tendresse et d'amour,/contenant/les Lettres
de Julie à Ovide, et d^Ovide à Julie ; suivies des Let-
tres Galantes d'une/Chanoinesse Poiiugaisej des Let-
tres de/Babet et des réponses de son Amant ; des/ Let-
tres d'amour d^une Dame Philosophej/des Lettres de
337
la Presidente de Ferrand au/Baron de Berteuil; et de
celles d^Héloise/et d^Abeilard.
— A Paris/ — Chez Léopold Collin. Libraire, rue/
Gille-Coeur./— 1808.
(In-12.0— 2vols.)
Exemplar de Carvalho Monteiro. As Cartas portuguezas
occupam com as de Boursault (Babet et des réponses, etc.)
o 2." volume. Em avertissement, um extracto do prefacio
do abbade de Saint-Léger. — A collecção comprehende as
12 cartas, começando as da freira, com a vni,
70) Lettres / from a/Portuguese Nun/to/an officer/in the/
french armyj Translated by/W. B. Bowles, Esq./ Se-
cond edition./
London :/Prmted for Sherwood, Neerly, and Jones,/
Paternoster row./1817.
(T. Davison, etc.)
(1 vol. 6.0— 128)
Exemplar de Carvalho Monteiro. Com a mesma gravura
da primeira de Bowles. As 12 cartas.
71) Cartas de uma religiosa porta gueza.
— Obras completas de Filinto Elysio. — Tomo x. —
Paris na officina de A. liobee. — 1819. Ps. 430 a
494.
É a traducção por Francisco Manuel do Nascimento, das
doze cartas, começando na 8.* as cinco da freira portu-
gueza. Filinto além de não pôr a menor duvida á authen-
ticidade portugueza d'essas Cartas, parece considerar tam-
bém como authenticas as respostas de Loyson, pois em nota
á carta em que a religiosa se queixa de que o amante lhe
não escreva, diz :
— «Escreveo, e mui ternamente: mas a abbadessa que
recebeo essas cartas nunca as quiz entregar á Religiosa que
estas escrevia. Existem as cartas do oflicial francez, e an-
dão juntas ás primeiras.»
F. 22
338
72) Lettres/poi'tugaises./Nouvelle édition,/revue/et corrígée
sur la première./
A Paris,/Chez Kleffer, libraire éditeur,/rue d'enfer-
Saint Michel, n.° 2./Novembre 1821./
(In-12.''— xxi-131)
Exemplar de Carvalho Monteiro, etc. As 12 cartas, co-
meçando as da freira com a 8/
Sousa Botelho diz d'esta edição; — «inverteu-se a ordem
das cinco cartas, sem rasão alguma e contra toda a proba-
bilidade; na primeira edição ellas devem ter sido datadas e
dispostas segundo as datas.»
Bem se vê que Sousa nunca examinou a primeira edição.
Não tendo podido também no nosso primeiro trabalho, exa-
minar a edição de Kleffer, apontámol-a apenas pelas in-
dicações succintas recebidas então das bibliothecas publi-
cas de Paris e de Nantes. Posteriormente, porém, adque-
rido na venda da livraria Rebello da Fontoura (Londres)
pelo sr. Carvalho Monteiro, um exemplar d'esta edição, fo-
mos agradavelmente surprehendidos por ver que a inver-
são accusada por Sousa Botelho, era exactamente a mesma
a que chegáramos também pelo estudo critico das Cartas :
— passando a suposta segunda, a ser a quarta, e esta para
o logar d'aquella I E não é exacto que esta inversão se fi-
zesse, como diz Sousa, «sem rasão alguma». No seu Avis
au ledeur, a edição Kleffer, expressamente diz o seguinte :
— «Tinha-se por tal forma desfigurado estas cartas, con-
fundindo-as com outras, sob o titulo de Cartas d'amor ou
Amorosas, em collecções de tão mau gosto, de tão deplo-
rável escolha, com tantas faltas de senso e de typographia,
que era restituir-lhes, d'alguma maneira, a celebridade que
merecem, separal-as desse montão de cousas insípidas em
que haviam estado por tanto tempo enterradas. Um editor
fel-o já, mas não tendo podido encontrar a edição primi-
tiva, deixou subsistir um grande numero de alterações e de
omissões. Nem sequer reparou que a maior parte das car-
tas estavam transpostas, o que quebrava o fio dos successos,
na verdade, muito simples, que se encontrava n'esta obra.
Na falta, mesmo, de successos, a differença de sentimentos
339
feí^/a bastado para mostrar que estas cartas não estavam
dispostas na sua ordem natural. » Pena é que a mesma ob-
servação critica não tivesse feito separar as cartas da freira,
das outras sete. Fizeram-se ainda outras alterações, no pró-
prio texto. Assim a primeira carta de Marianna começa: —
«Considere, mon coeur. . . » em vez de — «Considere, mon
amour ...»
Sousa attribue também a data de 1823, á edição de Kle-
ffer. Será erro typographico ou edição nova?
73) Lettres/portugaises/ Nouvelle édition, /conforme a la 1"
(Paris, Cl. Barhin, IQG9), /avec/ Une notice biblio-
graphique sur ces lettres.
Paris,/Chez Firmin Didot, etc. 1824.
(In-8.0— 227 ps.)
Possuimos um exemplar, offereeido por Sousa Botelho,
ignoramos a quem, encadernado em marroquim e que cor-
responde a uma tiragem especial em melhor papel, segundo
o confronto com outros exemplares. Um d'estes que perten-
ceu á bibliotheca de Fontoura, (J. E. G. Rebello da), ven-
dida ao livreiro de Leipzig, K. W. Hiersemann, e que per-
tence hoje a Carvalho Monteiro, tem a gravura da edição ou
collecçãp de que adeante falaremos, de Lopes de Moura, de
1838. É esta a celebre edição do Morgado de Matheus, de
quem é a longa e interessante noticia bibliographica. Inno-
cencio da Silva (Dic. Bibl.) nunca a viul . . . Consta so-
mente das cinco cartas authenticas, texto francez e traduc-
ção portugueza.
74) Lettres I from I a portuguese nun/to/an officier I in j the
french army./Translated by/W. fí. Éowles, Esq./
London i/Published by Thomas North,/64, Paternos-
ter row./1828.
(T. Davison, etc.)
(1 vol. 6.°— xv-128).
Exemplar de Carvalho Monteiro. Reproducção da edição
de 1808 incluindo as doze cartas, e a gravura.
22 #
340
75) Letires /portugaises. / Nouvelle édition, / conforme a la
première/ (Paris, eíc. Barbin, 1669)./
Paris,/Au bureau de la Bibliolheque Ghoisie,/Rue du
Coq-Saint-Honoré, n.° 13/1829.
(1 vol. 8.°— 54 ps.)
Exemplar de Carvalho Monteiro. Com uma — Noticesiir
les lettres portugaises. — feita evidentemente sobre a de
Sousa. — «Seguimos na nossa edição o texto dado pelo sr.
de Sousa, que o colleccionou com grande cuidado sobre a
edição primitiva de 1669. No receio de que alguma falta
lhe escapasse, servimo-nos também de muitas edições an-
tigas que temos colhido».
76) Cartas I d' Heloisa e Ahailard, /traduzidas por j Caetano
Lopes de Moura, / traductor das obras de Walfer
Scott,/ seguidas das Cartas Amorosas ld'umai' religio-
sa portuguezajrestituidas á lingita materna /por D.
José Maria de Sousa, /Morgado de Matheus,/augmen-
tadas com as imitações de Borat e outras, /e traduzi-
das do francez por Filinto Elysio e Caetano Lopes
de Moura./
Paris,/Na Liv. port. de J. P. Aillaud/& 1838.
(6.°— 2 vol.— 275— 268).
Possuímos um exemplar d'esta edição. O 2." volume
compõe-se de duas parles, na primeira até pag. 59, as cinco
cartas da freira, traducção de Sousa Botelho (n.° 73), na
segunda até pag. 159, as doze cartas da traducção de Fi-
linto Elysio (n.° 71). A segunda parte segue-se:
— Imitação/das/ Cartas amorosas /D'uma religiosa Por-
tugueza/por Dorat, /traduzida livremente do francez, /por
Caetano Lopes de Moura. /Pa) te segunda. Note-se que a se-
gunda parte termina a paginas 159 pela seguinte indica-
ção:— «Fim da primeira parte». Um embrogliol
Este segundo volume abre por uma estampa represen-
tando uma freira moça, muito mal desenhada, por signal,
epor baixo lé-se: — D. M. A. /Religiosa do Convento/de. . ./
em Beja. — Parece que ainda em 1838 era muito indiscreto
3H
dizer-lhe claramente o nome: D. Marianna Alcoforado. É
que Lopes de Moura não ignorava, talvez, como outros,
muito depois d'elle, que existia ainda uma familia Alcofo-
rado em Beja. N'uma pequena prefação em que se consi-
dera como primeira edição das Cartas a de Pedro do Mar-
teau, de Colónia, sem data, diz-se também: — «Esta reli-
giosa vivia pelos annos de 1663 (!) n'um convento de Beja.
' cavalleiro com que se correspondia era M. de Chamilly,
mais conhecido com o titulo de conde de Saint-Léger, o
qual com effeito militava n'essa epocha em Portugal.»
77) Cartas de uma religiosa portugiieza. Versão de Lopes
de Mendonça.
A Semana, jornal litterario, vol. ii — 1852 — Lisboa.
(Art. Epistolographia).
É uma tradueção incompleta, pois ficou na 4.* carta das
cinco da religiosa. A publicação foi feita nos n.°' 44 (maio,
ps. 494), 43 (junho, ps. 503), 46 (junho, ps. 514) e 48
(junho, ps. 538). É precedida de uma introducção.
78) Lettres/portugaises/nouvelle editionj conforme alai .^"j
(Paris, Cl. Barbin. 16G9)/avec une/notice bibíiogra-
phigue sur ces Lettres.
Paris/Bureau de la Bibliotheque Choisie etc. 1853
(Impr. de Guirandet et Juaust &)
(1 vol.— In-8.° ps. 95)
É uma reproducção, menos o texto portuguez, da edição
de Sousa.
79) Letlres/d'amour/Chefs-d'ceuvre de style épistolaire/choi-
sis/dans les plus grands écrivains/etc.
Novvelle edition.
Paris (Typ. Georges Chamerot)
S. d.
A paginas 50 :
Lettres/d\ine/religieuse/porlugaise/traduites enfrançais/
342
Com o prefacio da edição de Barbin (1669) As cinco car-
tas.
Cremos que esta edição é de 1858, e de Lemer.
80) As cartas da religiosa portugueza.
— Estudos da Edade-Média, por Theophilo Braga
(Porto) 1870— ps. 183 a 215.
É um estudo critico, e não uma traducção ou edição nova,
mas contém a traducção de muitos trechos.
81) Cartas/da/religiosa portugueza/ Mariantia Alcoforado/
{Novamente reproduzidas em livgua portugueza)/
Lisboa/Typ. do Diário de Annmicios, etc. 1872.
(^-8.0 — 32 ps.)
Com uma pequena introducção. São as cinco cartas, e o
traductor foi Domingos José Ennes.
82) Letlres du xvii.* etdu xvni.^ siècle/Lettres portugaises/
avec les réponses/Leltres de iW."* Aissé/suivies, etc.
par Eugène Asse, etc.
Paris (impr. Viéville) Charpentier et C* 1. e. 1873
(In-8.» 423 ps.)
Com uma Notice sur la religieuse portugaise et le marquis
de Chamilly. Na Revue Pol. et Litteraire, de abril, 1873,
ps. 969, Maxime Gaucher faz uma deliciosa causerie sobre
esta obra, começando por observar que não acha razão para
reunir as cartas da Religiosa portugueza e as da Menina
Aissé, senão a de umas e outras poderem formar um vo-
lume de formato Charpentier. E desculpando Chamilly, para
o qual aquelles amores não haviam sido mais do que um
eaprice de garnison, conclue assim: — «Supposons lesdeux
ames brúlant àTunisson d'une flamme éternelle, nousper-
dions quelque cris de passion les plus vrais, les plus beaux,
les plus déchirants qui se soient jamais échappés d\n cceur
qui se brise».
343
83) Encyclopedia Intructiva e Amena. — N.° 10 — 3. "sem
— Os dramas celebres do Amor — iv. ps. 106-126. —
A Religiosa Portugueza. —
(A). Pinheiro Chagas. Lisboa, 1874.
Não é uma traducção, mas um estudo critico. Contém,
comtudo, a traducção de largos trechos das Cartas.
84) (Les peíits chefs-d' mivres) — Leítres/portugaises/Pu-
bliées sur Vedition originale/avec une noticie prélimi-
naire/par Alexandre Piedagnel.
Paris. Libr. des Bibl. etc. mdccclxxvi
(In-8.° — vrii — 93 — 1 notes — Imp. par D.
Jouaust pour la coll. des Chefs-d'oeuvre.
MDCCCLXXV).
Em duas partes, sendo a primeira a das cinco cartas, e
a segunda a das sete de «uma senhora da Sociedade.»
D'esta edição houve uma tiragem especial de 30 exemplares
em China e 30 em Whatman.
85) Almanach do Bombeiro por tnguez para 1879. — Porto,
1878. Ps. 168: — Cartas portnguezas.
Um pequeno artigo compilando algumas das escassas in-
formações existentes ao tempo. É do nosso amigo, sr. dr.
Paiva e Pona.
86) Portugal. — Diccionario Histórico, etc. por J. A. d'01i-
veira Mascarenhas e Dr. R. Clemente d'Abreu. —
Lisboa,— 1880— Ps. 122 -.—Alcoforado (Marianna).
Largo extracto do artigo de Pinheiro Chagas nos Dramas
de amor.
87) Era Nova, revista do movimento contemporâneo. 1."
anno, n.° 5, novembro. 193 in. a201 ps. — As Car-
tos du Religiosa Portugueza.
344
Artigo assignado : Theophilo Braga.
Lisboa, 1880.
É uma reproducção melhorada do n.° 80.
88) La jeunesse/du/maréchal de Chamilly/notice/sur/ Noel
Bputon SÇ Sa famitle/de 1636 a lÚÚl/par E. Bcau-
voisj
Beaune/ímpr. Arthur Batault/1885
(ín-8.°)
Extracto das «Mémoires de la Société d'Histo\re etc. de
Beaune, an. 1885 ps. 2o5 et suiv.» O Cap. ô.Sntitula-se:
Les Letlres portugaises. É o trabalho a qual alludimos na
1.* parte ou introducção do nosso trabalho: — uma piedosa
e infeliz tentativa de lavar da memoria de Chamilly a sap-
posta mancha das Cartas. Ao nosso amigo sr. Lino d' As-
sumpção devemos a primeira noticia e um exemplar d'este
trabalho que foi o que definitivamente nos moveu á liqui-
dação da questão. Aqui lhe reiteramos os nossos agradeci-
mentos.
89) O Manuelinho d'Evora — Folha politica, litteraria, etc.
— folhetim.— Anno vii (1887). N."» 330, 361, 352,
353 e 354. — Marianna Alcoforado/ A Religiosa Por-
tugueza.
É a reproducção do escripto do sr. Pinheiro Chagas
(n.'>83).
90) Luciano Cordeiro / Soror Marianna /a freira portu-
gueza./
Lisboa/Livraria Ferin, etc. (Typ. da Academia Real
das Sciencias de Lisboa)
(In-8.°gr. — 335eerr.)
ín fine: — «Acabou de imprimir-se este volume no dia 7
de agosto de 1888.» — Compõe-se de seis parles: í. O es-
tado da questão. II Alcoforado e Chamilly. III Os amores
345
da religiosa. IV As Cartas. V Bibliographia. VI Documen-
tos.
Foi de 1000 exemplares a edição, do êxito da qual fa-
lam os editores no começo da presente. Por occasião ou
acerca d'ella, publicaram-se em diversos periódicos largos
artigos criticos relativamente á Freira por Ivgueza e ás Car-
tas; a maior parte dos quaes foram reunidos e republicados
no Jornal da Noite, e podemos citar os seguinte de: —
Conde de Ficalho, (no fíeporter) , Joaquim de Araújo (Pri-
meiro de Janeiro), Theophilo Braga (Democracia), Moniz
Barreto (fíeporter), A. de Campos Júnior (Esquerda Dy-
wasíica), Borges d'Avelar (Commercio Portiiguez), Sousa
Viterbo (Joi^nal da Manhã), Sampaio (Bruno — Jornal da
Manha), Pedro Victor Sequeira (Correio da Manhã), Júlio
César Machado (Repórter), Guiomar Torresão (lllustração
Portugueza), Visconde de Benalcamfor (Commercio do Por-
to), Maria Amália Vaz de Carvalho (Jornal do Commercio),
António de Serpa (Gazeta de Portugal), Rodrigues de Frei-
tas (Commercio do Porto), Armelim Júnior (Commercio de
Portugal), F. Clementiuo de Sousa (O Direito), Pinheiro
Chagas (lllustração Portugueza), Marianno Pina (lllus-
tração. Paris), etc. Publicaram-se também noticias e tre-
chos mais ou menos desenvolvidos no Diário de Noticias,
Imparcial, Correio de Noticias, Jornal da Manhã, (Porto),
Folha do Povo, Dia, Jornal de Noticias, (Porto), Commercio
de Portugal, Debates, Correio da Noite, fíeporter. Actuali-
dade (Braga), fíevolução de Setembro, Correio do Norte,
(Braga), Século, Correio de Portugal, Jornal das Colónias,
Colónias Portuguezas, Novidades, Occidente, fíevve nou-
velle (Paris), etc.
Todas essas apreciações coincidiram em considerar como
definitivamente resolvida, d'esta vez, a questão das Cartas e
a sua authenticação histórica.
Que seja permittido ao auctor agradecer mais uma vez,
aqui, a generosa e honrosissima amabilidade que fartamente
o compensou do seu trabalho, e declinar toda a não sonhada
gloria d'esta consagração, aos pés da doce e apaixonada
imagem da pobre freira portugueza.
346
91) Chronica de Valentina (D. Maria Amália Vaz de Car-
valho)— Lisboa & MDcccxc.
Ps. 1 — Soror Marianna, a Freira portugueza, etc.
É o juiso critico publicado pela illuslre escriptora no Jor-
nal do Commercio, sobre a nossa primeira edição. Contém
largos trechos das Cartas.
92) Les lettres d'amour de la religieiíse portugaise.
(A.) Maurice Paléologues — Revue de detix mondes,
Lix année, 3.® periode, t. 95 — 15 oct. 1889.
É um artigo critico interessante, apezar dos erros que
denunciam o desconhecimento dos últimos trabalhos, como,
por exemplo, o da supposição de que fosse o editor de 1690
o primeiro a dar o nome de Chamilly, e o da ordem que
attribue ás cartas^, na idéa aliás justa de que não é a ver-
dadeira, a geralmente adoptada.
93) Poemas portuguezes. (Luiz Osório) — Lisboa, etc. 1890.
Pp. 235: Soror Marianna.
É um poemeto em dois bellos sonetos que não queremos
deixar de registar n'esta lista, até pelo ligitimo desvaneci-
mento de ter sido inspirado pela nossa Soror.
94) The love letters of a/portuguese nun/being the letlers
written by Marianna /Alcoforado to Noel Boxiton de
Cha/milly, count of St. Lcger {later /mar quis of Cha-
milly) in/the year li5QS/translated by/R. H./
New-York/Cassell publishing Gompany/ etc.
(Copyright, 1890 by Cassell etc— TheMershon Com-
pany Press. Rahway, N. J.)
(In-12.° — 148)
Formosissima edição de que M.°"' Regina Maney, teve a
amabilidade de nos oíTerecer nm exemplar. A traducção é
de uma senhora americana, Josephine Lazarus, que escreve
e assigna a introdncção. Sente-se bem, n'esta, a alma e a
347
comprehensão affectiva, delicada, da mulher. Julgou ella
que as Cartas nunca tinham apparecido em inglez; como
vemos, enganou-se, mas a sua traducção não é por isso
menos apreciável. A traducção foi feita sobre a edição de
Alexandre Piedagnel, da qual se aproveitou o prefacio e a
nota bibliographica. Não tinha noticia dos últimos trabalhos.
Não temos por completa esta lista, é claro. Muitas indi-
cações de outras edições encontramos, que por não ter po-
dido authenticar não incluimos aqui. As obras que mais ou
menos desenvolvidamente se referem ás Cartas são innu
meras.
Com quanta verdade podiamos fechar esta parte do nosso
trabalho com as palavras do illustre escriptor, sr. Pinheiro
Chagas, a respeito da Heloisa portugueza:
— «Se a tua memoria so eclipsou, que importa? O que
havia mais nobre, mais ardente, mais sublime na tua vida,
era o teu amor, e o teu amor sobrevive. Rosa do claustro,
foi essa paixão o perfume das tuas folhas, e esse perfume,
conservado preciosamente nas luas fervidas cartas, como
em frasco de oiro cinzelado, atravessou intacto os séculos,
tí vem ainda hoje deleitar os que se debruçam sobre as lou-
cas paginas que soltaste involuntariamente ao vento do fu-
turo».
Ou então, aproveitando uma phrase de Fr, Caetano do
Vencimento, a respeito da homonyma da nossa pobre freira,
e com bem mais verdade:
— <tNão pode a morte que tudo acaba, nem o tempo que
tudo faz esquecer, consumir o corpo e a memoria da Vene-
rável Madre Marianna.r»
Acrescentaremos a esta lista, — que a bem dizer é uma
homenagem, — a indicação de algumas:
348
OBRAS DE ARTE
— Gravura em cobre, por Harrweyn, doscripta acima,
sob n.° 39, na edição de Jacob van Ellinckhuyseen, de
Haya, 1697.
— Gravura em cobre, de Coster, descripta acima, sob
n."" 50 e 53, edições dos van Dole, 1716, 1742, etc.
Damos d^ella, aqui, uma magnifica phototypia am-
pliada de Camacho.
— Gravuras em cobre, de Ch. Eisen e Massard, descri-
ptas acima, sob n.°* 58 e 62. Imitações de Dorat, 1771,
1780.
— Gravura em cobre, de Graig e Maekenzie, descriptas
acima, sob n °' 68, 70 e 74. TraducçÕes inglezas de Bo-
wles, 1808, 1817, 1828.
— Gravura em cobre, sem indicação do auctor, parecen-
do, porém, de procedência ingleza. Descripta acima, sob
n.° 76. Edição de Aillaud, 1838.
— Quadro a óleo, pela menina D. Emilia Santos, disci-
fula de Malhoa, e neta do grande mestre de capella Manuel
nnocencio dos Santos. Uma notável revelação artistica. O
quadro, de grandes dimensões, não está concluido ainda. É
talvez, até, uma inconfidência denuncial-o. Representa a
Soroi\ no seu quarto, suspendendo a escripta de uma das
Cartas, e fitando saudosamente o retrato, ao qual diz, tal-
vez:— lO official que deve levar-te esta carta, pela quarta
vez me manda dizer que precisa partir. Gomo está apres-
sado I . . . »
— Phototypias de Camacho (1890). As da presente edi-
ção:
— Fac-simile do rosto da edição datada (1669) e
desconhecida, de Pedro du Marteau;
— Fac-simile do termo de óbito de Marianna Alco-
forado ;
— Entrada do convento da Conceição;
— Janella de Mertola, no convento («o miradouro
d' onde se vêem as portas de Mertola»);
— Fac-simile ampliado da gravura de Coster.
349
— Composição lithographica de Julião Machado (1890).)
— Lithographia da Companhia Editora. — O cartaz da pre-
sente edição : uma verdadeira composição artistica.
— Recordaçõiís de Soror Marianna. — Beja e o Convento
da Conceição. — Photographias de Camacho (1890).
Tendo ido comigo a Beja, para me auxihar na presente
edição, o illustre artista teve a feliz idéa de formar este
bello álbum, que contém as seguintes estampas:
— Convento da Conceição. — Porta do refeitório;
— Id. — Capitulo;
— Id. — Coro de cima;
— Id. — Claustro;
— Id. — Porta da egreja, passadiço e tribuna da in-
fanta;
— Id. — Egreja e restos dos Paços dos Infantes;
— Da estrada de Mertola (ao longe divisam-se as
Portas do mesmo nome e o convento);
— Da estrada de Serpa (junto do Cruzeiro de S. Pe-
dro, a que alludimos a ps. 166);
— O Castello (exterior);
— Interior do Castello e torre de Menagem;
— Santa Maria da Freira (onde foi baptisada Ma-
rianna Alcoforado);
— Santo André, fora dos muros.
NOTA FINAL
Muito desejáramos incluir nesta edição os documentos
da primeira. Mas o numero e a extensão considerável dos
que teríamos de accreseentar-lhes engrossaria, além das
proporções convenientes, o presente volume, o que é faeil
de ver pelas indicações summarias d'esses documentos, nas
notas que acompanham o texto. Mas não desistimos de pu-
blical-os, todos, um dia.
Acabou de imprimir-se este volume
no dia 10 de janeiro de 1891
OUTEAS OBEAS DO MESMO AUCTOE
A Sienliora Duqueza (Seroes manue-
linos) lOO réis
Marinlia e Colónias 500 »
EM PREPARAÇÃO
A !ieg;unda Daqiieza.
Ignez de Castro.
FERIN óí C.% EDITORES
UNIVERSITY OF CALIFÓRNIA LIBRARY
Los Angeles
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ÍSl OCT3ll9T3(
OCT 2 1 1973
.,^M' 21 /5S5
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P09191, AiSí"
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